segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Pré-Publicação

Este blogue tem a honra de pré-publicar o segundo capítulo do décimo romance de Luís Carmelo, E Deus pegou-me pela cintura, Guerra & Paz, Lisboa.

Sessões de apresentação do livro:

  • No dia 6 de Março, às 18h30, no Restaurante de Âmbito Cultural, Piso 7, do El Corte Inglés de Lisboa. Com a presença do autor. Apresentação de Francisco José Viegas;

  • No dia 13 de Março, às 18h30, na Sala de Âmbito Cultural, Piso 6, do El Corte Inglés de Gaia. Com a presença do autor. Apresentação de João Pereira Coutinho.

PRÉ-PUBLICAÇÃO


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Da infância, Guilherme guarda a leveza do céu que sobrevoava Portalegre e o inesperado pico da Penha onde se adivinham os altos de Sousel, as ogivas da Flor da Rosa, a delicadeza do Crato e os longínquos mármores de Estremoz. Aos quinze anos, quando o pai foi trabalhar para a Sacor em Cabo Ruivo, entrou no Liceu D. Diniz nos Olivais e o paraíso encantado começou a desfazer-se. Era uma Lisboa de relvados, de vigas e torres, de autocarros podengos com dois andares esverdeados e uma ingénua combustão de transatlântico. Onde antes reinava a placidez das braseiras de cisco e pinhão, havia agora máscaras inquietas, jogos da sedução e algumas guitarras eléctricas. Guilherme parecia outra pessoa: subitamente ficou com dois metros de altura, a tez muito morena perdeu o ar eclesiástico e o cabelo encaracolado e almorávida passou a realçar ainda mais o nariz subido e o bigode sulcado. Mas quando aos dezassete anos os pais enviaram o rapaz para Évora para estudar sociologia, Guilherme sentiu um pasmo violento. Ao menos na “cidade museu” não havia “subversão”, nem “gorilas”, nem confusões e entre os alunos havia gente de “boas famílias”. Apesar dos breves protestos e da metáfora mágica da passagem “de cavalo para burro”, assim aconteceu.

Quando naquele início de Outono chegou a Évora, Guilherme teve a impressão de que a cidade era uma espécie de âncora que caíra abrupta e desamparadamente no fundo do mar. Depois dessa biogénese remota, os oceanos ter-se-iam evaporado e sobrara em torno da urbe a planura extensa e lisa onde choravam granitos austeros e sorriam com timidez as alvenarias claras. Uma catedral desproporcionada face ao resto do casario dominava e domava a quase desolação dos pátios, dos muros, dos ciprestes solitários e dos rostos paralisados que desciam pelas sombras das ruas estreitas e frias.

“A minha primeira imagem foi a de uma profunda solidão e arrepio. Lembro-me que subia a ladeira que conduz ao Jardim Diana, mesmo ao lado da faculdade (um Instituto superior regido por jesuítas), quando avistei sobre o pórtico dos Lóios um corvo que se aproximava de outro pássaro igualmente negro e espesso de plumagens. No meio daquele breu esculpido pela manhã de Outubro, apenas o bico deste último, era um melro, se distinguia do conjunto. Os pássaros pareciam ter cristalizado os seus movimentos e encostaram a certa altura os bicos um ao outro em agouro ainda hoje por explicar. Foi então que percebi que a cidade arrastava asas ocultas e semeava segredos e talvez fel a quem vinha de fora. O quadro, ao mesmo tempo arrepiante e tentador, persistia ainda no momento em que decidi avançar e cruzei a calçada granítica do templo romano para entrar finalmente no Instituto. O bico cor de mel e a azáfama negra das cabeças quase erguidas das aves acabaria assim por sinalizar o meu ingresso na ordem dos sociólogos que nunca viriam a sê-lo. De facto, desde esse ano de 1973 e durante vários e intensos meses de estudo, nunca chegaria a compreender o significado de tal ciência.”

O Instituto Superior Económico e Social de Évora, assim se chamava a faculdade, estava instalado no edifício onde uns séculos antes a segunda inquisição mais mortífera do país tinha feito jus à “História”. Não havia parede que não exalasse esse destino de horror. Nem era preciso subir ao primeiro andar para visitar a antiga sala do tribunal, local onde agora a sessão de boas-vindas se assemelhava a uma liturgia de capoeira que emprestara ao galo-mor um tremendo esporão de ornitorrinco. “Sempre imaginei, aliás, que antes de este edifício ter sido construído por aqui abundaria um cardume de limoeiros muito altos, árvores caprichosas que herdavam o ronronar antigo do mar e que haviam transformado a sua saudade naqueles citrinos de cor quente, cujo cheiro me fazia agora imaginar maresia, velames e as fontes da antiga fauna manuelina e mudéjar. E foi, de facto, quando dava a volta completa ao limoeiro gigante que escala ainda hoje pelos muros traseiros do edifício – estaria há um mês em aulas –, que vi a Rute pela primeira vez. Há sinas que vêm por bem.

Por trás do teatro de sombras densas que Évora nunca chegaria a desocultar, havia pequenos acenos de uma genealogia suave. À noite, punha-me a ver as lanternas que se perdiam nas travessas desertas, uma espécie de ferro meio forjado que embalava quatro trapézios laterais de vidro sempre coberto de pó. Dessas construções inocentes saía uma luminosidade baça como a das traineiras descoradas por excesso de navegação, ou por cisma e teima do sal. Suspensas das paredes liminarmente brancas, estas lanternas eram as jóias da desolação de Évora. E foi sob a sua luz auspiciosa que vi na expressão de Rute o grande milagre da vida. O amor. Havia uma mesma tonalidade no bico do melro, nos limões do pátio do Instituto e naquela luz de embalar a perdição das noites. A pouco e pouco, Évora começava a parecer-se com um minúsculo jardim das delícias: era uma nova cidade que se desenhava nos lençóis da cama do meu quarto onde o sangue e a iniciação se tornaram em dádiva única dos deuses.

E enquanto na cátedra falavam os descendentes das espécies maléficas que os oceanos aqui teriam há muito preservado, eu limitava-me a auscultar o olhar de Rute. Ela tinha um sorriso que se enrolava e que fazia lembrar a água a sair com fúria de uma represa. Era uma pessoa de rosto esguio, dedos finos e olhos transparentes, amarelados e bastante fixos. O cabelo muito liso da cor daquelas lagoas perdidas nas minas de cobre abandonadas. Era boa aluna e deve ter percebido, desde o primeiro dia, o que significava a ciência sociológica. Viera de Loulé, era filha de professores primários e encontrara em mim o primeiro ‘voo de longo alcance’ – cito as suas próprias palavras da época para evitar qualquer tipo de prosápia. Nesse tempo, eu empenhava-me em variadíssimas revoltas e ela achava graça ao figurão sem contudo se intrometer nos meus jogos. Lembro-me que interrompia as aulas com uivos, provocava os professores mais escolásticos, lia livros proibidos e gostava de os exibir; criava pequenos escândalos nos cafés, misturava Deep Purple com ‘mortes ao fascismo’, exibia-me portanto sem qualquer ar apaziguador ou cordato. E ela, como se fosse ainda uma doce pena apaixonada, dava-me cobertura e acompanhava-me com a maior das calmas e como se nada se passasse. No fundo, achava piada ao meu perfil de inconsequente.

Embora mais velha, havia uma prima direita do meu pai que morava em Évora há já várias décadas. Era filha de uma das muitas irmãs e irmãos que o meu bisavô, um filho bastardo da nobreza latifundiária, espalhara entre Portalegre, Monforte, Estremoz, Elvas, Borba, Vila-Viçosa, Moura, Olivença, Badajoz e até Trujillo. Casara com um veterinário que tinha grandes suíças e que arrastava botas altas de cabedal pelas calçadas da cidade e pelas mesas do Café Arcada onde praticamente só entravam homens. Essa prima, Maria Filomena (mais uma mão cheia de nomes) adorava brasões e morava numa casa grande de bons soalhos que se perdia ao longo de um corredor sombrio e cheio de retratos, molduras, jarrões, arcas e algumas cristaleiras atafulhadas por alfaias religiosas e santos carecas ou debruados com talha dourada. O casal não tinha filhos, nem quase recebia visitas, mas, durante a tarde, a minha prima convidava-nos de vez em quando para lanchar. Tratava-nos então ternamente por “filhos” e achava talvez graça ao que considerava ser a transgressão do nosso namoro. Ria muito alto como se fosse uma hiena sem forças para a caça, mas sem qualquer compaixão para com as suas presas. Untava as unhas de um vermelho muito forte e na sua face via-se ainda a menina que nunca deixara de ser. As elites locais aceitavam-na no Movimento Nacional Feminino e na Misericórdia. Mas não mais do que isso.

A meio da Primavera de 1974, estávamos a acabar o primeiro ano quando chegou a revolução.”

4 comentários:

Anónimo disse...

Não sei porquê mas confundo sempre o Marmelo com o Caramelo. E nenhum deles me suscita qualquer desejo de os ler. Este excerto fez-me lembrar um romance do Fernando Namora, que se passa em Coimbra, entre a universidade e as tertúlias literárias. Fico porém perplexo que um leitor apaixonado do último Houellebecq adira a tais sofríveis e esforçados exercícios literários. E quanto ao seu post sobre o Paul Auster, bem também nisso diferimos totalmente.
Já agora só mais um pormenor. Quando li o último Hoellebeck, no verão passado, também li quase em simúltâneo o Órix e Crex, O último homem de Margaret Atwood e as duas narrativas como se entrelaçaram, se mixaram, e muitas vezes tenho que fazer um esforço para as destrinçar. Perdoe-me esta conversa fiada.

Anónimo disse...

Sim, tem razão. Órix e Crex de Atwood (lido em Junho de 2006) e A Possibilidade de Uma Ilha de Houellebecq (lido em Janeiro de 2007) são muito semelhantes, embora divergindo nos efeitos especiais e no lirismo.
No que respeita a Auster, não sei a que texto se refere. O último apenas constata o atraso editorial português, o penúltimo apenas transcreve o discurso de agradecimento proferido pelo autor aquando da entrega do Prémio Príncipe de Astúrias, apenas referindo-me à minha paixão desmedida pelos seus livros. Para além de outros textos anteriormente publicados.
Quanto ao resto, como é óbvio, abstenho-me de comentar. Não li (mas, com toda a certeza, vou ler) o livro em questão e limitei-me a responder a um gentil convite/solicitação da editora por respeito à arte e à sua divulgação.

Anónimo disse...

Quando referi o post sobre o Paul Auster queria apenas não aderir ao seu entusiasmo pelo mesmo. Quanto a mim Auster tem demasiadas debelidades. E não aprecio o tipo de afectos ou de lirica Austeriana. Prefiro o seu amigo nova yorquino Don Dellilo. Mas vinha principalmente perguntar-lhe se conhece alguma coisa de João Botelho da Silva?, um autor que morreu cedo, mas que publicou um romance, "Beduinos a Gasóleo" e um livro de contos.

Anónimo disse...

Na realidade, nunca li João Botelho da Silva. Mas decerto lê-lo-ei num futuro próximo.
Quanto a Auster, como seu admirador não lhe encontro debilidades, ou no limite são essas debilidades que me fazem nutrir essa paixão quase incondicional que, como o Constantino, já vem de longe. Aliás, já a referi neste blogue. DeLillo é também um dos meus preferidos, para não referir outros, Os Nomes é daquelas obras que nos perseguem muito depois de as havermos lido. É o mesmo que me acontece com algumas (não todas, a minha paixão não chega a tanto) obras de Auster, como por exemplo a obrigatória Trilogia, Leviathan (obra mais do que dedicada a DeLillo...Há Sachs...), A Música do Acaso e O Livro das Ilusões.