domingo, 15 de fevereiro de 2009

Atavismos

«Por dentro, no recesso da alma, o homem voluntarioso e efémero, sem escrúpulos, alcançava entretanto a estatura dum gigante. Olhava então com piedade para as próprias fraquezas, prometia à força momentânea: nunca mais, nunca mais. Em todo o caso, alguma coisa de dúbio passava da alma velha à alma nova. O que é, transformava-se-lhe o medo em cálculo, o terror religioso cedia o passo a uma crença firme e sem complicações na generosidade divina, que existe para tudo cobrir com o seu manto de perdão. E o remorso lá estava, mas encaroçado. Um quisto à margem do organismo em que se enconcha. À génese destas grandes transformações não era estranho o espectro da miséria que o pai lhe metera pelos olhos apavorados desde a infância, porque muita da fereza que o empedernia, da ganância cíclica que o empolgava, vinha daí, dessa longa lição individualista de que o homem é o lobo do homem e, portanto, entre devorar e ser devorado, o melhor é ir aguçando os dentes à cautela.»
Carlos de Oliveira, Uma abelha na chuva, pp. 81-82.
(Lisboa: Assírio & Alvim, 4.ª edição, Agosto de 2007, 132 pp; obra original publicada em 1953.)

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