terça-feira, 19 de dezembro de 2006

A Visão Monocular

Torso de Mileto (Louvre, Paris)Pior que um astigmático, míope, hipermetrope, com algum grau de estrabismo – onde se espera uma diligente correcção das malformações congénitas dados os prodígios da oftalmologia –, é um ser que, estando venturosamente privado dessas anomalias oculares ou havendo-as corrigido, dispõe de uma auto-induzida visão monocular.
Não é o impostor que se faz de ceguinho para arrebatar, pelas compaixão e indulgência alheias, uns cêntimos sem esforço. Julgo até tratar-se de um labor suficientemente fastidioso não só pela carga horária acima das quarenta horas semanais – sem direito a Segurança Social – como pela exposição às intempéries meteorológicas e às cruezas da natureza humana.
Também não me refiro ao pobre néscio que – como repete insistentemente A.L.A: coitado! – não pediu para nascer nessa condição, cujo alcance intelectual, por razões manifestamente sobre-humanas, em tempo algum alcançará – por muito que se esforce – o patamar da mediania, sendo a excelência – a la Mário Crespo – um conceito vago e longínquo.
O alvo privilegiado deste texto, apreciavelmente caceteiro, são os autoproclamados intelectuaizinhos da treta, muito hábeis nas palavras, muito certeiros na ociosa arte opinativa, que, com a autoridade de fazedores de rebanhos da incauta carneirada, atira umas pedritas bem amoladas ao telhado do próximo – e isto, claro, quando o próximo está distraído, de cócoras ou de costas voltadas – esquecendo-se que o telhado que ampara o seu corpito franzino e erudito é feito de cristal do mais fino trato.
Süskind falava-nos da terrível doença da Amnésia In Litteris na sua compilação ensaística Um combate e outras histórias. A dado passo diz assim:


«Já há muito tempo que não consigo proferir uma única palavra em debates literários sem me expor terrivelmente ao ridículo, confundindo Mörike com Hoffmannsthal, Rilke com Hölderlin, Beckett com Joyce, Italo Calvino com Italo Svevo, Baudelaire com Chopin, George Sand com Madame de Staël, etc. Se pretendo procurar uma citação da qual tenho uma ideia vaga, passo dias a esquadrinhar livros porque me esqueci do autor e porque, enquanto procuro, me perco em textos desconhecidos de autores que ninguém conhece, até finalmente ter esquecido o que é que procurava inicialmente. Como é que, neste caótico estado de espírito, poderia responder à pergunta: qual foi o livro que mudou a minha vida? Nenhum? Todos? Qualquer um – não sei.
(…) O Leitor que sofre de amnésia in litteris transforma-se indubitavelmente através da leitura, mas não o nota porque quando lê também se alteraram as tais instâncias críticas do seu cérebro que lhe fariam ver que estava a mudar. E para quem escreve, a doença seria provavelmente até uma bênção, sim, quase uma condição necessária, resgatando-o da veneração paralisante que todas as grandes obras inspiram, podendo assim adoptar uma atitude completamente desinibida perante o plágio, sem a qual não se pode desenvolver nada de original.»
Patrick Süskind, “Amnésia in litteris”, Um combate e outras histórias. Porto: Asa, 1.ª edição, Agosto de 2002 (Fnac de bolso), pp. 70-71 (tradução de Mónica Dias; obra original: Drei Geschichten und eine Betrachtung, 1986, artigos escritos entre 1976 e 1986).

Em apenas quatro palavras “precisas mudar de vida” – ou em cinco, “you must change your life” para os anglófilos ou “du musst dein Leben ändern” para os germanófilos – porque, dada a caprichosa enfermidade, «já não podes mergulhar de cabeça num texto, deves agora encará-lo com total objectividade, com consciência crítica e apurada, tens de extrapolar, de memorizar, tens de exercitar a tua memória.» (pág. 71)

E quem falou das letras, ó sociedade amnésica?
Já aqui citei e voltarei a citar um crítico, tão verrinoso como por vezes certeiro – como se chama…? –, que na semana passada – ou terá sido ontem? – proferiu:
«Sucede que a corrupção no futebol é uma ínfima parte da corrupção geral do país. E serve sobretudo para a esconder.»

Para terminar em beleza, aqui vai um leve brisa poética, que até aqui chegar, de mansinho, doce e reconfortante, começou como Furacão e depressa se metamorfoseou numa embirrenta, mediática e dissipada ventania. E depois... isto!

Moral da história: olha mais além, não cegues um olho para te igualares aos demais compatriotas. Vê a beleza que se esconde para além do que viste, claramente visto.

«O torso arcaico de Apolo

Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.»

“Archaischer Torso Apollos” de Rainer Maria Rilke, originalmente em Der neuen Gedichte anderer Teil, 1908 (tradução de Paulo Quintela) dedicado “a mon grand ami Auguste Rodin”.

Imagem: Torso Masculino (vulgo Torso de Mileto), circa 480-470 a.C. (escultura em mármore exposta no Museu do Louvre).

1 comentário:

Anónimo disse...

Muitas vezes, vê-se melhor de olhos fechados.

Gostei do excerto do Süskind.