O Francisco relembra, pela marca a negro, tristemente indelével, no eixo do tempo (já foi há 20 anos!...), a fatwa lançada pelo Ayatollah Khomeini contra Salman Rushdie em 14 de Fevereiro de 1989, a propósito da publicação do romance Os Versículos Satânicos (The Satanic Verses) em 1988. Curiosamente, o líder espiritual dos xiitas iranianos morreu três meses e meio depois.
Sobre este triste acontecimento não há muito mais para contar, excepto o episódio agora revelado do solidário e comovente asilo dado pelo, humana e artisticamente portentoso, Ian McEwan nos dias mais terríveis da vida de Rushdie. De resto, trata-se apenas de reavivar a memória sobre a história de um ataque deliberado à liberdade de expressão, perpetrados pelas mesmas gentes e seus clones que hoje em dia desfrutam de uma confortável complacência da esquerda caviar europeia, em nome de um multiculturalismo – que não sei, nem eles sabem, o que é, e jamais aceitarei que se traduza numa derrogação da minha liberdade, das minhas formas de pensar, sentir e agir, dos valores apreendidos numa sociedade (europeia e ocidentalizada) que me viu crescer – e de uma hilariante apologia à proporcionalidade de meios bélicos – uma vez que a liberdade de expressão materializada nos rockets lançados contra cidades israelitas é coarctada pelos helicópteros Apache e caças F-16 de fabrico americano (Solnado hoje não faria melhor após haver encontrado a guerra fechada, neste caso por desproporção de meios).
Enfim, deixo apenas ficar, sem mais comentários, um texto escrito em 1993 por Paul Auster (oh, claro, é de origem judaica, e, para além disso, não se pode contar com o homem que dedica o seu último romance ao filho do seu colega escritor israelita David Grossman morto no Líbano em 2006) que relata a sua inquietação permanente perante a vida do seu amigo Salman Rushdie:
Sobre este triste acontecimento não há muito mais para contar, excepto o episódio agora revelado do solidário e comovente asilo dado pelo, humana e artisticamente portentoso, Ian McEwan nos dias mais terríveis da vida de Rushdie. De resto, trata-se apenas de reavivar a memória sobre a história de um ataque deliberado à liberdade de expressão, perpetrados pelas mesmas gentes e seus clones que hoje em dia desfrutam de uma confortável complacência da esquerda caviar europeia, em nome de um multiculturalismo – que não sei, nem eles sabem, o que é, e jamais aceitarei que se traduza numa derrogação da minha liberdade, das minhas formas de pensar, sentir e agir, dos valores apreendidos numa sociedade (europeia e ocidentalizada) que me viu crescer – e de uma hilariante apologia à proporcionalidade de meios bélicos – uma vez que a liberdade de expressão materializada nos rockets lançados contra cidades israelitas é coarctada pelos helicópteros Apache e caças F-16 de fabrico americano (Solnado hoje não faria melhor após haver encontrado a guerra fechada, neste caso por desproporção de meios).
Enfim, deixo apenas ficar, sem mais comentários, um texto escrito em 1993 por Paul Auster (oh, claro, é de origem judaica, e, para além disso, não se pode contar com o homem que dedica o seu último romance ao filho do seu colega escritor israelita David Grossman morto no Líbano em 2006) que relata a sua inquietação permanente perante a vida do seu amigo Salman Rushdie:
«Quando me sentei para escrever esta manhã, a primeira coisa que fiz foi pensar em Salman Rushdie. Há quase quatro anos e meio que faço isto todas as manhãs, e, agora, é já uma parte essencial da minha rotina diária. Pego na caneta e, antes de começar a escrever, penso no meu colega romancista que está do outro lado do oceano. Rezo para que ele continue vivo mais vinte e quatro horas. Rezo para que os seus protectores ingleses o mantenham escondido da gente a quem encomendaram o seu assassínio – a mesma gente que já matou um dos seus tradutores e feriu outro. Sobretudo, rezo para que venha um tempo em que estas orações deixem de ser necessárias, para que venha um tempo em que Salman Rushdie tenha tanta liberdade como eu para caminhar pelas ruas do mundo.
Rezo por este homem todas as manhãs, mas, no fundo, sei que estou também a rezar por mim. A sua vida corre perigo porque escreveu um livro. O meu trabalho é também escrever livros e eu sei que poderia estar na mesma situação que ele, não fossem os caprichos da história e uma questão de sorte, de pura e cega sorte. Se não hoje, então talvez amanhã. Pertencemos ao mesmo clube: uma irmandade secreta de solitários, confinados, e excêntricos, homens e mulheres que passamos a maior parte do nosso tempo fechados em pequenos quartos, travando a batalha de pôr palavras numa página. É um estranho modo de se viver a vida e só uma pessoa sem alternativa o escolheria como vocação. É demasiado árduo, demasiado mal pago, demasiado cheio de decepções para convir a qualquer outra pessoa. Os talentos variam, as ambições variam, mas qualquer escritor digno desse nome dir-lhes-á o mesmo: para se escrever uma obra de ficção temos de ser livres de dizer aquilo que temos para dizer. Pratiquei essa liberdade em todas as palavras que escrevi – tal como Salman Rushdie. É isso que nos torna irmãos e é por isso que a provação por que está a passar é também a minha provação.
Não posso saber como agiria no seu lugar, mas posso imaginá-lo – ou, pelo menos, posso tentar imaginá-lo. Com toda a franqueza, não estou certo de que conseguiria ter a coragem que ele tem demonstrado. A sua vida está em ruínas e, no entanto, continua a fazer aquilo para que nasceu. Obrigado a mudar constantemente de abrigo, separado do filho, cercado de polícia, todos os dias se senta à sua secretária e escreve. Sabendo até que ponto é difícil fazer esse trabalho mesmo nas melhores condições, só posso sentir admiração e respeito por aquilo que ele tem realizado. Um romance; um outro romance em preparação; uma série de extraordinários artigos e discursos defendendo um direito humano básico – o direito à livre expressão. Tudo isto já é, por si só, absolutamente notável, mas aquilo que verdadeiramente me espanta é que, para além do essencial do seu trabalho, Salman Rushdie ainda dedica algum do seu tempo a comentar livros de outros autores – por vezes, chega mesmo a redigir entusiásticas notas promovendo os livros de autores desconhecidos. Para um homem na sua situação, será possível pensar em mais alguém a não ser em si mesmo? Sim, pelos vistos é possível. Mas pergunto-me quantos de nós seriam capazes de fazer o mesmo que ele tem feito, se tivéssemos as costas encostadas à mesma parede.
Salman Rushdie está a lutar pela sua vida. A luta dura há já quase meia década, e não estamos mais perto de uma solução do que quando a fatwa foi anunciada. Como tantos outros, só queria que houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer para ajudar. A frustração cresce, o desespero instala-se, mas, como não tenho nem o poder nem a influência para afectar as decisões de governos estrangeiros, o máximo que posso fazer é rezar por ele. Ele carrega o fardo por todos nós e eu já não consigo pensar no que faço sem pensar nele. O transe por que está a passar arrebatou toda a minha atenção, levou-me a reexaminar as minhas crenças, ensinou-me a nunca dar por adquirida a liberdade de que desfruto. Por tudo isso, tenho para com ele uma imensa dívida de gratidão. Apoio Salman Rushdie na luta que trava para reconquistar a sua vida, mas a verdade é que ele também me tem apoiado. Quero agradecer-lhe por isso. Sempre que pego na caneta quero agradecer-lhe.»
Paul Auster, “Uma oração por Salman Rushdie” (1993), Experiências com a Verdade, pp. 163-165
(Porto: Asa, 1.ª edição, Março de 2003, 201 pp; tradução de José Vieira de Lima; obra original: Experiments in Truth, 1995)
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