terça-feira, 25 de julho de 2006

Vazio


De há uns dias para cá olho para o meu blogue como um objecto inalcançável, impassível de ser actualizado porque – acreditem, sem pretensiosismo de alguma espécie – sinto um vazio literário, como se todo o manancial de temas que pudesse abordar e que pulula por esse mundo fora se tivesse exaurido numa fracção infinitesimal de tempo.
Tentei procurar as causas para este torturante vazio, porém cedo percebi que essa busca era uma tarefa cansativa, inútil e até narcísica roçando os limites do comprazimento em causa própria, tão vicioso e sobranceiro.
Depois, assolou-se-me um sentimento de exibicionismo de um exercício de autoflagelação pública: vêem este pobre desgraçado com as suas atribulações quotidianas, um tipo, à laia de Nobre, triste, soturno, deprimido e que até consegue manter a sua veia de poeta sofredor transmutada em receptáculo expiatório dos pecados do século: Foda-se, este gajo, o André, é mesmo bonzinho, de uma generosidade quase sem mácula!
Bem, mas como se encontram as causas do vazio se desconhecemos por completo, e porventura com maior acuidade, a existência de um estado de criatividade plena? Num mundo onde, felizmente e graças a nós, não há valores absolutos que possam definir a heterogeneidade da espécie e da natureza humanas, a que se deve esse embotamento?
E se então temos consciência dessa diversidade e da chegada progressiva de uma situação de paralisia, quais são as razões subjacentes ao estado de conflito permanente?
Poder? A ufana glória de mandar? O prazer sádico da subjugação do próximo e semelhante?
Sinceramente, não sei responder.
Assumisse o Homem, sem falsos pudores ou receios, o doce encantamento pela beleza do mundo que experimenta mas que refuta quotidianamente.
Não é à toa que o Adagietto da 5.ª Sinfonia de Mahler irá residir na grafonola deste blogue até ao início da próxima semana.
A obra-prima de Thomas Mann, deu origem à obra-prima de Luchino Visconti, onde a simples contemplação da beleza e o conflito interior, incessante e devastador, que reprime a sua exteriorização, metaforizam a condução da humanidade ao ressentimento, à inveja, ao crime e por fim à morte colectiva da própria beleza.


Do romance deixo ficar estas palavras de Mann – onde parte delas mereceu a honra de transcrição para a contracapa na sua edição portuguesa mais recente da Relógio D’Água – de um diálogo de Sócrates com Fedro, em Fedro de Platão, descrito pelo protagonista Aschenbach:

«E entre palavras delicadas e graças espirituosas, Sócrates ensinava a Fedro o desejo e a virtude. Falou-lhe do temor ardente que acomete o homem sensível quando os seus olhos vislumbram uma semelhança do belo eterno: falou-lhe da avidez do homem ímpio e vil, incapaz de pensar o belo ao ver a sua imagem, incapaz de veneração; falou do medo sagrado que invade o homem nobre quando contempla uma face divina , um corpo perfeito – como então estremece e sai fora de si, mal ousando olhar, e como venera aquele que é belo, sim como se ofereceria em sacrifício a este ídolo, se não receasse parecer ridículo aos olhos dos homens. Pois o belo apenas, Fedro, é amável e visível a um tempo; é a única forma de espírito, ouve bem!, que os nossos sentidos podem apreender, que os nossos sentidos podem suportar. Pois que seria de nós se o divino, a razão e a virtude e a verdade, se mostrassem em si aos nossos sentidos? (…) O belo é assim o caminho do homem sensível para o espírito – só o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro…»
Thomas Mann, A Morte em Veneza, Relógio D’Água, Junho de 2004, pp. 71-72. [Tradução de Isabel Castro Silva] (Der Tod in Venedig, 1912)

Filme
Título: Morte em Veneza; Título original: Morte a Venezia; Ano: 1971
Realização: Luchino Visconti; Argumento: Luchino Visconti e Nicola Badalucco
Elenco principal: Dirk Bogarde (Aschenbach), Silvana Mangano, Mark Burns e Bjorn Andresen (Tadjio).

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