Arrepio-me. Chamem-me piegas, romântico ou elogiador do kitsch. Há pequenas frases carregadas de engenho, transportadas pela mão de um Mestre, da mente ao papel.
Gabriel tinha apenas vinte e dois anos quando escreveu isto:
«Vi-a dirigir-se para o toucador. Via-a aparecer na lua redonda do espelho, olhando-me agora ao fim de uma ida e volta de luz matemática. Vi-a continuar a olhar para mim com os seus grandes olhos de cinza incendiada, olhando-me enquanto abria a caixinha com embutidos de madrepérola rosada. Vi-a empoar o nariz. Quando acabou fechou a caixinha, voltou a levantar-se, e aproximou-se de novo do castiçal dizendo: «Receio sempre que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas», e estendeu sobre a chama a mesma mão longa e trémula que estivera a aquecer antes de se sentar ao espelho. E disse: «Não sentes frio?» E eu disse-lhe: «Às vezes». E ela disse-me: «Deves estar a senti-lo agora.» E então percebi porque é que não pudera estar só na cadeira. Era o frio que me dava a certeza da minha solidão.»
Gabriel García Márquez, “Olhos de cão azul” [conto], Olhos de cão azul, Quetzal, 7.ª edição, Maio de 2001, pág. 82. [Tradução de Maria da Piedade Ferreira].
Agora na língua de Cervantes para os mais puristas:
«La vi caminar hacia el tocador. La vi aparecer en la luna circular del espejo mirándome ahora al final de una ida y vuelta de luz matemática. La vi seguir mirándome con sus grandes ojos de ceniza encendida: mirándome mientras abría la cajita enchapada de nácar rosado. La vi empolvarse la nariz. Cuando acabó de hacerlo, cerró la cajita y volvió a ponerse en pie y caminó de nuevo hacia el velador, diciendo: «Temo que alguien sueñe con esta habitación y me revuelva mis cosas»; y tendió sobre la llama la misma mano larga y trémula que había estado calentado antes de sentarse al espejo. Y dijo: «No sientes el frío». Y yo le dije: «A veces». Y ella me dijo: «Debes sentirlo ahora». Y entonces comprendí por qué no había podido estar solo en el asiento. Era el frío lo que me daba la certeza de mi soledad.»
Gabriel García Márquez, Ojos de perro azul, 1950.
Gabriel tinha apenas vinte e dois anos quando escreveu isto:
«Vi-a dirigir-se para o toucador. Via-a aparecer na lua redonda do espelho, olhando-me agora ao fim de uma ida e volta de luz matemática. Vi-a continuar a olhar para mim com os seus grandes olhos de cinza incendiada, olhando-me enquanto abria a caixinha com embutidos de madrepérola rosada. Vi-a empoar o nariz. Quando acabou fechou a caixinha, voltou a levantar-se, e aproximou-se de novo do castiçal dizendo: «Receio sempre que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas», e estendeu sobre a chama a mesma mão longa e trémula que estivera a aquecer antes de se sentar ao espelho. E disse: «Não sentes frio?» E eu disse-lhe: «Às vezes». E ela disse-me: «Deves estar a senti-lo agora.» E então percebi porque é que não pudera estar só na cadeira. Era o frio que me dava a certeza da minha solidão.»
Gabriel García Márquez, “Olhos de cão azul” [conto], Olhos de cão azul, Quetzal, 7.ª edição, Maio de 2001, pág. 82. [Tradução de Maria da Piedade Ferreira].
Agora na língua de Cervantes para os mais puristas:
«La vi caminar hacia el tocador. La vi aparecer en la luna circular del espejo mirándome ahora al final de una ida y vuelta de luz matemática. La vi seguir mirándome con sus grandes ojos de ceniza encendida: mirándome mientras abría la cajita enchapada de nácar rosado. La vi empolvarse la nariz. Cuando acabó de hacerlo, cerró la cajita y volvió a ponerse en pie y caminó de nuevo hacia el velador, diciendo: «Temo que alguien sueñe con esta habitación y me revuelva mis cosas»; y tendió sobre la llama la misma mano larga y trémula que había estado calentado antes de sentarse al espejo. Y dijo: «No sientes el frío». Y yo le dije: «A veces». Y ella me dijo: «Debes sentirlo ahora». Y entonces comprendí por qué no había podido estar solo en el asiento. Era el frío lo que me daba la certeza de mi soledad.»
Gabriel García Márquez, Ojos de perro azul, 1950.
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