sábado, 17 de fevereiro de 2007

O Senhor Pássaro de Corda*

Um pássaro pousado num ramo de uma árvore dá corda ao mundo?
O seu trinado monocórdico e repetitivo acompanha as manhãs e imita a vida banal de Toru Okada, de 30 anos, voluntariamente desempregado, vive numa moradia em Setagaya – um bairro calmo na buliçosa Tóquio –, casado há seis anos com uma mulher esbelta (Kumiko), de fino trato, que exerce a sua profissão com assinalável sucesso numa editora responsável pela publicação de uma revista sobre nutricionismo. Ambos levam uma vida calma e feliz de jovem casal:
«Vindo do arvoredo ali próximo chegava até nós o canto constante, estridente, de um pássaro que parecia estar a dar corda a algum mecanismo. Chamávamos-lhe o pássaro de corda. Foi Kumiko que se lembrou de lhe chamar assim. (…) Todos os dias vinha até ao arvoredo perto de casa e punha-se a dar corda ao nosso pequeno e pacato mundo.» (pág. 13)

Como se justifica, então, o preenchimento de 634 páginas para descrever a vida corriqueira de um japonês comum, com uma vida sem sobressaltos?
«Estava na cozinha a vigiar o esparguete ao lume, quando tocou o telefone. Ao mesmo tempo ia assobiando a abertura da ópera La Gazza Ladra de Rossini, que estava a tocar numa estação de rádio em FM. O fundo musical perfeito para cozinhar massa.» (abertura do romance, pág. 9)
Trivial.
Porém, do outro lado da linha, estava uma voz tão doce como enigmática, sensual, de uma mulher desconhecida que não se quis identificar:
«– Esparguete? Quem é que se lembra de cozinhar esparguete às dez e meia da manhã?» (pág. 10)
Apenas pedia 10 minutos do tempo do indolente Toru:
«– Dez minutos podem significar mais tempo do que julgas» (pág. 15)
«– Dez minutos – disse ela. – Não é por causa de dez minutos que a tua vida vai começar a andar para trás. Responde à pergunta que te fiz, só isso. Preferes que eu esteja nua ou que vista qualquer coisa? Tenho todo o tipo de coisas, sabes? Cuecas de renda preta...» (pág. 16)

Estava quebrada a rotina. Inicia-se, com um telefonema curto e aparentemente anódino, um período vertiginoso de 18 meses na vida do jovem Okada. Início atribulado que se consuma com o estranho desaparecimento do gato, chamado, com nome de gente, Noboru Wataya: «(…) é o nome do irmão mais velho da minha mulher. O gato faz-nos lembrar ele (…) Na maneira de andar. E têm o mesmo olhar vazio.» (pág. 21)

Em 1995, Haruki Murakami dá por terminada a escrita do terceiro e último livro que a ocidente se materializou na terceira parte do seu romance mais aclamado: Crónica do Pássaro de Corda. O romance conduziu à sua consagração definitiva em solo americano. Antes da pré-publicação em 1997 do 1.º capítulo “O pássaro de corda das terças-feiras / Seis dedos e quatro mamas” na revista norte-americana The New Yorker, Murakami já havia publicado na mesma revista duas histórias – respectivamente, em 1995 e 1997 – que iriam corresponder a mais dois capítulos do livro: a primeira – capítulo 9 do Livro III, pp. 416-435 na edição portuguesa, “O ataque ao jardim zoológico (ou um massacre injustificável)” – conta a história da chacina dos animais selvagens no jardim zoológico da cidade de Hsin-Ching em Agosto de 1945, durante a retirada dos japoneses do território da Manchúria – território chinês onde o exército imperial do sol nascente havia criado pela força o império fantoche de Manchukuo em Fevereiro de 1932 –, perante a iminente chegada do exército soviético; a segunda – capítulo 26 do Livro III, pp. 527-543 na edição portuguesa, “Crónica do Pássaro de Corda N.º 8 (ou O segundo massacre injustificável)” – narra os acontecimentos do dia seguinte ao massacre perpetrado pelos soldados japoneses no jardim zoológico e uma estranha forma de morrer (matar) presenciada pelo veterinário do zoo.

Como Murakami já nos habituou, designadamente através dos três romances que já se encontravam editados na nossa língua – se bem que, originalmente, um tenha sido publicado antes deste, Norwegian Wood (1987), ao contrário dos restantes, Sputnik Meu Amor (1999) e Kafka à Beira-Mar (2002) – a realidade – aqui entendida como verosimilhança – é apenas o pano de fundo que serve de suporte à narrativa do imaginário, conferindo-lhe uma textura cada vez mais rara na literatura contemporânea.

Um jovem assistente de advogado no desemprego vê-se enredado numa trama de contornos pouco claros que, à medida que a narrativa avança, se vai atando cada vez mais, chegando a um ponto em que o próprio não consegue distinguir o real do ilusório.
Desde as atrocidades praticadas por ambos os lados da contenda no conflito da Manchúria – um dos vários episódios negros da 2.ª Guerra Mundial – até à condenação pela União Soviética ao recolhimento dos prisioneiros de guerra nos campos de trabalhos forçados na Sibéria debaixo do jugo de Josef Estaline, Murakami desmonta com mestria a perpetuação das atrocidades cometidas no fragor da guerra nas gerações futuras, quer seja através de dolorosos processos de expiação vividos por aqueles que nela participaram, quer na consciência colectiva de um povo que dificilmente, nos tempos mais próximos, sarará as feridas abertas pelo conflito.
Esta é a história de um homem inocente que, fatidicamente, a partir do Verão de 1984, passará a carregar o pesado fardo da culpa dos outros, as manchas que persistem na memória colectiva de um povo que, em nome dos supostos grandes valores civilizacionais, participou na barbárie de uma guerra fraticida.

Crónica do Pássaro de Corda é, a par de Norwegian Wood, o melhor romance que li do sublime escritor nipónico.

Referência bibliográfica:
Haruki Murakami, Crónica do Pássaro de Corda. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Novembro de 2006, 632 pp. (tradução de Maria João Lourenço; obra original: Nejimaki-dori kuronikuru, 1995; obra em língua inglesa – EUA: The Wind-Up Bird Chronicle, 1997)


*O título foi inspirado na excelente crónica “O Senhor Murakami” escrita por Rui Tavares e publicada no seu livro Pobre e Mal Agradecido (Tinta da China, 2006, pp. 51-63), e não só…

4 comentários:

Anónimo disse...

Acabei de ler este livro ontem e fiquei de tal forma hipntoizado que dou por mim a pesquisar na net, mais opiniões sobre o mesmo. De tal forma que comprei hoje o Norwegian Wood..
É assim que acabo por vir parar aqui ao teu blog, e acabei por o ler na totalidade. (adicionado aos favoritos...) Muito interessante. Vou começar a passar aqui regularmente. Força..

Anónimo disse...

O primeiro livro de Murakami que li... o que mais me marcou... aquele que fez com que em pouco mais de três meses tenha terminado ontem de ler o terceiro livro dele... "Sputnik, meu amor"... depois de ter devorado, igualmente, "Kafka à beira mar"... tenho já preparado para ler o "Underground"... ainda me falta ler o "Norwegian Wood", mas não deverá demorar muito até o ter nas mãos e o poder ler!!

Gostei muito do que escreveu... fez-me ter noção da dimensão que o livro tem verdadeiramente!!

Anónimo disse...

Viva! Será que posso colocar este artigo no bungaku assinalando a devida autoria do post? http://bungakuuu.blogspot.com

Anónimo disse...

Olá Annabel,
Claro que pode. É um prazer. A blogosfera tem essa vantagem de liberdade quase incondicional.