«Glenn Gould said, "Isolation is the indispensable component of human happiness."» [Contraponto] «How close to the self can we get without losing everything?»
Don DeLillo, “Counterpoint”, Brick, 2004.
quarta-feira, 30 de agosto de 2006
Huracanes
domingo, 27 de agosto de 2006
sábado, 26 de agosto de 2006
Frases iniciais exemplares (v. beta #35 a #40)
Luís, nunca discordei da sua questão “de nenhuma frase inicial ser realmente exemplar se não revelar a exemplaridade de um nome de autor”. Aliás, afirmei categoricamente que um dos trabalhos mais difíceis de um jurado – caso a seriedade deste exercício, meramente lúdico-literário, a isso obrigasse – consistia na capacidade de dissociação da frase inicial da obra de ficção do seu emérito autor – veja-se a lista da ABR e atente-se, por exemplo, nos dez primeiros nomes: Melville, J. Austen, Pynchon, García Márquez, Nabokov, Tolstoi, J. Joyce, Orwell, Dickens e R. Ellison.
Muito poderia ser acrescentado a este debate deveras interessante, todavia faltam-me as habilitações literárias necessárias – entenda-se por especializadas – para discutir Literatura acima do nível de “apenas amante”.
Há autores que perduram e outros que, justamente ou não, caem pela punição do olvido.
Em suma, 40 frases, 25 resultaram do contributo da blogosfera (de 17 blogues diferentes).
Obrigado pelo contributo e só espero que vos tenha dado tanto prazer em lê-la e/ou ajudá-la a construir como eu tive em receber e publicar as Vossas citações.
Parafraseando o Pedro, que deve ter sido pago ou então é accionista da dita empresa para proferir a dita frase: Há coisas fantásticas, não há!?
#35, contribuição de Henrique Fialho, do blogue Insónia:
«Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros.»
Mário de Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina
(Caminho, 1.ª edição, Novembro de 2003, pág. ?)
#36, contribuição de Pedro Vieira, do blogue irmaolucia:
«Quando o canalizador Joseph Bloch, que tinha sido um conhecido guarda-redes, se apresentou ao trabalho uma manhã, soube que fora despedido.»
Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty
(Relógio D’Água, 1987, pág. 9; Tradução de Maria Adélia Silva Melo; Obra Original: Die Angst des Tormanns beim Elfmeter, 1970)
#37, contribuição de uma leitora via correio electrónico:
«Não se escreve melhor porque se escreveu muito. Às vezes, vou surpreender nas páginas antigas assinadas pelo meu punho um tom perfeito em que a imaginação ronda como uma madrinha incapaz de envelhecer e de perder a razão. A razão é a mesma, a coberto das longas provações das decepções, da experiência, de tudo.»
Agustina Bessa-Luís, Jóia de Família
(Guimarães, 5.ª edição, Novembro de 2002, p. 7)
#38, contribuição de Mónica Granja, do blogue Linha do Norte:
«Cannery Row, em Monterey, na Califórnia, é um poema, um fedor, uma estridência, uma gradação de luz, um som, um vício, uma nostalgia, um sonho.»
John Steinbeck, Bairro de Lata
(Verbo, 1972, pág. ?; Tradução de Luísa Maria de Eça Leal; Obra Original: Cannery Row, 1945)
#39, contribuição de Luís Mourão, do blogue Manchas:
«De avô a bisneto, os Gastões conquistaram toda a Azinheira e passaram para lá do rio, para depois perderem até o que não tinham. Foi só então que se soube que mesmo o nome era usurpado: eram Oliveira, de origens obscuras e misturadas, nascidos decerto em desterro e temperados pela maldição.»
Jerónimo Bemposto, Terras altas (1969)
(Nota: como aqui foi referido, não foi encontrada qualquer referência bibliográfica ou sequer biográfica do autor justissimamente esquecido)
#40, contribuição de Sérgio Lavos, do blogue Auto-Retrato:
«Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia.»
Albert Camus, O Mito de Sísifo
(Livros do Brasil, 1.ª edição, Setembro de 2005, pág. 15; Tradução de Urbano Tavares Rodrigues; Obra Original: Le mythe de Sisyphe, 1942)
Nota: Esta obra é um ensaio de Albert Camus, logo fugiu ao critério estabelecido na construção da lista. Todavia, dada a eminência do autor – também romancista –, já citado pela sua obra O Estrangeiro pertencente ao ciclo do absurdo do qual este ensaio faz parte, julguei fundamental a sua citação no conjunto das frases iniciais exemplares. Daqui por diante estabelecer-se-á relativamente às obras de não-ficção um critério casuístico*.
*escrito ontem, após adicionar a citação de Camus sugerida pelo Sérgio Lavos. Terminou em beleza!
sexta-feira, 25 de agosto de 2006
A obra e o autor
Atrevo-me a recuar uma etapa nesse processo, isto é, a própria escolha no processo de selecção de um livro no escaparate de uma livraria, fiel amigo que nos irá acompanhar nos próximos tempos – horas ou dias conforme a disposição do leitor e a dimensão da obra e da abstracção que a narrativa exige –, não é, nem é presumível que o seja, inócua. Normalmente, e principalmente se o autor nos é mais ou menos desconhecido, seguimos a recomendação dos críticos – que nos é transmitida sob as mais variadas formas –, dos amigos e de gente que reputamos como sensivelmente próxima dos nossos gostos literários. Depois há todo o processo de Marketing que envolve a publicação da obra, desde o texto afixado na badana, aos chavões extraídos de publicações de autoridade literária certificada, até às entrevistas, sessões de autógrafos e/ou de leitura, concedidas pelos autores na vizinhança do seu lançamento. A própria truculência idiossincrática – fidedigna ou malabarismo publicitário – funciona como um meio de promoção, como refere o Vasco nos casos que citou.
O Luís estabelece o paralelismo entre a vida e a obra já publicada de José Saramago. Distingue um Saramago avisado e assertivo – diria mais, categórico, polémico e assaz redondo –, enquanto figura pública, dos narradores dos seus romances. Neste aspecto, confesso que a minha qualificação de rotundidade intelectual ao Nobel autor me impediu, até ao momento em que escrevo este texto, de ler qualquer exemplar da sua vasta obra de ficção. Detenho, é um facto, dois livros do autor na minha estante – Todos os nomes e Ensaio sobre a cegueira – que, todavia, não tive a audácia, ou então uma vontade desmedida, para os sequer abrir. É o caso típico da contaminação que a imagem – genuína ou estudada – de um autor provoca no leitor que potencialmente poderá comprar e digerir as suas obras.
No entanto, no caso de Saramago, não experimentei a fase última para uma correcta avaliação da eventual indissociabilidade, ainda não o li. Contudo, essa experiência foi por mim vivida há pouco mais de duas ou três semanas com a sua compagnon de route, também Nobel da Literatura, Nadine Gordimer, a propósito da leitura da sua última obra – semifinalista do Booker Prize de 2006 – «Faz-te à vida!»
Nadine Gordimer, fervorosa lutadora contra o apartheid no seu país, militante do partido de Nelson Mandela, o Congresso Nacional Africano (ANC), é, todavia, uma defensora acérrima da ditadura cubana liderada pelo torcionário Fidel Castro, ao mesmo tempo que se posiciona no espectro dos intelectuais que abjuraram a recente intervenção americana no Iraque, chegando a afirmar a este propósito que «o factor comum nos actuais conflitos é a grande disparidade entre ricos e pobres e o racismo subliminar que, debaixo dos sete véus da democracia, continua a justificá-la.» [tradução livre] e, por outro lado, é a principal signatária de um manifesto que se escandalizava com «as violações massivas e sistemáticas dos direitos humanos promovidas em nome da chamada guerra contra o terrorismo» [tradução livre] perpetradas pelos Estados Unidos e pela União Europeia, esquecendo-se da génese desse combate entre democracia e teocracia e/ou autocracia.
A história do seu último romance arrepiou-me profundamente no seu início, uma vez que se assemelha, embora num contexto diverso, a um longo, recente e assaz doloroso episódio por que passou a minha vida há cerca de quatro anos, e que me deixou uma marca indelével que teve o condão de modificar radicalmente as minhas formas de estar e enfrentar a vida.
Todavia, a dado passo, Gordimer entra num longo e fastidioso solilóquio onde introduz a sua visão tão própria do mundo actual, condicionando o romance segundo essa perspectiva eminentemente política. Ou seja, se tive as minhas reservas no momento em que adquiri a obra, votando-a ao purgatório apenas pelo meu juízo de valor apriorístico, quando o encerrei em definitivo dei por mim a não conceder grandes hipóteses a uma nova oportunidade à autora sul-africana.
Entretanto tive a informação que Mrs. Gordimer já me enviou uma carta onde expõe a sua perspectiva relativamente à sua última obra e a mensagem subliminar nela contida.
Eu confesso que já estou preparado, à laia de Lech Walesa, a perdoar-lhe pela razão mais estapafúrdia – o simples gesto explicativo, mesmo que desprovido de substância, é apenas o leitmotiv para rever o arrependido posicionamento – declarando que a justificação é «convincente» e que «a partir de agora deixei de estar em conflito com» Mrs. Gordimer [adaptação].
quinta-feira, 24 de agosto de 2006
As frases [actualizado]
Charles B. Harris, o chefe editorial da revista norte-americana American Book Review, referiu, a propósito da construção da lista das 100 melhores frases iniciais na sua revista, que uma das dificuldades deste exercício advinha da possível contaminação de um julgamento, que se pretendia imparcial, quando na presença de um autor consagrado. Isto é, sobre o painel de jurados propenderia um conjunto de condicionalismos fortemente subjectivos na medida em que, considerando-se à partida um conjunto de homens das letras, os juízos de valor apriorísticos estão necessariamente presentes e resultam do estrito cumprimento diário das tarefas que definem a sua actividade profissional.
É verdade que o resultado final poder-se-á traduzir por uma lista plena de condicionantes de vária ordem, por exemplo geográfica, cultural e linguística. Porém, como alguém já referiu, este tipo de iniciativas vale o que vale, e neste caso revelou-se como um exercício deveras excitante para o simples amante das letras, colmatado pela deliciosa interactividade que, como já disse por diversas vezes, é o sal da blogosfera.
O desafio do Luís Mourão – relembrar um leque de autores, que por uma série de razões, foram esquecidos – tem o condão de elevar este exercício, meramente recreativo, a um patamar que jamais pensei conseguir alcançar – porventura por uma declarada fissura no pacientemente erigido muro da minha auto-estima – quando no início deste mês encetei este entretenimento com laivos literários.
Bem-haja Luís.
Nota: dada a minha ausência do país na próxima semana – para gozar umas merecidas férias –, tentarei aqui colocar, antes de partir, o maior número de citações possível, resultantes dos contributos oriundos da blogosfera que chegam, numa base diária, à minha caixa de correio electrónico.
[Adenda] Numa curta, porém exaustiva, busca na rede não foi encontrada qualquer referência tanto biográfica como bibliográfica ao tal autor justissimamente esquecido, mesmo recorrendo ao extenso arquivo da Biblioteca Nacional. Quiçá Jerónimo Bemposto não dará o mote a uma obra futura de Carlos Ruiz Zafón sob o título Terras altas, nome de romance que repousa no Cemitério dos Livros Esquecidos.
quarta-feira, 23 de agosto de 2006
Frases iniciais exemplares (v. beta #32 a #34)
Deixo ficar três aberturas que qualifico como exemplares:
#32 «Aí vêm eles, marchando para a luz do sol americano.»
Don DeLillo, Mao II
(Relógio D’Água, Junho de 2004, pág. 11; Tradução de José Miguel Silva; Obra Original: Mao II, 1991)
#33 «Faço questão de assegurar com toda a clareza que não tenho qualquer intenção de colocar a minha pessoa num lugar de destaque, ao escrever algumas palavras acerca de mim mesmo e das minhas próprias actividades, antes de iniciar o relato da vida do finado Adrian Leverkühn, a primeira e certamente muito provisória biografia do saudoso homem e músico genial, que o destino tão terrivelmente assolou, engrandecendo-o e derribando-o.»
Thomas Mann, Doutor Fausto
(Dom Quixote, 2.ª edição, Março de 1999, pág. 9; Tradução de Herbet Caro, com revisão para Portugal por José Jacinto da Silva Pereira; Obra Original: Doktor Faustus, 1947)
#34 «O meu sofrimento deixou-me triste e desanimado.»
Yann Martel, A Vida de Pi
(Difel, 7.ª edição, Setembro de 2005, pág. 19; Tradução de António Pescada; Obra Original: Life of Pi, 2002)
Frases iniciais exemplares (v. beta #28 a #31)
No que diz respeito a Cela optei por introduzir a citação na língua original – tal como o Manuel me enviou – uma vez que não disponho da obra, nem consegui encontrar a sua tradução. Todavia, o castelhano é uma língua ibérica – a qual consta da minha habla e/ou escrita quase diária –, de fácil entendimento pela generalidade dos portugueses.
Eis os contributos:
#28, contribuição de Henrique Fialho, do blogue Insónia:
«O melhor seria escrever os acontecimentos dia a dia.»
Jean-Paul Sartre, A Náusea
(Europa-América, 1976, pág. 7; Tradução de António Coimbra Martins; Obra Original: La nausée, 1938)
#29, contribuição de Mónica Granja, do blogue Linha do Norte:
«O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito!»
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser
(Dom Quixote, 26.ª edição, Junho de 2004, pág. 1; Tradução de Joana Varela; Obra Original: Nesnesitelná lehkost byti, 1984)
#30, contribuição de Luís Miguel Oliveira, do blogue As Aranhas:
«O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.»
Eça de Queiroz, A cidade e as serras
(Livros do Brasil, 1981, pág. ?; Publicado originalmente em 1901 – publicação póstuma)
#31, contribuição de Manuel A. Domingos, do blogue Versões:
«Yo, señor, no soy malo, aunque no me faltarían motivos para serlo. Los mismos cueros tenemos todos los mortales al nacer y sin embargo, cuando vamos creciendo, el destino se complace en variarnos como si fuésemos de cera y en destinarnos por sendas diferentes al mismo fin: la muerte. Hay hombres a quienes se les ordena marchar por el camino de las flores, y hombres a quienes se les manda tirar por el camino de los cardos y de las chumberas.»
Camilo José Cela, La familia de Pascual Duarte
(Ediciones Destino, 19ª Edición, 1989, pág. ?)
Novas Ligações
A blogosfera, nas suas características desventuradamente inextricáveis da fatuidade, do lustroso ringue de vinganças veladas e de elos quebrados por amuo ou até pela simples consideração narcísica de superioridade ante uma imensa maioria, por vezes imita a vida – aquela meretriz que se enleia, dissoluta, nas nossas convulsões sinápticas. Confesso que já não tenho a mínima pachorra para esse tipo de atitudes.
Cá vou continuando enquanto o prazer retirado pela minha presença em linha for superior ao desgaste provocado por certo tipo de comportamentos, mesquinhos e pueris.
Mantenho-me por aqui, norteando-me por uma prerrogativa que jamais abandonarei e que mantém viva a coluna da direita: a reciprocidade, como valor demonstrativo da consideração e da estima por uma multiplicidade de caracteres, gente anónima, que escreve na blogosfera para ser lida.
A desconexão, o desligamento ou, se se preferir, o deslincamento é o paroxismo do amuo.
Uns apagam uma ligação por uma altercação – que, na maioria das vezes, finda a efervescência, regressa à barra –, outros apagam-na pela tardia descoberta da não identificação. Depois há os critérios mais disparatados, que não tenho outro remédio senão aceitar, para plantar hiperligações a outros blogues, como por exemplo, a aferição milimétrica do grau de exaltação e de putativo sectarismo em certos assuntos da contraparte candidata a ligação.
Mas a estirpe mais repulsiva são os plantadores de ligações compulsivos, republicando o blogue dúzias de vezes por dia para que a ligação emerja das águas agitadas do Technorati, para depois, sem alguma razão que o justifique, se apagar a ligação precedentemente estabelecida após a verificação do aumento da média diária de visitas, apenas permanecendo aquelas que supostamente o reputam como um erudito, isto é, depois da não aquilatada fama evanescente, as ligações só se estabelecem se o proprietário é mediático, um possível impulsor de uma carreira almejada – são os arrivistas.
Bom, as considerações, em tom de desabafo, já vão longas, mas tinham de ser postadas.
Na coluna da direita passarão a figurar, a partir de hoje, novos blogues que entretanto fui descobrindo e que, de certa forma, resultaram da tal reciprocidade pública e privada, grande parte dela oriunda da iniciativa que aqui levei a cabo, com a ajuda de dezenas de bloguistas, na construção de uma lista alternativa de frases exemplares de abertura de obras de ficção.
Ei-los:
- O Afinador de Sinos, por A. Pedro Correia;
- Disperso Escrevedor, por Manuel José Matos Nunes;
- Floresta do Sul, um blogue do escritor António Manuel Venda;
- Forja de Palavras, por Scorpio;
- Francisco del Mundo, pelo próprio, meu caríssimo visitante e comentador;
- Linha do Norte, blogue colectivo onde escreve uma das maiores contribuidoras para a construção da lista de frases iniciais, M de Campanhã;
- Pedro Chagas Freitas, pelo próprio;
- Pensar Ansiães, blogue colectivo transmontano e duriense;
- Praça da República em Beja, ares do Alentejo por nikonman;
- Prima Scripta, por Jorge Andrade Silva;
- Viagens Interditas, por M. M. Botelho.
Boas divagações!
terça-feira, 22 de agosto de 2006
Dependências
Ar puro, silêncio e beleza exuberante; passeios à meia-noite aromatizados pela exalação dos cachos bojudos à espera de Setembro; constelações definidas até ao último pormenor sem o ruído das luzes… grilos, milhares deles imitando o barulho da terra após o sol abrasador da jorna transmontana. Brincadeiras com a minha filha e com os seus amigos fiéis que teimam em afagar-nos, apesar das cada vez mais longas ausências. Estás maior Fred – noventa quilos! Sempre o mesmo brincalhão, catraio Rex, arraçado de Perdigueiro Português, o pai, que um dia se foi pelo rodado de um camião cujo miserável usufrutuário fugiu sem te auxiliar; tu deitado no alcatrão sombrio e quente, derretendo o sangue... preto e vermelho aspergido de golfadas de sangue que te saíam da boca até ao último silvo.
Regressei. Nervos em franja. Monóxido de carbono. Smog. Buzinas. As mesmas caras fechadas. Os sorrisos de conveniência. Os rios, um poluído e o outro que vai poluindo a cidade com o beneplácito das gentes adormecidas. Buracos. Semáforos. O barulho do moinho de café enquanto queimo a língua naquela água fervida tingida de negro. O tilintar das moedas nas máquinas que me sentenciam a morte prematura. Caixas com frontispícios acabrunhados, querendo ser sérias, mostrando a autoridade moral das substâncias espartanamente guardadas em papel de prata com que legalmente se entranham no nosso organismo para encararmos o mal dos outros, ou até para viver indolente e harmoniosamente com o mal que os outros infligem. Bem-vindo de novo ao Inferno!
Ainda por cá andam os mesmos cabrões? Fuma um cigarro que isso passa. Toma um café. Escreve. Medita. Lê. Joga Ténis. Trabalha. Fode. Fode muito. Bebe um copo para o caminho. Senta-te e descansa. Esta pastilha vai ajudar-te a…
Vou-me embora… por dez dias esquecer a merda do país ou talvez da emproada civilização que me embalou e me trouxe ao mundo.
Porém, ainda vou ficando. Estou cansado para lutar. Já lutei e cada vez mais me vão enfiando no buraco que me faz recordar a insignificância da minha luta, a escassez das minhas forças numa batalha desigual. Vem aí Setembro. À luta!
segunda-feira, 21 de agosto de 2006
Frases iniciais exemplares (v. beta #25, #26 e #27)
Eis o contributo:
#25, contribuição de Mónica Granja, do blogue Linha do Norte:
«Teve uma infância estranha”, disse Austin. “Em última análise, todas as infâncias o são”, disse Mister DeLuxe.»
Dinis Machado, O que diz Molero
(Bertrand, 1.ª edição, 1977, pág. ?)
#26, contribuição de Carla de Carvalho, do blogue Welcome to Elsinore:
«Foi um suicídio longamente premeditado, pensei, e não um acto espontâneo de desespero.»
Thomas Bernhard, O Náufrago
(Relógio D’Água, 1.ª edição, 1987, pág. ?; Tradução de Leopoldina Almeida; Obra Original: Der untergeher, 1983)
#27, contribuição de Victor Figueiredo, do blogue Textos para Tudo:
«A aldeia de Holcomb fica situada no meio dos planaltos de trigo, no Oeste do Kansas, numa área isolada a que os demais habitantes do Estado chamam “lá para diante”.»
Truman Capote, A sangue-frio
(Dom Quixote, 1.ª edição, Fevereiro de 2006, pág. 17; Tradução de Maria Isabel Braga; Obra Original: In Cold Blood, 1966)
sábado, 19 de agosto de 2006
Em Beja…
Com um especial agradecimento ao Nikonman, e retenho a inquietação: «quantos pecados e crimes não estarão nestas lombadas?»
E transcrevo esta enunciação do Tiago Barbosa Ribeiro:
«A estética tem pouco a ver com a ética. Alguns dos piores canalhas deste mundo são escritores. O nosso acervo colectivo está repleto de sacaninhas que escreveram excelentes nacos de prosa. Nobelizados. Ignorados. Não interessa.»
Frases iniciais exemplares (v. beta #23 e #24)
Atrevo-me. Declaro que aqui arrostarei os inflexíveis cânones da intelectualidade e da erudição literárias… resolvi juntá-los no mesmo texto. Quem?
Cabrera Infante e Bukowski!
O mesmo que combinar uns petit fours aux fromages com uma pratalhada de cozido à portuguesa. Ambos deliciosos mas… Paciência! Então se meter sexo…!
#23 «O que nunca dissemos a ninguém foi que nós também fazíamos coisas debaixo do camião.»
Guillermo Cabrera Infante, Três Tristes Tigres
(Dom Quixote, 1.ª edição, Maio de 1997, pág. 25; Tradução de J. Teixeira de Aguilar e Maria do Carmo Abreu; Obra Original: Tres tristes tigres, 1967)
#24 «Eu tinha cinquenta anos e há quatro que não ia para a cama com uma mulher.»
Charles Bukowski, Mulheres
(Dom Quixote, 1.ª edição, Julho de 2001, pág. 9; Tradução de Fernando Luís; Obra Original: Women, 1978)
sexta-feira, 18 de agosto de 2006
Um Dia de Cão...
Sidney Lumet's Dog Day Afternoon
«Kiss me. When I'm being fucked, I like to get kissed a lot.»
Frases iniciais exemplares (v. beta #19, #20, #21 e #22)
Todavia, foi o Luís Januário, autor do blogue A Natureza do Mal, o verdadeiro precursor da ideia, vide este texto colocado no seu blogue em Junho de 2005, que se inicia com uma referência a uma entrevista de Jorge Luis Borges, na qual este terá afirmado que “a frase mais importante de um romance é a primeira”. Curiosamente, o Luís Januário dá o mote citando a primeira frase do Dom Quixote de Cervantes – 27.ª classificada na lista da American Book Review.
Feita a justíssima referência, relembro que, neste blogue, esta ideia surgiu com o artigo publicado na American Book Review no início deste ano (vol. 27, n.º 2), tal como aqui expliquei. A lista da ABR apenas foi publicada com as traduções disponíveis – irá ser publicada na íntegra para a próxima semana. As frases que integram a listagem alternativa são publicadas neste blogue e compiladas no blogue subsidiário Data neste ficheiro.
Bem, regressemos às frases e aos prestimosos e notáveis contributos da blogosfera para o enobrecimento da lista alternativa (ou versão beta).
Destaco a contribuição de Jorge Andrade Silva que, na mensagem de correio electrónico que me enviou, afirmou pertencer ao “Imperador da nossa língua” – não poderia estar mais de acordo:
#19, contribuição de Jorge Andrade Silva, do blogue Prima Scripta:
«Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme a seu maior apetite nem mais superior a toda sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca ouvida História.»
Padre António Vieira, História do Futuro
(Brasil: Universidade de Brasília, 2005, pág. ?; Organização da obra por José Carlos Brandi Aleixo; Publicado originalmente em Portugal em 1718)
#20, contribuição de Manuel José Matos Nunes, do blogue Disperso Escrevedor:
«Só agora Amaro acredita que a primavera chegou: de sua janela vê Clarissa a brincar sob os pessegueiros floridos. As glicínias roxas espiam por cima do muro que separa o pátio da pensão do pátio da casa vizinha. O menino doente está na sua cadeira de rodas; o sol lhe ilumina o rosto pálido, atirando-lhe sobre os cabelos um polvilho de ouro. Um avião cruza o céu, roncando – asas coruscantes contra o azul nítido.»
Erico Veríssimo, Clarissa
(Livros do Brasil, 9.ª edição, 1979, pág. ?)
#21, contribuição de Mónica Granja, do blogue Linha do Norte:
«O autor actual deste livro garante que o leitor não será condenado a morrer depois de o ter lido, como foi o destino dos seus predecessores, em 1691, quando o Dicionário Khazar ainda estava na sua primeira edição e quando o seu primeiro autor ainda vivia.»
Milorad Pavic, Dicionário Khazar: romance-enciclopédia em 100.000 palavras
(Dom Quixote, 1.ª edição, 1990, pág. ?; Tradução de Herbert Daniel; Obra Original: Hazarski Recnik, 1984)
#22, contribuição de Rui Miguel Brás, do blogue Coisas:
«Dois ex-amantes de Molly Lane estavam à espera à porta da capela crematória, de costas para o frio de Fevereiro. Tudo aquilo já tinha sido dito, mas eles voltaram a dizê-lo.»
Ian McEwan, Amesterdão
(Gradiva, 7.ª edição, Outubro de 2000, pág. 11; Tradução de Ana Falcão Bastos; Obra Original: Amsterdam, 1998)
Frases iniciais exemplares (v. beta #17 e #18)
Ora, vejamos:
Mantenho a regra de alternar os autores (bloguistas) das inúmeras contribuições que tenho vindo a receber sobre frases iniciais que, por um critério inerente ao gosto de cada um, são consideradas como dignas de distinção sob a forma de citação na blogosfera. Porém, surge a primeira excepção: Philip Roth.
Um dos meus guias espirituais em assunto de obras de ficção teria de ser a excepção, isto é, o motivo que conduz à quebra de uma norma estatuída nos primórdios desta listagem, a de não repetir o autor em citações próximas na disposição ordenada da própria lista.
O João Gonçalves – um dos meus preferidos entre os profissionais da bloga – desafiou-me a incluir nesta lista a frase de abertura de Teatro de Sabbath. Será incluída. Todavia, a sua inclusão exige a citação do gérmen urdidor da obra referida, o exibicionista, voyeurista, fetichista, masturbador e cunnilinguador: Alexander Portnoy.
Que os meus leitores me perdoem pelos meus desvarios… bipolares!? (Lá voltaremos ao início do texto!)
#17 «Ela estava tão profundamente implantada na minha consciência que durante o meu primeiro ano de escola eu julguei, tanto quanto me lembro, que cada uma das minhas professoras era a minha mãe disfarçada.»
Philip Roth, O Complexo de Portnoy
(Bertrand, 1.ª edição, Março de 1994, pág. 9; Tradução de Ana Luísa Faria; Obra Original: Portnoy's Complaint, 1969)
#18 «Ou deixas de foder outras ou está tudo acabado.»
Philip Roth, Teatro de Sabbath
(Dom Quixote, 1.ª edição, 2000, pág. ?; Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues; Obra Original: Sabbath's Theater, 1995)
quinta-feira, 17 de agosto de 2006
Anel de Areia [Actualizado]
Por outro lado, as edições espanholas investem no verdadeiro marketing do frontispício. As capas são, em geral, mais apelativas e informativas – trata-se apenas de uma constatação empírica.
Pela capa não o comprava. Pela frase apensa ao título – prosaico, diga-se – e à autora do romance, “Vencedor do Booker Prize”, adquiri-o, desconfiado, no início deste ano.
Esta combinação capa/título escolhida pelo editor nacional poderá afastar o menos flexível dos leitores, mesmo que compulsivo, e é um facto que, depois da compra, ele permaneceu na minha estante até anteontem.
Falo do romance de 1987 da escritora inglesa de origem egípcia Penelope Lively «Anel de Areia» vencedor do Booker Prize nesse ano, derrotando na final nomes como Iris Murdoch e Peter Ackroyd, sendo o júri presidido pela consagrada escritora de O Farol, P.D. James.
Anel de Areia conta a história de Claudia Hampton que se propõe contar a História do mundo circunstanciada pela sua história de vida. É a biografia da sua existência marcada pelos relatos da II Guerra Mundial no Egipto como repórter de guerra, sob o assombro e o temor do temível estratega Erwin Rommel – a Raposa do Deserto – e da Deutsche Afrikakorps.
É o terrífico significado do anel de areia – areia que deveria ser azul mas exibe a sua monótona cor amarelada – que molda a narrativa, redigida num asséptico quarto de hospital enquanto o tempo sobra à espera da morte anunciada.
Claudia relata sete décadas de uma vida marcada indelevelmente por um breve instante que lhe bloqueia o caminho da encruzilhada que lhe permitiria a mudança. A dor, sempre a dor dos momentos perdidos, da vida pressupostamente não vivida e do pungente e devastador exercício do condicional: se…
Penelope Lively, hoje com 73 anos, foi uma descoberta gratificante que só peca por tardia. Apesar de ser autora de uma extensíssima obra – 18 romances, 3 ensaios e 27 obras para crianças – somente este romance está traduzido para a língua de Camões.
A ler.
[Adenda]
Por razões que o intricado processo de memória poderia explicar, esqueci-me de aqui deixar um excerto de um diálogo (pp. 110-111) entre Claudia e Tom – este último é militar das forças aliadas nos desertos do Egipto, que por razão de não estragar a surpresa do enredo, mais não revelarei:
«– Vamos ganhar a guerra? – pergunta Claudia.
– Sim. Presumo que sim. Não por causa da intervenção divina ou porque a justiça triunfará mas porque no último recurso tivemos muito sucesso. As guerras pouco têm a ver com justiça. Ou valor ou sacrifício ou as outras tradicionalmente associadas a elas. É uma coisa que ainda não percebi muito bem. A guerra tem sido muito deturpada, acredite. Teve uma vergonhosa boa publicidade. Espero que você e os seus amigos estejam a fazer alguma coisa para o melhorar.
– Também espero – diz Claudia.
– Estou a pensar mais nos cronistas do que nos repórteres. Presumo que não se veja como cronista. Os cronistas, como não viram de perto as coisas, concentram-se na justiça e nos valores e em tudo isso. E nas estatísticas. Quando nos vemos numa estatística as coisas parecem diferentes.»
Referência bibliográfica completa
Penelope Lively, Anel de Areia, Civilização, 1.ª edição, Fevereiro de 2006, 215 pp. [Tradução de Marlene Campos] (Moon Tiger, 1987)
Frases iniciais exemplares (v. beta #14, #15 e #16)
Há critério?
Claro que sim! Três frases exemplares escritas originalmente nas línguas ibéricas, castelhano e português, as 3.ª e 6.ª línguas mais faladas no mundo, respectivamente – as 1.ª e 3.ª mais faladas no dito mundo ocidental.
As três citações resultam da colaboração de três autores de blogues nacionais, que num voluntarismo louvável tornam mais vivas as línguas faladas por 50 milhões neste finisterra que os homens de outrora, valorosos e destemidos, espalharam e exponenciaram pelos quatro cantos do mundo.
#14, contribuição de Mónica Granja, do blogue Linha do Norte:
«Há um vento daqueles, carregado de poeira, quente, tenso.»
Francisco José Viegas, Longe de Manaus
(Asa, 2.ª edição, Maio de 2005, pág. 9)
#15, contribuição de Rui Miguel Brás, do blogue Coisas:
«Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que ainda estivesses viva. Só dois ou três minutos: o suficiente para te matar.»
Miguel Esteves Cardoso, O Amor é Fodido
(Assírio & Alvim, 12.ª edição, 2004, pág. 9)
#16, contribuição do escritor António Manuel Venda*, no seu blogue A Floresta do Sul:
«Chove mansamente e sem parar, chove sem vontade mas com uma infinita paciência, como toda a vida, chove sobre a terra que é da mesma cor que o céu, entre verde suave e cinzento suave, e a linha do monte já há muito se apagou.
– Há muitas horas?
– Não; há muitos anos. A linha do monte apagou-se aquando da morte de Lázaro Codesal, consta que Nosso Senhor não quis que ninguém voltasse a vê-la.
Lázaro Codesal morreu em Marrocos, na posição de Tizzi-Azza; muito provavelmente matou-o um mouro da cabila de Tafersit. Lázaro Codesal tinha grande habilidade para engravidar raparigas…»
Camilo José Cela, Mazurca para Dois Mortos
(Difel, 1996, pág. ?; Tradução de Maria Carlota Pracana e Salvato Telles de Menezes; Obra Original: Mazurca para dos muertos, 1983)
*No blogue do escritor poder-se-ão ler as frases de abertura de algumas das suas obras.
Frases iniciais exemplares (versão beta #13)
Então o treze? A minha vida de há quatro anos para cá.
Coitadinho do rapaz que divaga por aqui embandeirando o poema de Sophia como um tonitruante espanta-espíritos que lhe desobstrui os ouvidos quando o mal já lhe bate à porta.
– Ordem! – grita a voz que ninguém consegue calar. Como o outro, o Presidente sombra de A Alma.
Só para dizer que a grande surpresa literária do ano veio da Catalunha. Li o romance em Março e ainda não me esqueci do entusiasmo alcançado com a sua leitura.
«Nunca estamos infinitamente longe daqueles a quem odiamos.»
Albert Sánchez Piñol, A Pele Fria
(Teorema, 1.ª edição, Janeiro de 2006, pág. 5; Tradução de Magda Bigotte de Figueiredo; Obra Original: La pell freda, 2002)
Frases iniciais exemplares (versão beta #12)
Desta vez a sugestão é do Miguel Cardina, autor do excelente A Cidade Vaga, que recomenda Bioy Casares.
«Hoje, nesta ilha, aconteceu um milagre. O Verão chegou cedo.»
Adolfo Bioy Casares, A Invenção de Morel
(Antígona, 2.ª edição, Janeiro de 2003, pág. 13; Tradução de Miguel Serras Pereira e Maria Teresa Sá; Obra Original: La Invención de Morel, 1940)*
*O prólogo desta obra é de Jorge Luis Borges.
[Actualização n.º 3] A lista traduzida da American Book Review é de novo actualizada com a preciosa ajuda de Mónica Granja. A Mónica enviou a tradução da frase colocada no 12.º lugar, de Mark Twain.
quarta-feira, 16 de agosto de 2006
Um nacional-socialista estalinista-arrivista
A história deste escritor alemão e das suas reviravoltas políticas e familiares são o epítome do arrivismo e da desonestidade intelectual nos períodos durante e após a II Guerra Mundial.
«A literatura alemã tem em Alfred Andersch um dos seus mais sadios e originais talentos» (pág. 97), este texto, que constava da badana de uma das suas obras, foi escrito pelo próprio Andersch. Foi estalinista, ingressou na Wehrmacht, regressou ao centro e acabou na esquerda. Nas palavras do escritor Hans Werner Richter – as quais não hesito em transcrever na íntegra – Andersch «era ambicioso. Não ambicioso como outros, não, a sua ambição apontava para muito mais longe. Os pequenos sucessos afiguravam-se-lhe perfeitamente naturais, não atentava neles especialmente, o seu fito era a fama, e não uma fama qualquer. Tinha-a por certa. O seu fito era a fama que vai mais longe, muito mais longe que o tempo, o espaço e a morte. Falava disso sem entraves e sem ponta de ironia. Uma vez, logo no princípio, ainda editávamos os dois Der Ruf [O grito], disse a uma grande roda de colegas e amigos que não só alcançaria Thomas Mann como lhe passaria à frente.» (pág. 99).
Como já referi noutros textos, parte deste percurso peculiar de Andersch – e que a ele recorro a propósito de Grass – encontra-se no ensaio, de leitura indispensável nos tempos que correm, de W.G. Sebald: “O escritor Alfred Andersch”. O ensaio está incluído na obra História Natural da Destruição, publicada no nosso país pela Teorema em Fevereiro deste ano – todas a citações anteriores pertencem-lhe.
De igual modo, de leitura imprescindível é o texto “Os bois pelos nomes” do Rui Miguel Brás, no blogue Coisas. Muitíssimo bem escrito, por um dos melhores redactores da blogosfera – afirmo-o sem qualquer tipo de pejo –, e de conteúdo irrepreensível e assaz pertinente nos exaltados dias de hoje.
Ah! Quase que me esquecia! A famosa biografia será de imediato colocada à venda…
As linhas com que nos vamos cosendo
O Ministro dos Transportes, Mário Lino, sugeriu o encerramento das linhas de caminho-de-ferro do Tua, Corgo e Tâmega.
Em 1988, Mário Soares em presidência aberta na região do Douro afirma que (e cito de memória) "com ele na Presidência da República o troço de via-férrea, da Linha do Douro, entre o Pocinho e Barca D’Alva jamais fecharia". Todavia, os discursos inflamados e as marcações de posição geralmente não se consubstanciam em actos, e uma vez mais essa triste realidade foi provada empiricamente. O comboio que transportou Sua Excelência o Presidente foi a última composição a efectuar esse percurso.
A Linha do Douro, de São Bento a Barca D’Álva, é hoje uma pura ficção – é a Linha do Meio-Douro!
Era pequeno e já me acostumara a embarcar na luxuriante Estação de S. Bento, ansioso por ouvir o inevitável pregão da senhora gorda, de chinelos e de avental à varina, anunciando «Olhó chicolate a bender a cenhe! Dois chicolates por uma nota de cenhe!». Saía em Campanhã e desejava sempre «boa viagem! E obrigados!»
Era o início do deslumbramento e da pequena quezília com o meu irmão na ocupação do lugar à janela do lado direito.
Subíamos à Régua com o comboio à cunha. Magalas de pé, outros sentados, a contar as façanhas de uma semana de recruta e do gozo fininho aos furriéis, aos cabos e sargentos. Exprobrações pintadas do mais vertiginoso calão, que a minha mãe já não fazia questão de os fazer calar. (É assim a vida… mais cedo ou mais tarde aprenderão! Tenho de lhes recomendar que não os repitam. Está descansada mãe. Hoje só os digo perante a minha família de amigos e no Dragão, mesmo que as razões não sobejem.)
Duas horas se inter-regional; duas e meia se regional. Não havia IP4, nem A4, nem variantes e A24. Havia as tortuosas e torturantes estradas nacionais 15, 101 e 100. Demorava o mesmo tempo... carro ou comboio?
Com o advento do alcatrão e do Itinerários Principais, o comboio deixa de ser um meio alternativo para quem tem pressa de chegar ao destino, para quem não se compadece com a lentidão de uma linha ultrapassada, abandonada, periclitante, percorrida por carruagens vetustas, sem conforto ou dignidade.
A CP não investiu para fixar a clientela. Hoje como ontem a viagem tarda para aqueles que da linha férrea fazem o trajecto que os levará ao trabalho, à família ou até à tropa.
Quem ganhou? Quem beneficiou com este estado de abandono? As companhias de camionagem? As rotas fluviais?
E quem perdeu? Como sempre todos aqueles que têm os ouvidos empanturrados de promessas que nunca foram ou jamais serão cumpridas.
Agora fecha-se de uma assentada os três ramais: Tua, Corgo e Tâmega. Não há passageiros? As carruagens navegam sozinhas? Deixem-se de demagogias e de conversa mole. Invistam em novas composições, na manutenção e no franco melhoramento das linhas.
Estão a matar o Douro, Adolfo! Intercede por nós, aí onde te encontras, Miguel, que te apelidaste pela urze que só aí rebenta!
«O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.»
Miguel Torga, Diário XII, 1977
Lista ABR [Actualização n.º 2]
À lista, postada aqui no passado dia 14, serão acrescentadas as 19.ª e 27.ª classificadas, Laurence Sterne e Cervantes, respectivamente.
Nota: considero a frase de abertura da obra Tristram Shandy de Sterne de uma genialidade quase inigualável.
terça-feira, 15 de agosto de 2006
Frases iniciais exemplares (versão beta #11)
«Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fios de rebuçado na concha da língua.»
António Lobo Antunes, Os Cus de Judas
(Dom Quixote, 25.ª edição, Novembro de 2004, pág. 11)
Lista ABR [Actualização]
Entretanto, uma leitora, Mónica Granja, enviou-me 3 citações que me permitem completar a lista da ABR – para além de 5 outras que irão fazer parte da lista alternativa. As frases dizem respeito às 61.ª, 81.ª e 94.ª posições: Maugham, Ballard e McCullers, respectivamente. Aqui deixo ficar o meu sincero agradecimento.
Resumindo e concluindo, na lista de 100 frases de abertura da ABR já dispomos de 36 oficialmente traduzidas para português.
Booker Prize 2006
Ontem foi anunciada a primeira lista de finalistas (longlist) do prestigiado prémio literário The Man Booker Prize for Fiction, que distingue o melhor romance publicado em inglês na Commomwealth e Irlanda no último ano. O júri deste ano é presidido por Hermione Lee.
Da lista, há a destacar dois nomeados habituais Peter Carey (venceu por duas vezes, em 2001 com A Verdadeira História do Bando de Ned Kelly e em 1988 com Oscar e Lucinda) e a sul-africana castrista Nadine Gordimer (venceu por uma vez, em 1974 com O Conservador). Para além destes dois eternos nomeados, destaca-se Barry Unsworth, que venceu o Booker Prize em 1992, com o romance Sacred Hunger, ex aequo com o romance consagrado de Michael Ondaatje, O Doente Inglês (adaptado para o cinema por Anthony Minghella, sob o título em Portugal de O Paciente Inglês).
De notar que das 19 obras semifinalistas apenas 1 está traduzida em português.
Semifinalistas (longlist) do Booker Prize de 2006:
- Peter Carey, Theft: A Love Story
- Kiran Desai, The Inheritance of Loss
- Robert Edric, Gathering the Water
- Nadine Gordimer, Get a Life (Faz-te à Vida, Texto Editores, 2006)
- Kate Grenville, The Secret River
- M.J.Hyland, Carry Me Down
- Howard Jacobson, Kalooki Nights
- James Lasdun, Seven Lies
- Mary Lawson, The Other Side of the Bridge
- Jon McGregor, So Many Ways to Begin
- Hisham Matar, In the Country of Men
- Claire Messud, The Emperor’s Children
- David Mitchell, Black Swan Green
- Naeem Murr, The Perfect Man
- Andrew O’Hagan, Be Near Me
- James Robertson, The Testament of Gideon Mack
- Edward St Aubyn, Mother’s Milk
- Barry Unsworth, The Ruby in her Navel
- Sarah Waters, The Night Watch
Frases iniciais exemplares (versão beta #10)
Desta feita a contribuição é do Rui Miguel Brás, autor do blogue Coisas, que me enviou de uma assentada três citações de três autores diferentes, todas elas, não só pelos autores, mas também pela genialidade que encerram, dignas de figurarem numa lista de excelência – já pareço o Mário Crespo referindo-se ao jornalismo de quem lhe paga.
Assim, começo com uma das três citações enviadas pelo Rui – as restantes irão ser publicadas mais à frente –, produzida por um dos expoentes máximos da admirável literatura que se faz em língua portuguesa do lado de lá do Atlântico.
«Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.»
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas
(Brasil: L&PM, 2002, pág. 15)
segunda-feira, 14 de agosto de 2006
ABR – As melhores frases iniciais
Curiosamente, há um conjunto de 18 obras – das 67 não citadas – que julgava fazerem parte do meu património bibliográfico – umas ainda em lista de espera para leitura –, que de facto não disponho. Depois há outras que decerto moram ainda em casa dos meus pais, desde que saí da sua afectuosa alçada há 9 anos atrás.
Apesar dos contratempos atrás referidos, julgo que uma parte importante das 100 citações em inglês tem aqui a sua correspondência em português. Uma língua que se quer viva também se mede pelas obras estrangeiras que para ela são traduzidas – já aqui referi o caso da língua dinamarquesa (embora não seja comparável com o português dada a reduzidíssima dimensão de falantes), onde as próprias autoridades incentivam a tradução através da estreia mundial de obras de autores consagrados para que a sua população leitora não se refugie na sucedânea língua inglesa.
Finalmente, com esta experiência pude constatar o enorme conjunto de autores cujas obras não estão sequer traduzidas para a nossa língua. O caso mais gritante dá-se com o prodigioso escritor norte-americano – eterno candidato ao Nobel da Literatura – Thomas Pynchon, que dos seus 5 romances e 1 livro de contos apenas 2 estão traduzidos para a língua de Camões – “V.” e “O Leilão do Lote 49” –, que para agravar o panorama estão esgotados há anos.
Eis a lista (100 Best First Lines from Novels):
1.ª) «Tratem-me por Ismael.» Herman Melville, Moby Dick
2.ª) «É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma grande fortuna necessita de uma esposa.» Janes Austen, Orgulho e Preconceito
4.ª) «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.» Gabriel García Márquez, Cem anos de Solidão
5.ª) «Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade.» Vladimir Nabokov, Lolita
6.ª) «Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes não.» Lev Tolstoi, Anna Karenina
8.ª) «Era um dia claro e frio de Abril, nos relógios batiam as treze.» George Orwell, Mil novecentos e oitenta e quatro
10.ª) «Sou um homem invisível.» Ralph Ellison, O Homem Invisível
12.ª) «Vossemecês não me conhecem se não leram um livro chamado As aventuras de Tom Sawyer, mas isso não tem importância.» Mark Twain, As aventuras de Huckleberry Finn
13.ª) «Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa mal.» Franz Kafka, O Processo
14.ª) «Estás para começar a ler o novo romance Se numa noite de Inverno um viajante de Italo Calvino.» Italo Calvino, Se numa noite de Inverno um viajante
15.ª) «Não tendo alternativa, o sol brilhava sobre o nada de novo.» Samuel Beckett, Murphy
16.ª) «Se estão mesmo interessados nisto, então a primeira coisa que devem querer saber é onde é que nasci, e como foi a porcaria da minha infância, o que faziam os meus pais e tudo antes de eu ter nascido, e toda essa treta estilo David Copperfield, mas não estou nada para aí virado, para dizer a verdade.» J. D. Salinger, À espera no centeio
17.ª) «Era uma vez, nos doces tempos de outrora, uma vaca-muu que vinha pela estrada abaixo, e essa vaca-muu que vinha pela estrada abaixo encontrou um amor miúdo chamado bebé-petenino…» James Joyce, Retrato do Artista quando Jovem
19.ª) «Quem me dera que o meu pai, ou a minha mãe, ou ambos, para dizer a verdade, uma vez que ambos estavam de serviço na ocasião, tivessem prestado mais atenção ao que estavam a fazer quando me conceberam; tivessem eles tomado em devida conta o quanto eu dependia daquilo que estavam então a fazer;–já que não estava em causa apenas a produção de um Ser racional, mas possivelmente a boa formação e temperatura do seu corpo, talvez até o seu génio e a qualidade do seu espírito;–e, apesar do que pudessem pensar em contrário, mesmo a fortuna da sua casa podia ser determinada pelos humores e disposições que fossem então dominantes:––Tivessem eles tomado tudo isto em devida conta, e procedido em conformidade,––estou verdadeiramente convencido que eu teria feito outra figura no mundo, muito diferente daquela em que o leitor provavelmente me há-de ver.» Laurence Sterne, A vida e opiniões de Tristram Shandy
21.ª) «Pomposo, roliço, Buck Mulligan, veio do alto da escada, trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha.» James Joyce, Ulisses
24.ª) «Foi uma chamada para o número errado que despoletou tudo, o telefone a tocar três vezes no silêncio da noite, e a voz do outro lado da linha a perguntar por alguém que não era ele.» Paul Auster, “Cidade de Vidro”, A Trilogia de Nova Iorque
25.ª) «Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas.» William Faulkner, O som e a fúria
27.ª) «Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não há muito tempo que vivia um fidalgo dos de lança em cabide, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor.» Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha
28.ª) «Hoje, a mãe morreu.» Albert Camus, O Estrangeiro
29.ª) «Lin Kong regressava todos os Verões à aldeia do Ganso para se divorciar da mulher, Shuyu.» Ha Jin, À Espera
31.ª) «Sou um homem doente… Sou um homem mau.» Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo
32.ª) «Agora, onde? Agora, quando? Agora, quem?» Samuel Beckett, O Inominável
37.ª) «Mrs. Dalloway disse que ela própria ia comprar as flores.» Virginia Woolf, Mrs. Dalloway
40.ª) «Durante muito tempo fui para a cama cedo.» Marcel Proust, Em busca do tempo perdido (vol. I): Do lado de Swann
43.ª) «Fui a sombra do ampalis despenhando-se / No céu falso da vidraça;» Vladimir Nabokov, Fogo Pálido
48.ª) «Era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe.» Ernest Hemingway, O Velho e o Mar
50.ª) «Comecei por dizer que nasci duas vezes: primeiro como menina bebé, num dia invulgarmente limpo na cidade de Detroit, em Janeiro de 1960. Depois, outra vez, como rapaz adolescente, numa sala de urgências perto de Petosky, Michigan, em Agosto de 1974.» Jeffrey Eugenides, Middlesex
53.ª) «Era um prazer queimar.» Ray Bradbury, Fahrenheit 451
56.ª) «Nasci na cidade de Iorque no ano de 1632, originário de uma boa família, mas estrangeira no país. O meu pai, natural de Brema, dedicou-se ao comércio em Hull, onde adquiriu uma fortuna muito confortável. Mais tarde, retirou-se dos negócios e foi viver para Iorque, onde casou com minha mãe, que pertencia à família Robinson, uma das melhores do Condado. Daí deriva o meu nome, Robinson Kreutznaer, a seguir transformado por corruptela, muito corrente em Inglaterra, no de Crusoe, com qual hoje se chama e se assina a minha família e eu próprio também. Os meus companheiros nunca me chamaram de outro modo.» Daniel Defoe, As Aventuras de Robinson Crusoe
61.ª) «Nunca senti maior apreensão ao começar um romance.» W. Somerset Maugham, O Fio da Navalha
64.ª) «Era eu rapaz, e ainda impressionável, meu pai deu-me um dia um conselho que, desde então, me ficou às voltas na cabeça.» F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby
66.ª) «“Para se nascer de novo”, entoou Gibreel Farishta, caindo dos céus, “é preciso primeiro morrer”.» Salman Rushdie, Versículos Satânicos
67.ª) «Era um Verão estranho e sufocante, aquele em que electrocutaram os Rosenberg. Estava então em Nova Iorque sem saber ao certo porquê.» Sylvia Plath, A Campânula de Vidro
69.ª) «Posso não estar bom da cabeça, mas tudo me parece claro, pensou Moisés Herzog.» Saul Bellow, Herzog
75.ª) «Para o fim do Verão daquele ano vivíamos numa aldeia que, para lá do rio e da planície, confrontava as montanhas.» Ernest Hemingway, O Adeus às Armas
81.ª) «Vaughan morreu ontem ao chocar com o carro pela última vez.» J. G. Ballard, Crash
94.ª) «Havia na cidade dois mudos que eram inseparáveis.» Carson McCullers, Coração Solitário Caçador
97.ª) «Ele – pois não poderia haver dúvidas quanto ao seu sexo, embora a moda da época contribuísse até certo ponto para o dissimular – estava a golpear uma cabeça de mouro suspensa das vigas do telhado.» Virginia Woolf, Orlando
98.ª) «No primeiro dia de 1969, lá bem alto sobre o Pólo Norte, dois professores de Literatura Inglesa aproximavam-se um do outro à velocidade idêntica de 1900 quilómetros por hora.» David Lodge, A Troca
Notas:
(1) As referências bibliográficas serão publicadas em breve e na íntegra no blogue Data.
(2) A lista “apócrifa” ou se preferirem “em versão beta” vai continuando a ser preenchida, com a colaboração de todos os bloguistas nacionais que estejam interessados.
Tash Aw
A lista de Verão do Expresso (sem ligação disponível) gerou alguma controvérsia, embora pequena dada a menorização dos assuntos literários perante outros mais candentes. A este propósito, o Eduardo Pitta chegou a demonstrar a sua estranheza perante a publicação das recomendações literárias para a praia sem que se dessem a conhecer os notáveis conselheiros, refugiando-se o semanário na designação colectiva “críticos literários do jornal”.
Porém, deixando-me de tergiversações e de afastamentos do cerne deste texto, o Eduardo Pitta considerou a temporada de edição literária em Portugal de “Outubro 2005 / Julho 2006” como “uma das mais ricas e estimulantes dos últimos anos”. Não podia estar mais de acordo, não só pelos 10 autores listados no mesmo artigo pelo Eduardo, como por outras obras de outros autores que, entretanto, saíram para o mercado.
Tash Aw, taiwanês de nascença, porém malaio de origens, mudou-se para Inglaterra na sua adolescência onde actualmente vive.
Com 32 anos (em 2005) publicou o seu primeiro romance “The Harmony Silk Factory”, agora editado em português pela Difel como “A Fábrica das Sedas”.
Com este romance Aw arrecadou logo à partida cerca de 5,2 milhões de euros (cerca de 1 milhão e 40 mil contos) em royalties. Venceu o Whitbread Award para 1.º romance, o BookSense e foi finalista (longlist, 17 obras, entre as quais constavam obras de autores como John Banville – vencedor do prémio –, Ali Smith, Ishiguro, McEwan, Rushdie, Julian Barnes, Zadie Smith e Coetzee) do Booker Prize em 2005.
A Fábrica das Sedas é uma extensa narrativa sobre a vida atribulada de Johnny Lim, chinês de ascendência que desde sempre viveu na Malásia, durante a II Guerra Mundial, perante a ameaça e a efectivação da invasão japonesa e o domínio e a exploração britânicos.
Aw demonstra todo o seu virtuosismo na manipulação da extensa gama das faculdades narrativas. Para um estreante considero notável a dissimilitude das três vozes que narram cada uma das três partes que constituem o romance, demonstrando os seus pontos de vista díspares sobre a mesma ocorrência: Aw consegue ser um homem de meia-idade amargurado com o passado sombrio do seu pai; uma jovem mulher mimada, rica e aristocrática malaia que se aventura num casamento com um homem humilde e estranho; e, por último, um velho inglês enclausurado dentro de si mesmo, azedo, obstinado e diletante que se deixou vencer pelas duras rememorações de um passado de conflito entre a paixão arrebatadora e a amizade na sua forma mais pura.
É um romance de leitura fácil e um autêntico page-turner, porém exige atenção, cuidado e degustação como um bom Porto velho e sedoso.
De leitura imprescindível.
Nota: a parte menos positiva do romance será, porventura, a tradução a cargo de Maria Isabel Veríssimo. Já por diversas vezes aqui referi que o papel do tradutor deverá ser neutro e não interventivo, sob pena de modificar, mesmo que sem intenção, a história que se pretende traduzir. Esse trabalho abarca – quanto a mim na minha visão de leigo – a expurgação de qualquer tipo de maneirismos e de tiques de linguagem ostentadores de alguns atavismos ou de um elitismo saloio. Por exemplo, não me repugna que se diga “o pai disse” em vez de “o meu pai disse”, ou até – conquanto no limite do aceitável – “imperial” em vez “cerveja”. Porém, o uso excessivo da expressão “encarnado” em detrimento do portuguesmente correcto “vermelho” é assaz irritante e distrai, de forma quase irreparável, a nossa leitura. Embora seja aceitável, e porventura mais fiel, que se traduza do inglês a palavra “scarlet” por “encarnado” em vez de “escarlate”, são sinónimas para “vermelho vivo” – vide a fabulosa tradução da obra magistral “The Scarlet Letter” de Nathaniel Hawthorne, pelo nosso ilustre e genial Fernando Pessoa para “A Letra Encarnada”.
Referência bibliográfica completa:
Tash Aw, A Fábrica das Sedas, Difel, 1.ª edição, Junho de 2006, 415 pp. [Tradução de Maria Isabel Veríssimo] (Obra Original: The Harmony Silk Factory, 2005).
O esplendor de Grass
Quem se serve da arte, no caso concreto da Literatura, como meio para difundir, de forma indirecta – a notoriedade como arma propagandística –, a sua ideologia política, não pode, de forma alguma, impedir o legítimo escrutínio do público perante o seu trajecto de vida.
Depois do anúncio autobiográfico de Grass sobre o seu passado na Waffen SS de Himmler, jamais poderemos dissociar este negro episódio de tudo aquilo que professou posteriormente, sob pena de cairmos no domínio da pura desonestidade intelectual. Vejamos, não é o facto em si que é importante, mas a sua ocultação durante mais de 50 anos. A não revelação desse facto durante os anos que se seguiram ao total aniquilamento do nazismo tem de ser notícia, cheira a dissimulação, e nem sequer se trata de uma facto de somenos importância. Acresce que o autor de “O Tambor” não se coíbe do intervencionismo político a cada palestra, ensaio ou artigo de jornal, normalmente exprobrando as práticas imperialistas americanas e o fenómeno da globalização. Em matéria penal há dolo ou negligência, cabe ao público aquilatar qual das expressões há-de neste caso utilizar.
Grass, aquando da entrega do Prémio Nobel da Literatura em 1999, proferiu na sua prelecção perante o Comité Nobel:
«Em 1973, no momento em que o terror – com apoio activo dos Estados Unidos – começava a eclodir no Chile, Willy Brandt falou perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, foi o primeiro Chanceler alemão a fazê-lo. Ele trouxe à luz do dia a questão da fome no mundo. O aplauso que se seguiu à sua exclamação “A fome também é guerra” foi assombroso.»
[Tradução minha do inglês da prelecção do galardoado Günter Grass; texto completo: no sítio oficial da Fundação Nobel]
Recomendação de leitura: o ensaio de W.G. Sebald “O escritor Alfred Andersch” – que já aqui dei conta – incluído na sua obra História Natural da Destruição: Guerra Aérea e Literatura, Teorema, Fevereiro de 2006.
domingo, 13 de agosto de 2006
Porque recordar é viver...
José Saramago, no diário espanhol El País, em 14 de Abril de 2003.
Entretanto, Günter Grass lembrou-se – porventura sujeito a uma rigorosa dieta alimentar rica em fósforo e magnésio – que pertencera à guarda pretoriana de Adolf Hitler, a Waffen SS, comandada até 1945 pelo romântico e clemente Reichsführer-SS Heinrich Himmler, durante a II Guerra Mundial.
Nota: A este propósito, ver este texto de Eduardo Pitta no seu blogue Da Literatura.
sábado, 12 de agosto de 2006
Frases iniciais exemplares (versão beta #9)
Embora este tipo de listas funcione como um mero indicador, sem que daí se retire uma cartilha que permita construir o arquétipo do bom leitor, não há nada na sua característica meramente indicativa que nos impeça o livre exercício de opinião e de crítica valorativa. Aliás, julgo até tratar-se de um exercício salutar, assaz democrático, para a pretendida interactividade na nossa blogosfera.
Assim, o Pedro Correia referiu e muito bem a discutibilidade das opções do grupo avaliador da ABR ao colocar, por exemplo, em primeiro lugar a frase inicial da obra de Herman Melville “Moby Dick” e esquecer-se por completo de incluir uma das frases iniciais mais memoráveis da história da literatura, a de Franz Kafka no conto dos contos (ou novela das novelas) “A Metamorfose”. Não se trata de um esquecimento negligente ou até deliberado do autor checo, uma vez que a frase inicial de O Processo consta da lista (13.ª classificada), e só se pode entender pelo critério formal estabelecido de só se considerar elegível a obra ficcional sob a forma de romance (ou seja, contos e novelas foram excluídos à partida).
Em abono da verdade, a frase de abertura de A Metamorfose já constava da minha lista em versão Beta (ou se quiserem apócrifa, sob o estrito ponto de vista da minha autoridade em matéria literária) de frases exemplares iniciais, a qual já contou com a exemplar colaboração de dois dos meus dilectos bloguistas: o Pedro Correia do Corta-Fitas (frase #5 – Vergílio Ferreira) e o Pedro Vieira do irmaolucia (frase #7 – Eduardo Mendonza).
«Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto.»
Franz Kafka, A Metamorfose
(Guimarães, Março de 2000, pág. 9; Tradução de João Crisóstomo Gasco; Obra Original: Die Verwandlung, 1915)
Notas: