quinta-feira, 5 de junho de 2008

Epígrafe e abertura. Obsessões.

Já muito se discutiu sobre a importância da frase de abertura de obras de ficção. Na maioria das vezes, é-lhe atribuída o poder de um sortilégio paralisante pela forma como agarra o leitor do princípio ao fim do livro. É óbvio que esta imagem do magnetismo literário das frases de abertura é um mero exercício teórico e hiperbólico para se discutir literatura e destreza literária, se não o fosse, o que seria de uma frase tão inócua como «Call me Ishmael.» («Tratem-me por Ismael.») do Moby Dick de Melville – classificada num concurso promovido pela revista American Book Review, que contactou para o efeito um conjunto alargado de escritores e críticos, como a melhor frase de abertura de romances – se não se tivesse em devida conta o corpo e o desenvolvimento da obra? E essa importância, nem tão-pouco sairia reforçada pela frase de encerramento «It was the devious-cruising Rachel, that in her retracing search after her missing children, only found another orphan.» («Era o Raquel, que prosseguia o seu errante cruzeiro e que tinha voltado para trás, na sua referida busca do filho perdido, não tendo achado mais do que outro órfão.») – esta classificada em 25.º lugar, quando uns tempos mais tarde a mesma publicação resolveu elaborar as 100 melhores frases de encerramento de romances.
Todavia, há um facto que não pode ser negado, a teimosa persistência de algumas delas na nossa memória, normalmente tão diligente a abandonar o supérfluo. Quem leu dificilmente se esquecerá da recordação aparentemente indelével de Aureliano Buendía da viagem que fez com o pai para conhecer o gelo enquanto, anos volvidos, enfrentava o pelotão de fuzilamento (García Márquez); das parecenças das famílias felizes e das dissemelhanças entre as infelizes (Tolstoi); da necessidade de casar um homem solteiro que possuísse uma grande fortuna (Austen); do monstruoso acordar de Gregor Samsa após sonhos agitados (Kafka); e por aí em diante.
Na realidade, confesso aqui e agora, é uma das minhas muitas manias relacionadas com o processo de aquisição de um livro: procurar a frase de abertura de uma determinada obra (de ficção, claro) sempre que me desloco a uma livraria e pego num livro que por conselho, alarde publicitário, curiosidade ou intuição, folheio e cheiro antes de o pousar de novo, em definitivo ou até nova oportunidade, ou de o agarrar e com ele me dirigir à caixa que me deixará materialmente mais pobre, juntando-se à miríade de obras que aguardam pelo passar dos meus olhos, dada a minha declarada oneomania predominantemente bibliómana e cinéfila – se tudo correr de acordo com o previsto, esgotá-los-ei na minha já eventualmente decrépita passagem pelos oitenta anos…

Folheava O Último dos Savage um livro do escritor e enólogo Jay McInerney1, fui desde logo agarrado pela epígrafe escolhida, de autoria do último dos duros:

«…ou se é rebelde ou conformista, ou se é um homem de fronteira do Oeste selvagem da vida nocturna americana, ou se é uma casa Quadrada, apanhado nas teias totalitaristas da sociedade americana, condenado ao conformismo sem apelo nem agravo, se se quiser triunfar.»
Norman Mailer (pág. 9)


Depois veio a dilacerante frase de abertura de McInerney:

«A capacidade de ter amigos é a maneira de Deus pedir desculpas pelas famílias que temos.» (pág. 13)


(Descontinuidade voluntária, para não danificar o que ficou para trás. Notas e referências no final. Publicação prevista, 6 de Junho às 0:30 WEST)

2 comentários:

rute disse...

E este elemento da tua família adoptiva deseja que o teu dia, este, seja feliz. Saudades. Beijinhos.

Alexandre Kovacs disse...

Gostei muito e preparei um texto semelhante citando a sua página lá no meu mundo. Aparece para comentar!