domingo, 16 de julho de 2006

Vida extinta

Não, não é a morte na sua acepção física de fim da linha. É a vida de milhares, assente na dolorosa existência, que se deteriora pela crença de que o milagre se irá revelar num futuro muito próximo durante esta curta passagem: «Devia chegar hoje de certeza».
«A única coisa que chega de certeza é a morte, Coronel.»
Esta última frase é proferida pelo administrador dos correios da aldeia, de quem a voz dá o título à novela «Ninguém escreve ao Coronel» de Gabriel García Márquez – agora publicada pela Dom Quixote.
García Márquez, numa entrevista dada a um jornalista cubano, chegou a considerá-la como a sua melhor obra de sempre.
Esta é a história de um coronel que, depois de haver sido desmobilizado do exército da revolução colombiana, esperando em vão por uma malfadada reforma prometida pelo governo no célebre Tratado de Neerlândia, se vai arrastando para a miséria pela firme convicção de que a reforma algum dia chegará e pelo despojamento a que se submete para garantir a subsistência de um galo de combate, deixado pelo filho, que competirá num futuro próximo, trazendo-lhe consideráveis proventos em caso de vitória.
Esta é, sem dúvida, uma excelente representação do nosso tão incrustado sebastianismo. A tal perseverança na espera pelo milagre e a angustiante desistência da luta pela sobrevivência na esperança de que algo irá acontecer que nos fará mudar de vida, já extinta, morta sem darmos por isso.
O Coronel, decerto, teria uma costela portuguesa. Ou García Márquez já se teria inteirado da triste realidade portuguesa, quando em 1957, apelando a toda a sua mestria narrativa, escreveu esta novela em Paris (apenas publicada em 1961, cujas razões estão descritas na fabulosa autobiografia «Viver para contá-la»).

Tão português este fado!
De que sobreviveremos se o esperado não se concretizar?
– Merda!

Referência completa (há, pelo menos, uma anterior em português da Quetzal)
Gabriel García Marquez, Ninguém Escreve ao Coronel, Dom Quixote, 1.ª edição, Junho de 2006, 106 pp. [Tradução de José Colaço Barreiros]. (El coronel no tiene quien le escriba, 1961).

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente Livro. Gabo é um génio. Excelente texto também, em especial essa do Sebastianismo!
Victor

Anónimo disse...

Obrigado, Victor!
Um abraço