terça-feira, 11 de julho de 2006

Benefício da angústia [Actualizado]


As desgraças e desvarios já vêm de longe.
Decorria a quadra natalícia do ano da Graça de 1703, Portugal assina com o seu mais velho aliado, a Inglaterra, o ruinoso Tratado de Methuen.
As barreiras à importação dos tecidos ingleses são levantadas por contrapartida da venda em terras de Sua Majestade do nosso precioso néctar produzido por terras sulcadas pelo rio Douro.
Com efeitos irreversíveis, uma região de solos xistosos e rescendida pelo intenso odor da esteva – feromona da lavoura vinhateira exsudada pelos corpos martirizados pela orografia agreste – transforma a sua paisagem em deleitosos socalcos formados por curvas luxuriantes que lhe conferem o matiz e marca indestrutível de uma das regiões mais belas do mundo – aqui há trabalho, sangue, suor e lágrimas. Aqui há Douro.
Somos os primeiros. Somos sempre o caralho dos primeiros no maior pão com chouriço do mundo, na maior bandeira humana, no número de comensais numa feijoada de orgiasta numa ponte, queremos, agora, exumar o corpo do detentor do reinado mais longo da Europa… detemos a região demarcada de vinhos mais antiga do mundo, quis Sebastião José em meados do século XVIII.
Mais tarde veio o benefício para milhares de lavradores durienses. Não, não se trata de um lucro, de uma vantagem, mas da quantidade máxima de mosto que cada produtor pode entregar para a produção de Vinho do Porto, comercializado por escassas três dezenas de casas exportadoras, que pagam o preço à pipa.
Veio a CEE depois a UE, e com elas a modernização e a reconversão de vinhas, processo obrigatório para a futura atribuição de subvenções.
Empresas de construção com os seus bulldozers e escavadoras esventraram o xisto: patamares ou vinha ao alto, tem que passar o tractor pelo meio… Onde antes havia três, agora há apenas um bardo – fileira de vinhedo, sustentado por lousa e arame.
Modernizar para um futuro melhor! A surriba assemelhar-se-á a uma brincadeira de crianças. Menos mão-de-obra necessária para a lavoura, que escasseia pelo salto para terras de França, da Alemanha, da Suíça e da Bélgica.
Onde se produzia cem, produz-se agora cinquenta. Normas da CEE, regras do Ministério, regulamentos do Instituto… a Casa do Douro definha, só se lhe ouve o pesado estertor do definhamento. Os lavradores gritam! As bocas mexem-se em movimentos maxilares bruscos e contínuos, mas não há som, não há palavras que se façam ouvir. Os excedentes, as vinhas abandonadas ao americano que cresce selvagem. Agora, o cheiro da esteva prenuncia a morte, o odor do Douro quase cadáver em decomposição que atrai os abutres. Lavradores convertam-se em hoteleiros… e o vinho? E a marca Portugal?
O Porto é sul-africano, australiano, neozelandês. E cá vai-se apertando com os desgraçados que vieram da sardinha com broa de milho nas duas refeições diárias, filhos com a instrução primária, outrora de cueiros amanhados a papel de jornal, sem luxos para pano; com as mãos gretadas pelo cabo do sacho, costas torcidas pelo peso dos cestos, cara queimada pelo calor que encana pela vale do Douro, vindo do inferno que grita: miséria, fome, abandono... pulhas!
C. foi rico – o mais rico da zona – diziam. Tinha cinquenta trabalhadores que o tratavam por tu, partilhando as refeições de carne com massa e feijão à sombra das oliveiras que outrora delimitavam os vinhedos. Há quinze anos que o preço da pipa vem caindo, ganhando hoje quase metade a preços correntes.
Havia excedentes, o falacioso benefício não chega para o sustento. Aventurou-se no vinho Douro D.O.C, criou uma marca, não vende. O que vende é absorvido pelos intermediários e agiotado pelos restaurantes com margens de 100, 200, 300%. Ou hipermercados com margens esmagadas e pagamento obrigatório à cabeça pelo produtor, para este poder expôr o produto de anos de labuta junto às garrafas de plástico de Coca-Cola – mistela pouco mais barata.
Não há roga, nem mãos para trabalhar. Fugiram todos pela míngua.
C. foi muito rico… Comprou uma arma e remira-a noite e dia. Beija os filhos, abraça a mulher. Sobe os socalcos. Uma suave brisa adula as parreiras e lambe-lhe as lágrimas salgadas que lhe turvam a vista.

Nota: ler esta notícia publicada hoje no Jornal de Notícias.

[Actualizado] ver aqui a notícia na íntegra e com mais desenvolvimentos no Público, pelo jornalista Mário Barros.

5 comentários:

Anónimo disse...

A mesma notícia foi muito mais bem escrita no «Público».

Anónimo disse...

O Sr. Engº. que ponha os conteúdos online de graça como o JN.

Anónimo disse...

A qualidade paga-se!

Anónimo disse...

Excelentíssimo senhor transmontano: isto não é baldio.

Anónimo disse...

Quem tem amigos destes não morre solteiro...
Bjos e abraços