[Intróito: tal como havia prometido, apesar do imenso atraso devido a uma pequena turbulência emocional, eis a 2.ª e última parte do tema “Brutalidades”, aberto sábado passado com o livro de Cormac McCarthy]
Cresci a ver filmes de Cronenberg. É verdade, parece tortuoso ou eventualmente deformatório num processo salutar de construção e aperfeiçoamento da personalidade.
Ainda era adolescente na fase pós-púbere, com as excedentárias, e agora irrecuperáveis, reservas de tempo e uns parcos escudos para as sessões diárias de filmes em reposição no extinto Cinema Terço – quando aqueles me escapavam durante a denominada época comercial –, ou ainda carregando as monstruosas e inestéticas cassetes de VHS que alugava nos outrora cogumélicos clubes de vídeo, e não havia um único filme realizado pelo cineasta canadiano que não passasse pelos meus olhos de jovem cinéfilo – de qualidade ou não, isso pouco importa, na altura idolatrava John Carpenter, imagine-se.
Cronenberg, com a precisão de um relógio suíço – daqueles exorbitantemente caros –, consegue assolar-me através de uma súbita emergência síncrona de sentimentos paradoxais, culminando numa amálgama indescritível de "efeitos de prova" mutuamente exclusivos.
Cronenberg é horror, náusea, fascínio e encanto. Desde o devaneio de um opiómano com baratas falantes inspirado numa estranho romance autobiográfico de Burroughs; passando pela mais horrorosa forma de suicídio que uma mente atormentada pode conceber, bater com a própria cabeça, com a boca aberta, numa tesoura cravada no lavatório, esta última perversidade baseada num thriller de Stephen King; indo ao estranho fascínio por membros estropiados, cicatrizes colossais e corpos retalhados em acidentes de viação de Ballard; até a um útero trifurcado e uns arrepiantes e bizarros instrumentos ginecológicos de invasão. Apesar de tudo e de alguma coisa mais, Cronenberg possui o dom raro da indução da repugnância suprema no espectador ao mesmo tempo que, pela mão invisível da vivacidade da trama e da destreza cénica, o agarra sem redenção à cadeira – embora, para ser franco, tenha de referir que foi com Festim Nu de Cronenberg que inaugurei um dos raríssimos momentos na minha já longa experiência de espectador de cinema: abandonei a sala a meio da projecção do filme por pura náusea.
Promessas Perigosas, chamaram-lhe assim os habitualmente originais nomeadores portugueses, é o seu filme mais recente – Eastern Promises, estreou na passada quinta-feira nas salas de cinema portuguesas.
Neste filme, Cronenberg volta a apostar no realismo do quotidiano de degradação e de violência que enxameia sociedades contemporâneas do mundo ocidental. Se em Uma História de Violência (A History of Violence, 2005) a fábula da mundanidade e da perversão é transversal a um território que se uniformiza, jogando na interpenetração do rural e do urbano ou na diluição das fronteiras entre o local de refúgio e a inescapável montra citadina da fraqueza humana, em Promessas Perigosas Cronenberg muda o eixo para a colossal Londres e para o recrudescimento da rivalidade e da violência entre grupos rivais pertencentes ao submundo das máfias da Europa de Leste, que se digladiam ostensivamente numa guerra sem quartel nas ruas da grande metrópole, e cujos fulgor e expansão assentam na mesmíssima fragilidade ocidental, enredada na defesa cega e intransigente dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Neste filme, o cineasta canadiano, que parece haver recriado o paradigma performativo do bom vilão – cínico, cerebral, insuspeito, um bloco de gelo em ebulição interior e... mestre de artes marciais –, volta a apostar em Viggo Mortensen para protagonista, conduzindo, desta vez, a cândida, terna e lynchiana Naomi Watts para o confronto amoroso, com um lirismo explícito quase inédito nas obras do realizador.
Sobre Mortensen não há muito a dizer, está talhado para aquele papel de inexpressividade facial, mesmo quando, no ponto mais marcante em termos visuais da película, tem de enfrentar em pelote um duo de assassinos nos banhos públicos – peço perdão aos fãs, mas Mortensen lembra-me Chuck Norris no esplendor da sua cabotinagem. Todavia, Cronenberg parece saber tirar partido disso mesmo, espreme-o até ao tutano cedendo até, neste caso, aos devaneios fílmicos do actor.
Finalmente, na segunda linha encontramos duas interpretações seguras e convincentes: a do actor francês Vincent Cassel no papel do histriónico e perturbado Kirill, e a do actor alemão Armin Mueller-Stahl representando de forma magistral o abominável avozinho russo Semyon, pai do primeiro e líder de uma das facções do grupo mafioso russo Vory V Zakone.
Com Promessas Perigosas ainda não se chegou à intensidade dos aplausos, enérgicos e fervorosos, com que a crítica cinematográfica incensou no ano anterior Uma História de Violência. Classificam-no como um filme menor por comparação ao seu irmão mais velho. Pois, só para contrariar, e servindo-me livremente do recurso da comparação, gostei mais deste, sobretudo dos seus inúmeros pormenores visuais de um vermelho vivo, pulsante, que parecem simbolizar a tal debilidade (ou fraqueza, por definição) da natureza humana.
Ainda era adolescente na fase pós-púbere, com as excedentárias, e agora irrecuperáveis, reservas de tempo e uns parcos escudos para as sessões diárias de filmes em reposição no extinto Cinema Terço – quando aqueles me escapavam durante a denominada época comercial –, ou ainda carregando as monstruosas e inestéticas cassetes de VHS que alugava nos outrora cogumélicos clubes de vídeo, e não havia um único filme realizado pelo cineasta canadiano que não passasse pelos meus olhos de jovem cinéfilo – de qualidade ou não, isso pouco importa, na altura idolatrava John Carpenter, imagine-se.
Cronenberg, com a precisão de um relógio suíço – daqueles exorbitantemente caros –, consegue assolar-me através de uma súbita emergência síncrona de sentimentos paradoxais, culminando numa amálgama indescritível de "efeitos de prova" mutuamente exclusivos.
Cronenberg é horror, náusea, fascínio e encanto. Desde o devaneio de um opiómano com baratas falantes inspirado numa estranho romance autobiográfico de Burroughs; passando pela mais horrorosa forma de suicídio que uma mente atormentada pode conceber, bater com a própria cabeça, com a boca aberta, numa tesoura cravada no lavatório, esta última perversidade baseada num thriller de Stephen King; indo ao estranho fascínio por membros estropiados, cicatrizes colossais e corpos retalhados em acidentes de viação de Ballard; até a um útero trifurcado e uns arrepiantes e bizarros instrumentos ginecológicos de invasão. Apesar de tudo e de alguma coisa mais, Cronenberg possui o dom raro da indução da repugnância suprema no espectador ao mesmo tempo que, pela mão invisível da vivacidade da trama e da destreza cénica, o agarra sem redenção à cadeira – embora, para ser franco, tenha de referir que foi com Festim Nu de Cronenberg que inaugurei um dos raríssimos momentos na minha já longa experiência de espectador de cinema: abandonei a sala a meio da projecção do filme por pura náusea.
Promessas Perigosas, chamaram-lhe assim os habitualmente originais nomeadores portugueses, é o seu filme mais recente – Eastern Promises, estreou na passada quinta-feira nas salas de cinema portuguesas.
Neste filme, Cronenberg volta a apostar no realismo do quotidiano de degradação e de violência que enxameia sociedades contemporâneas do mundo ocidental. Se em Uma História de Violência (A History of Violence, 2005) a fábula da mundanidade e da perversão é transversal a um território que se uniformiza, jogando na interpenetração do rural e do urbano ou na diluição das fronteiras entre o local de refúgio e a inescapável montra citadina da fraqueza humana, em Promessas Perigosas Cronenberg muda o eixo para a colossal Londres e para o recrudescimento da rivalidade e da violência entre grupos rivais pertencentes ao submundo das máfias da Europa de Leste, que se digladiam ostensivamente numa guerra sem quartel nas ruas da grande metrópole, e cujos fulgor e expansão assentam na mesmíssima fragilidade ocidental, enredada na defesa cega e intransigente dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Neste filme, o cineasta canadiano, que parece haver recriado o paradigma performativo do bom vilão – cínico, cerebral, insuspeito, um bloco de gelo em ebulição interior e... mestre de artes marciais –, volta a apostar em Viggo Mortensen para protagonista, conduzindo, desta vez, a cândida, terna e lynchiana Naomi Watts para o confronto amoroso, com um lirismo explícito quase inédito nas obras do realizador.
Sobre Mortensen não há muito a dizer, está talhado para aquele papel de inexpressividade facial, mesmo quando, no ponto mais marcante em termos visuais da película, tem de enfrentar em pelote um duo de assassinos nos banhos públicos – peço perdão aos fãs, mas Mortensen lembra-me Chuck Norris no esplendor da sua cabotinagem. Todavia, Cronenberg parece saber tirar partido disso mesmo, espreme-o até ao tutano cedendo até, neste caso, aos devaneios fílmicos do actor.
Finalmente, na segunda linha encontramos duas interpretações seguras e convincentes: a do actor francês Vincent Cassel no papel do histriónico e perturbado Kirill, e a do actor alemão Armin Mueller-Stahl representando de forma magistral o abominável avozinho russo Semyon, pai do primeiro e líder de uma das facções do grupo mafioso russo Vory V Zakone.
Com Promessas Perigosas ainda não se chegou à intensidade dos aplausos, enérgicos e fervorosos, com que a crítica cinematográfica incensou no ano anterior Uma História de Violência. Classificam-no como um filme menor por comparação ao seu irmão mais velho. Pois, só para contrariar, e servindo-me livremente do recurso da comparação, gostei mais deste, sobretudo dos seus inúmeros pormenores visuais de um vermelho vivo, pulsante, que parecem simbolizar a tal debilidade (ou fraqueza, por definição) da natureza humana.
1 comentário:
Eu, que nem sou crítico de cinemas, proponho uma leitura deste filme em Promessas Perigosas, Cronenberg, 2007
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