Intróito
Provavelmente este é o mais injustiçado pela crítica de todos os romances de Auster. É o mais curto e aparentemente o que mais se desvia da forma e da substância da narrativa austeriana.
Dito isto, o advérbio de modo supra empregado não foi obra do acaso, nem se tratou de um mero recurso estilístico para reforçar o que pretendia professar. Timbuktu é uma comovente alegoria da espoliação da alma dos mais fracos ou renegados por uma sociedade voraz, sem tempo para a prática de um simples acto de caridade que se poderá medir desde o mero sorriso reactivo até à desafectada filantropia, strictu sensu. É o retrato da sociedade que não sabe lidar com a indigência e que tão-pouco se sente responsável pela miséria humana que deambula pelas nossas ruas e que se exibe, todos os dias, aos seus olhos.
Mr. Bones, o protagonista, é um cão!
«Mr. Bones sabia que Willy já não ia andar muito tempo neste mundo. A tosse não o largava há mais de seis meses, não lhe dando sequer a mais remota hipótese de se ver livre dela. Lenta e inexoravelmente, sem nunca dar mostras de abrandar, a coisa ganhara uma vida própria, evoluindo de uma vaga e mucosa farfalheira nos pulmões, desde o dia 3 de Fevereiro, para as convulsões escarrentas e os arquejantes terramotos de monco e pus, no pino do Verão. Tudo isso já era suficientemente mau, mas, nas duas últimas semanas, infiltrara-se na música brônquica uma nova tonalidade – uma coisa tensa, silicosa, percussiva – e os ataques sucediam-se agora com tal frequência que eram quase constantes. (…) O cheiro da morte cravara-se em Willy G. Christmas e, tão certo como o sol ser uma lâmpada nas nuvens que se apagava e acendia todos os dias, também o seu fim ali estava, mesmo ao virar da esquina.
(…)
Tal era o dilema com que Mr. Bones se debatia naquela manhã de Agosto enquanto se arrastava pelas ruas de Baltimore com o dono doente. Um cão sozinho não valia mais do que um cão morto e, mal Willy desse o último suspiro, Mr. Bones não teria outra coisa a esperar da vida senão o seu próprio fim. (…) Ninguém ia querer salvá-lo. Como o bardo sem abrigo gostava de dizer, o desfecho estava gravado no mármore. A menos que encontrasse rapidamente outro dono, o vira-lata estava condenado ao esquecimento.»
Paul Auster, em Timbuktu, Asa, 6.ª Edição, Fevereiro de 2001, pp. 7-9
[Tradução de José Vieira de Lima] (Timbuktu, 1999)
Provavelmente este é o mais injustiçado pela crítica de todos os romances de Auster. É o mais curto e aparentemente o que mais se desvia da forma e da substância da narrativa austeriana.
Dito isto, o advérbio de modo supra empregado não foi obra do acaso, nem se tratou de um mero recurso estilístico para reforçar o que pretendia professar. Timbuktu é uma comovente alegoria da espoliação da alma dos mais fracos ou renegados por uma sociedade voraz, sem tempo para a prática de um simples acto de caridade que se poderá medir desde o mero sorriso reactivo até à desafectada filantropia, strictu sensu. É o retrato da sociedade que não sabe lidar com a indigência e que tão-pouco se sente responsável pela miséria humana que deambula pelas nossas ruas e que se exibe, todos os dias, aos seus olhos.
Mr. Bones, o protagonista, é um cão!
«Mr. Bones sabia que Willy já não ia andar muito tempo neste mundo. A tosse não o largava há mais de seis meses, não lhe dando sequer a mais remota hipótese de se ver livre dela. Lenta e inexoravelmente, sem nunca dar mostras de abrandar, a coisa ganhara uma vida própria, evoluindo de uma vaga e mucosa farfalheira nos pulmões, desde o dia 3 de Fevereiro, para as convulsões escarrentas e os arquejantes terramotos de monco e pus, no pino do Verão. Tudo isso já era suficientemente mau, mas, nas duas últimas semanas, infiltrara-se na música brônquica uma nova tonalidade – uma coisa tensa, silicosa, percussiva – e os ataques sucediam-se agora com tal frequência que eram quase constantes. (…) O cheiro da morte cravara-se em Willy G. Christmas e, tão certo como o sol ser uma lâmpada nas nuvens que se apagava e acendia todos os dias, também o seu fim ali estava, mesmo ao virar da esquina.
(…)
Tal era o dilema com que Mr. Bones se debatia naquela manhã de Agosto enquanto se arrastava pelas ruas de Baltimore com o dono doente. Um cão sozinho não valia mais do que um cão morto e, mal Willy desse o último suspiro, Mr. Bones não teria outra coisa a esperar da vida senão o seu próprio fim. (…) Ninguém ia querer salvá-lo. Como o bardo sem abrigo gostava de dizer, o desfecho estava gravado no mármore. A menos que encontrasse rapidamente outro dono, o vira-lata estava condenado ao esquecimento.»
Paul Auster, em Timbuktu, Asa, 6.ª Edição, Fevereiro de 2001, pp. 7-9
[Tradução de José Vieira de Lima] (Timbuktu, 1999)
2 comentários:
Não é o meu preferido do Auster, mas é um dos. 'Timbuktu é uma comovente alegoria da espoliação da alma dos mais fracos ou renegados por uma sociedade voraz, sem tempo para a prática de um simples acto de caridade'. Na mouche!
Ainda bem que encontro um timbuktiano!
Um abraço
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