sábado, 26 de junho de 2010

O Mural (nova versão)


«A raiz da palavra hipócrita em grego antigo encontra-se no verbo hypokrino, que possuía um conjunto de sentidos, podendo ir do simples discurso, à oratória, à representação cénica, à dissimulação ou à falsidade.»* [tradução AMC]
Robert Scholes, The Rise and Fall of English [em tradução livre A Ascensão e Queda da Língua Inglesa], p. 81 [Yale University Press, February 1998, 220 pp.]
Houve de tudo, viu-se de tudo, falou-se de tudo, mas com uma deformação sectária apriorística capaz de fazer retinir as campainhas da pura náusea ao ser mais resistente das intoxicações de pendor unanimista. A intelligentsia estava presente. O camarada Jerónimo discursou, o coordenador Louçã (o eufemismo mais bem esgalhado da política portuguesa, que o diga Joana Amaral Dias que foi bem co-ordenada rumo à empoeirada prateleira trotskista, onde porventura jazem uma famosa picareta e a expressão, com o mesmo prefixo, “colaborador”) vituperou, usando todo o seu fel – cujas reservas parecem não se esgotar –, levantando o seu queixo anguloso e bradando com toda a sua acrimónia facciosa, o mais alto magistrado da nação.
António Costa, numa atitude nobre, sem nunca deixar os seus laivos de populismo – está-lhe na massa do sangue e acautela-se já o problema sucessório –, ao franquear as portas da Câmara Municipal de Lisboa, previu um velório, seguido de funeral em homenagem ao notável escritor recentemente desaparecido. Porém, e basta seguir a voragem da apropriação com que se digladiam as esquerdas nacionais, o velório passou num ápice a comício, cujos senhores disseminadores da moral, proprietários do pacifismo e edificadores da ética (republicana, tão em moda) organizaram sob o pretexto da morte de mais um sectário, cujas tragédias monstruosas do século XX não desfizeram a irredutibilidade das suas posições de apoio incondicional à tirania comunista, um verdadeiro espectáculo de multimédia (só faltou a pirotecnia, não se esquecendo, porém, da useira piromania ad hominem) com comentários de circunstância, intervenções da laia de flash interviews, conferências de imprensa, comunicados, uma espécie de feijoada da Caras da Bibá, um “quem é quem” à moda portuguesa, a que só faltou a destreza criativa com as t-shirts estandardizadas previamente distribuídas.
Falou-se de um tal de Lara – o mesmo que fez parte da turba Moderna e foi um dos condenados no processo da famosa Universidade, sentenciado em 2003 a dois anos de prisão com pena suspensa pelo crime de “administração danosa” –, que nos idos de 1992, então Subsecretário de Estado da Cultura de Santana Lopes num Governo de Cavaco Silva, vetou o acesso de O Evangelho Segundo Jesus Cristo à lista de candidatos do Prémio Literário Europeu. E este incidente lamentável com dezoito anos, serviu para, na hora do luto, apoucar, depreciar, enxovalhar o Presidente da República Portuguesa apelidando-o de iletrado, mesquinho, revanchista, ressentido, tacanho e provinciano, chegando mesmo em diversos foros à desfaçatez do insulto brejeiro, boçal e ordinário que me eximo de expor neste texto. De banal e medíocre o defunto já o houvera insultado. Deixou, no entanto, os sequazes colectivistas para terminar a obra, de cujas agitação, histeria, insensatez e imundície provêm do acto eleitoral onde o candidato-Alegre-trovador-combatente-intelectual-humanista – um homem sisudo, poeta de primeira água, todavia, um prosador mais que mediano, político resvaladiço e volúvel, plantado num campo de paradoxos movido por um tropismo meramente eleitoralista – disputará com aquele demónio de Boliqueime – o tal sobre quem caíram os pecados do mundo da dialéctica em espiral.
Cavaco (tal como Gama, a 2.ª figura na hierarquia do Estado) pode ter errado ao não comparecer no funeral-comício aos Paços do Concelho de Lisboa (onde da mesma forma e com o mesmo matiz rubro se celebrou, uns meses antes, a vitória rara do clube do regime); mas com toda a certeza não se enganou nos valores democráticos e de liberdade, de uma imutabilidade recalcitrante, preconizados pelo camarada-defunto (demonstrados à saciedade em pleno PREC), baseados na filosofia, na doutrina e na práxis dos quatro acima representados no mural – é essa moral deles. Não foi a estética, muito menos a técnica, mas porventura a moral, assim grafada, das diversas diatribes e anátemas do camarada-defunto que estiveram na origem da omissão presencial, que no entanto se fez representar pelo segundo elemento da hierarquia do círculo presidencial. E se acima disse que Cavaco pode ter errado, restrinjo o campo de acção do verbo apenas à falta de iniciativa de elevar as exéquias fúnebres à condição de “nacional”, num país em que é constitucionalmente garantida a plena liberdade de expressão e consagrado o livre pensamento, independentemente da maior ou menor identificação com os conceitos do homenageado.
E facilmente se percebe o que a ambos, em vida, os distinguia, através de uma simples análise dos presentes. Se para uns a Coreia do Norte é quase uma democracia, para outros o Terror Vermelho trotskista era um mal necessário. E no século XXI continuamos a discutir Maiakovsky contra Mandelstam. Purgas contra a luta pela sobrevivência das diferenças num espaço comum de liberdades. Os Gulags, o colectivismo intelectual, o pensamento único contra a energia criadora em cada um de nós.
E se muitos, fornidos do magnésio para a memória – fumos, injecções e aspirações – não se esquecem da negra data de 1992, eu, como muita boa gente, não me esqueço de uma outra, mais negra e inquietante: 17 de Outubro de 1998 (e por curiosidade, os números têm destas coisas, a data combina-se para formar a cosmogonia do terror; ah, aquele Outubro juliano!...) Foi um sábado, no Centro de Desportos e Congressos de Matosinhos (cf. Pravda Lusitano, de 22/10/1998), a noite da infâmia: enquanto milhares são martirizados e assassinados por delito de opinião nas prisões cubanas, enquanto nesse sítio os “laras” estão armados de Kalashnikov, investidos com a mão de ferro da tortura, munidos do livro vermelho que suspende os direitos do Homem em prol de uma ideologia totalitária, Saramago entra em palco de braço dado a Fidel Castro, discursa em primeiro lugar e ouve de seguida, embevecido, hipnotizado, o comandante durante horas a fio a ditar o discurso estafado de quase quarenta anos (na altura, hoje já são mais de cinquenta). E como dizia Isaiah Berlin em The First and the Last (1999; NYRB, p. 57): «Causar dor, matar e torturar são actos geralmente condenados; mas se não forem cometidos para meu benefício pessoal e sim em prol de um ismo – socialismo, nacionalismo, fascismo, comunismo, de crenças religiosas fanáticas, do progresso, ou do cumprimento das leis da História –, então, esses actos são aceitáveis.»**
Mas esses (e regressemos à citação inicial do eminente filólogo Robert Scholes, aludindo aos descendentes da voz grega hypokrino), os que agora criticam, vituperam e desancam o mais elevado magistrado da nação – com espaços bem remunerados nos jornais, rádios e televisões, dominados historicamente pela esquerda mais radical e sectária – foram os mesmos que boicotaram a prestação do devido e merecido tributo na Assembleia da República ao poeta, ensaísta, dramaturgo António Manuel Couto Viana (1923-2010) que, curiosamente, tinha a mesma idade de Saramago e morreu apenas dez dias antes, sob o pretexto de supostas ligações fascistas de outrora, aventando-se a possibilidade de se haver alistado ao lado de Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) – seria um rapaz precoce que entre os 13, no mínimo, e os 16 anos, no máximo, já combatia por terras espanholas em nome de um ideal. Pobre país em que 20% da população votante se faz representar por gente deste calibre, onde a verdade, a honestidade intelectual e a transparência de procedimentos são aniquilados em nome de um colectivismo cuja História mostrou a índole e a prática torcionária e aniquiladora das liberdades individuais. Foram alguns desses que nos idos de 1980 festejaram a morte trágica do Primeiro-Ministro e do Ministro da Defesa nacionais, quando voavam sobre Camarate com destino ao Porto, e um rapaz incrédulo, com apenas 8 anos, e com alguma memória, questionava a autoridade familiar mais provecta a razão de ser das garrafas de champanhe, dos foguetes e dos urros de alegria perante as vidas despedaçadas naquele 4 de Dezembro.
Porém, a verdade, que todos querem arrebatar, subsiste e remanescerá pelos tempos nos escritos feéricos do autor da Azinhaga do Ribatejo. A verdade está nas narrativas inovadoras na, já de si, tão maltratada língua portuguesa e pungentes no seu lirismo, cuja ficção foi estonteando o mundo pela sua arte de contar histórias. A verdade está na sua ficção: no Memorial do Convento (1982), em O Ano da Morte de Ricardo Reis (1986) e em As Intermitências da Morte (2005; e, após um período de dura resistência, o meu primeiro de muitos contactos com a ficção saramaguiana) – a minha trilogia pessoal.
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Para terminar, uma curiosa passagem de um interessantíssimo artigo, publicado em 2007:
«Há cinco anos, [Saramago] conseguiu provocar um escândalo à escala global quando, numa visita à Faixa de Gaza, comparou a situação nos territórios palestinianos a “Auschwitz”.
»Para o crítico literário Harold Bloom, a comparação com Auschwitz foi “de uma falta de imaginação e de humanidade imperdoável” por parte de um romancista que ele considera “o segundo melhor, apenas atrás de Philip Roth” entre os escritores vivos. “Os romances de Saramago são ilimitadamente inventivos, ilimitadamente bondosos, ilimitadamente engenhosos”, disse-me Bloom, “mas deixa-me perplexo como é que o homem não consegue crescer politicamente. Em 2007, ser um português estalinista significa simplesmente não estar a viver no mundo real.”»
Fernanda Eberstadt, “José Saramago, the Unexpected Fantasist”, The New York Times, August 26, 2007.
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Notas: *Citação reproduzida da fonte primária, por sugestão da obra autobiográfica O Regresso do Hooligan, de Norman Manea (ed. port. Asa; p. 300).
**Citação retirada de Paul Hollander, O Fim do Compromisso (ed. port. Pedra da Lua, Fev/2009, p. 32, trad. de Virgílio Viseu).