segunda-feira, 14 de agosto de 2006

ABR – As melhores frases iniciais

Depois de conferida a minha parca biblioteca de fio a pavio, eis que consegui recolher 33 citações traduzidas em português das 100 melhores referenciadas na edição do primeiro bimestre deste ano da revista norte-americana American Book Review.
Curiosamente, há um conjunto de 18 obras – das 67 não citadas – que julgava fazerem parte do meu património bibliográfico – umas ainda em lista de espera para leitura –, que de facto não disponho. Depois há outras que decerto moram ainda em casa dos meus pais, desde que saí da sua afectuosa alçada há 9 anos atrás.
Apesar dos contratempos atrás referidos, julgo que uma parte importante das 100 citações em inglês tem aqui a sua correspondência em português. Uma língua que se quer viva também se mede pelas obras estrangeiras que para ela são traduzidas – já aqui referi o caso da língua dinamarquesa (embora não seja comparável com o português dada a reduzidíssima dimensão de falantes), onde as próprias autoridades incentivam a tradução através da estreia mundial de obras de autores consagrados para que a sua população leitora não se refugie na sucedânea língua inglesa.
Finalmente, com esta experiência pude constatar o enorme conjunto de autores cujas obras não estão sequer traduzidas para a nossa língua. O caso mais gritante dá-se com o prodigioso escritor norte-americano – eterno candidato ao Nobel da Literatura – Thomas Pynchon, que dos seus 5 romances e 1 livro de contos apenas 2 estão traduzidos para a língua de Camões – “V.” e “O Leilão do Lote 49” –, que para agravar o panorama estão esgotados há anos.

Eis a lista (100 Best First Lines from Novels):

1.ª) «Tratem-me por Ismael.» Herman Melville, Moby Dick

2.ª) «É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma grande fortuna necessita de uma esposa.» Janes Austen, Orgulho e Preconceito

4.ª) «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.» Gabriel García Márquez, Cem anos de Solidão

5.ª) «Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade.» Vladimir Nabokov, Lolita

6.ª) «Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes não.» Lev Tolstoi, Anna Karenina

8.ª) «Era um dia claro e frio de Abril, nos relógios batiam as treze.» George Orwell, Mil novecentos e oitenta e quatro

10.ª) «Sou um homem invisível.» Ralph Ellison, O Homem Invisível

12.ª) «Vossemecês não me conhecem se não leram um livro chamado As aventuras de Tom Sawyer, mas isso não tem importância.» Mark Twain, As aventuras de Huckleberry Finn

13.ª) «Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa mal.» Franz Kafka, O Processo

14.ª) «Estás para começar a ler o novo romance Se numa noite de Inverno um viajante de Italo Calvino.» Italo Calvino, Se numa noite de Inverno um viajante

15.ª) «Não tendo alternativa, o sol brilhava sobre o nada de novo.» Samuel Beckett, Murphy

16.ª) «Se estão mesmo interessados nisto, então a primeira coisa que devem querer saber é onde é que nasci, e como foi a porcaria da minha infância, o que faziam os meus pais e tudo antes de eu ter nascido, e toda essa treta estilo David Copperfield, mas não estou nada para aí virado, para dizer a verdade.» J. D. Salinger, À espera no centeio

17.ª) «Era uma vez, nos doces tempos de outrora, uma vaca-muu que vinha pela estrada abaixo, e essa vaca-muu que vinha pela estrada abaixo encontrou um amor miúdo chamado bebé-petenino…» James Joyce, Retrato do Artista quando Jovem

19.ª) «Quem me dera que o meu pai, ou a minha mãe, ou ambos, para dizer a verdade, uma vez que ambos estavam de serviço na ocasião, tivessem prestado mais atenção ao que estavam a fazer quando me conceberam; tivessem eles tomado em devida conta o quanto eu dependia daquilo que estavam então a fazer;–já que não estava em causa apenas a produção de um Ser racional, mas possivelmente a boa formação e temperatura do seu corpo, talvez até o seu génio e a qualidade do seu espírito;–e, apesar do que pudessem pensar em contrário, mesmo a fortuna da sua casa podia ser determinada pelos humores e disposições que fossem então dominantes:
––Tivessem eles tomado tudo isto em devida conta, e procedido em conformidade,––estou verdadeiramente convencido que eu teria feito outra figura no mundo, muito diferente daquela em que o leitor provavelmente me há-de ver.» Laurence Sterne, A vida e opiniões de Tristram Shandy

21.ª) «Pomposo, roliço, Buck Mulligan, veio do alto da escada, trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha.» James Joyce, Ulisses

24.ª) «Foi uma chamada para o número errado que despoletou tudo, o telefone a tocar três vezes no silêncio da noite, e a voz do outro lado da linha a perguntar por alguém que não era ele.» Paul Auster, “Cidade de Vidro”, A Trilogia de Nova Iorque

25.ª) «Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas.» William Faulkner, O som e a fúria

27.ª) «Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não há muito tempo que vivia um fidalgo dos de lança em cabide, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor.» Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha

28.ª) «Hoje, a mãe morreu.» Albert Camus, O Estrangeiro

29.ª) «Lin Kong regressava todos os Verões à aldeia do Ganso para se divorciar da mulher, Shuyu.» Ha Jin, À Espera

31.ª) «Sou um homem doente… Sou um homem mau.» Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo

32.ª) «Agora, onde? Agora, quando? Agora, quem?» Samuel Beckett, O Inominável

37.ª) «Mrs. Dalloway disse que ela própria ia comprar as flores.» Virginia Woolf, Mrs. Dalloway

40.ª) «Durante muito tempo fui para a cama cedo.» Marcel Proust, Em busca do tempo perdido (vol. I): Do lado de Swann

43.ª) «Fui a sombra do ampalis despenhando-se / No céu falso da vidraça;» Vladimir Nabokov, Fogo Pálido

48.ª) «Era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe.» Ernest Hemingway, O Velho e o Mar

50.ª) «Comecei por dizer que nasci duas vezes: primeiro como menina bebé, num dia invulgarmente limpo na cidade de Detroit, em Janeiro de 1960. Depois, outra vez, como rapaz adolescente, numa sala de urgências perto de Petosky, Michigan, em Agosto de 1974.» Jeffrey Eugenides, Middlesex

53.ª) «Era um prazer queimar.» Ray Bradbury, Fahrenheit 451

56.ª) «Nasci na cidade de Iorque no ano de 1632, originário de uma boa família, mas estrangeira no país. O meu pai, natural de Brema, dedicou-se ao comércio em Hull, onde adquiriu uma fortuna muito confortável. Mais tarde, retirou-se dos negócios e foi viver para Iorque, onde casou com minha mãe, que pertencia à família Robinson, uma das melhores do Condado. Daí deriva o meu nome, Robinson Kreutznaer, a seguir transformado por corruptela, muito corrente em Inglaterra, no de Crusoe, com qual hoje se chama e se assina a minha família e eu próprio também. Os meus companheiros nunca me chamaram de outro modo.» Daniel Defoe, As Aventuras de Robinson Crusoe

61.ª) «Nunca senti maior apreensão ao começar um romance.» W. Somerset Maugham, O Fio da Navalha

64.ª) «Era eu rapaz, e ainda impressionável, meu pai deu-me um dia um conselho que, desde então, me ficou às voltas na cabeça.» F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby

66.ª) «“Para se nascer de novo”, entoou Gibreel Farishta, caindo dos céus, “é preciso primeiro morrer”.» Salman Rushdie, Versículos Satânicos

67.ª) «Era um Verão estranho e sufocante, aquele em que electrocutaram os Rosenberg. Estava então em Nova Iorque sem saber ao certo porquê.» Sylvia Plath, A Campânula de Vidro

69.ª) «Posso não estar bom da cabeça, mas tudo me parece claro, pensou Moisés Herzog.» Saul Bellow, Herzog

75.ª) «Para o fim do Verão daquele ano vivíamos numa aldeia que, para lá do rio e da planície, confrontava as montanhas.» Ernest Hemingway, O Adeus às Armas

81.ª) «Vaughan morreu ontem ao chocar com o carro pela última vez.» J. G. Ballard, Crash

94.ª) «Havia na cidade dois mudos que eram inseparáveis.» Carson McCullers, Coração Solitário Caçador

97.ª) «Ele – pois não poderia haver dúvidas quanto ao seu sexo, embora a moda da época contribuísse até certo ponto para o dissimular – estava a golpear uma cabeça de mouro suspensa das vigas do telhado.» Virginia Woolf, Orlando

98.ª) «No primeiro dia de 1969, lá bem alto sobre o Pólo Norte, dois professores de Literatura Inglesa aproximavam-se um do outro à velocidade idêntica de 1900 quilómetros por hora.» David Lodge, A Troca

Notas:
(1) As referências bibliográficas serão publicadas em breve e na íntegra no blogue
Data.
(2) A lista “apócrifa” ou se preferirem “em versão beta” vai continuando a ser preenchida, com a colaboração de todos os bloguistas nacionais que estejam interessados.

8 comentários:

Anónimo disse...

Defoe ...

Anónimo disse...

Parca biblioteca?!? E se fosses gozar o Camões?
Bom, agora a sério: obrigado por me lembrares de alguns destes livros, os quais faço questão de revisitar, ainda que dentro de alguns anos.
Abraço!

Anónimo disse...

Aí vai mais uma:

" Só agora Amaro acredita que a primavera chegou: de sua janela vê Clarissa a brincar sob os pessegueiros floridos. As glicínias roxas espiam por cima do muro que separa o pátio da pensão do pátio da casa vizinha. O menino doente está na sua cadeira de rodas; o sol lhe ilumina o rosto pálido, atirando-lhe sobre os cabelos um polvilho de ouro. Um avião cruza o céu, roncando - asas coruscantes contra o azul nítido."

" Clarissa" , Erico Veríssimo

Anónimo disse...

"Na vida , o essencial é emitirem-se opinões a priori, a propósito de tudo. Efectivamente, bem se vê que as massas erram e os indivíduos têm sempre razão. É forçoso que a tal respeito nos abstenhamos de deduzir regras de conduta: para serem seguidas, estas não devem ter necessidade de ser formuladas. Existem apenas duas coisas: o amor, de todas as maneiras, com raparigas belas, e a música de Nova Orleães ou Duke Ellington. O resto devia desaparecer, porque é feio, e as poucas páginas de demonstração que se seguem vão buscar toda a força ao facto de a história ser inteiramente verdadeira, já que a imaginei de uma ponta a outra. A sua realização material, propriamente dita, consiste de uma forma essencial na projecção da realidade, em atmosfera rebatida e aquecida, sobre um plano de referência irregularmente ondulado e apresentando distorção. Como se vê, um processo confessável, a havê-los."

"L'ECUME DES JOURS" - Boris Vian

José Henriques- RedFish

Anónimo disse...

Caro José,
Obrigado pelo prólogo de A Espuma dos Dias que aqui já havia mencionado.
Um abraço

Anónimo disse...

O Vício de Forma lembra, aqui (http://vicio-de-forma.blogspot.com/2005/10/ultimato.html) a primeira linha do Teatro de Sabbath, de Roth: "ou páras de foder outras ou então está tudo acabado."

Anónimo disse...

Obrigado pela colaboração. Todavia, a abertura do Teatro de Sabbath de P. Roth já foi sugerida pelo João Gonçalves do Portugal dos Pequeninos, e já consta da lista alternativa na posição 18.

Anónimo disse...

Vi que a frase inicial do do Quixote já foi referida mas sempre preferi o Prólogo:
"Desocupado lector:" (só isto já seria suficiente)
"sin juramento me podrás creer que quisiera que este libro, como hijo del entendimiento, fuera el más hermoso, el más gallardo y más discreto que pudiera imaginarse. Pero no he podido yo contravenir al orden de naturaleza, que ella cada cosa engendra su semejante."