Como o prometido é devido, publico aqui, com tradução a meu cargo, a partir do original em inglês, um dos muitos e portentosos contos publicados pelo malogrado autor norte-americano Donald Barthelme (Filadélfia, PA, 7 de Abril de 1931 – Houston, TX, 23 de Julho 1989).
Bartheleme é considerado, por muitos, como o pai do pós-modernismo literário (sinceramente, não sei a que é que isso se refere; se é bom ou mau? será uma enfermidade? uma rotularite?) e que, apesar de todas as notáveis referências na literatura universal, certificadas, por exemplo, pelo número de línguas em que as suas obras se encontram traduzidas, permanece inédito no excelso meio editorial português.
No próximo ano cumpre-se o 20.º aniversário da sua morte.
No próximo ano cumpre-se o 20.º aniversário da sua morte.
Bartheleme morreu aos 58 anos vítima de um filho da puta de um cancro.
Chablis
A minha mulher quer um cão. Ela já tem uma criança. A criança tem quase dois anos. A minha mulher diz que a criança quer um cão.
A minha mulher está há muito tempo à espera de um cão. Tive de ser eu a dizer-lhe que ela não o poderia ter. Mas agora a criança quer um cão, diz a minha mulher. Isto até pode ser verdade. A criança é muito chegada à minha mulher. Andam juntas o tempo todo, agarram-se, apertam-se com força. Eu pergunto à criança, que é uma rapariga, “És a menina de quem? És a menina do papá?” A Criança diz, “mamã”, e não se fica por aí, di-lo repetidamente, “mamã, mamã, mamã.” Eu não vejo por que razão hei-de comprar um cão de cem dólares para o raio daquela criança.
A raça de cão que a criança quer, diz a minha mulher, é um Cairn Terrier. Esta raça de cão, diz a minha mulher, é Presbiteriana tal como ela e a criança. No ano passado a criança era Baptista – ou seja, ela frequentou o programa inteiro para mães da Igreja Baptista, duas vezes por semana. Este ano é Presbiteriana porque os Presbiterianos têm mais baloiços e escorregões, e outras coisas assim. Eu acho isso uma enorme falta de vergonha e disse-lho. A minha mulher foi uma Presbiteriana legítima durante toda a vida e diz que isso a autoriza a agir assim; quando era uma criança ela costumava frequentar a Igreja Presbiteriana em Evannsville, Illinois. Eu não ia à igreja porque eu era uma ovelha negra. Havia cinco filhos na minha família e, entre nós homens, íamos fazendo girar o estatuto de ovelha negra, o mais velho seria a ovelha negra durante uns tempos, enquanto passava pelo seu período de embriaguez ou o que quer que fosse, e só depois, à medida que ia envelhecendo, e tendo talvez arranjando um emprego ou estando até cumprir serviço militar, tornava-se finalmente numa ovelha branca quando cassasse e tivesse um neto. A minha irmã nunca foi uma ovelha negra porque era uma rapariga.
A nossa criança é uma criança encantadora. Durante anos disse à minha mulher que ela jamais poderia ter uma criança porque isso seria muito caro. Mas elas derrotam-nos sempre por exaustão. Elas são bastante boas a derrotar-nos por exaustão, mesmo que isso possa demorar anos, como foi o caso. Agora ando com a criança ao colo e abraço-a sempre que posso. O nome dela é Joanna. Ela veste um macacão da Oshkosh e diz “não”, “biberão”, “fora” e “mamã”. Ela é a coisa mais adorável quando está molhada, quando acaba de tomar banho e o seu cabelo louro está encharcado, embrulhada numa toalha bege. Por vezes quando está a ver televisão ela esquece-se por completo que também estamos lá. Podemos ficar só a olhar para ela. Quando ela está a ver televisão parece muda. Gosto mais dela quando está molhada.
Esta coisa do cão está a transformar-se na grande questão. Eu disse à minha mulher, “Bom, já tiveste a criança, precisaremos também agora do diabo de um cão?”. O cão irá provavelmente morder alguém ou até perder-se. Já me estou a ver a percorrer o nosso bairro inteiro a perguntar às pessoas, “Por acaso viu este cão castanho?” “Como se chama o cão?”, irão todos perguntar, e eu fitá-los-ei com toda frieza e direi, “Michael” É assim que ela o quer chamar, Michael. É um nome estúpido para um cão e lá terei de procurar por esse cão, possivelmente raivoso, e perguntar às pessoas, “Por acaso viu este cão castanho? Michael?” É o suficiente para nos pormos a pensar em divórcio.
O que é que a criança poderá fazer com o cão que não o possa fazer comigo? Brincar livre e desenfreadamente? Eu consigo fazê-lo. Levei-a ao parque infantil da escola. Era domingo, o local estava deserto, e brincámos de uma forma livre e desenfreada. Eu corri, e ela cambaleou atrás de mim a um bom ritmo. Eu amparava-a sempre que deslizava no escorregão. Ela percorreu todo o caminho interior de um tubo de cimento que existia no parque. Ela apanhou uma pena e ficou horas a contemplá-la. Eu estava preocupado que aquela fosse uma pena contaminada mas ela não a meteu à boca. Depois corremos ainda mais pelo campo pelado e abrasivo de softball e através das arcadas que ligam as salas de aula de madeira temporárias, que estão a perder a sua pintura amarela, ao edifício principal. Num destes dias, a Joanna irá frequentar esta escola, e isto se eu permanecer no mesmo emprego.
Fui ver alguns cães no Pets-A-Plenty, que tem pássaros, roedores, répteis e cães, todos em óptima condição. Eles mostraram-me os Cairn Terriers. “Eles têm os seus livros de orações?”, perguntei. A funcionária não entendia o que é que eu estava para ali a dizer. Os Cairn Terriers poderiam rondar os 295 cada, com papéis. Eu comecei por perguntar se por acaso eles não teriam algum filho ilegítimo a preços mais baixos, mas pude ver que isso seria inútil, e cheguei mesmo à conclusão de que a mulher já não ia com a minha cara.
Mas, o que é que há de errado comigo? Porque é que eu não sou uma pessoa mais natural, tal como a minha mulher pretende que o seja? Eu permaneço acordado, desde manhã cedo, postado à minha secretária que está no segundo piso da casa. A secretária está de frente para a rua. Às cinco e meia da manhã, os corredores já estão lá fora, individualmente ou em pares, a correr por uma saúde de ferro1. Eu estou a beberricar um copo de Chablis2 Gallo com uma pedra de gelo, a fumar, a preocupar-me3. Preocupo-me com a possibilidade de a criança cravar uma faca de cozinha numa tomada eléctrica enquanto estiver molhada. Apliquei aquelas pequenas fichas de protecção de plástico em todas as tomadas, mas ela aprendeu a retirá-las. Já verifiquei os lápis de cera. Mas eles fizeram-nos de forma a tornar a sua ingestão inofensiva – eu telefonei para sede na Pennsylvania. Ela pode comer uma caixa inteira de lápis de cera que nada lhe acontece. Se eu não comprar os novos pneus para o meu carro, posso comprar o cão.
Lembro-me do tempo, há cerca de trinta anos, quando, na estrada de Beaumont, atirei com o Buick da mãe do Herman para um campo de milho. Havia outro carro que seguia na minha faixa, não bati nele e ele também não me bateu. Lembro-me de guinar o carro para a direita, seguindo para baixo para a valeta, atravessando a vedação, detendo-me apenas no campo de milho e saí do carro para acordar o Herman para ambos verificarmos como tinham ficado os felizes bêbados do outro carro, na valeta do outro lado da estrada. Isso aconteceu quando eu era uma ovelha negra, anos e anos atrás. Aquilo foi realizado com toda a destreza, penso eu. Levanto-me, felicito-me pela memória e vou lá dentro para dar uma espreitadela à criança.
Donald Barthelme, Forty Stories, “Chablis”. New York: G.P. Putnam’s Sons, 1st edition, 1987, 256 pp. [tradução: AMC, Março/2008]
(Este conto foi originalmente publicado na revista The New Yorker, de 12 de Dezembro de 1983, p. 49 [Vol. 59 Issue 43])
Notas de tradução:
Chablis
A minha mulher quer um cão. Ela já tem uma criança. A criança tem quase dois anos. A minha mulher diz que a criança quer um cão.
A minha mulher está há muito tempo à espera de um cão. Tive de ser eu a dizer-lhe que ela não o poderia ter. Mas agora a criança quer um cão, diz a minha mulher. Isto até pode ser verdade. A criança é muito chegada à minha mulher. Andam juntas o tempo todo, agarram-se, apertam-se com força. Eu pergunto à criança, que é uma rapariga, “És a menina de quem? És a menina do papá?” A Criança diz, “mamã”, e não se fica por aí, di-lo repetidamente, “mamã, mamã, mamã.” Eu não vejo por que razão hei-de comprar um cão de cem dólares para o raio daquela criança.
A raça de cão que a criança quer, diz a minha mulher, é um Cairn Terrier. Esta raça de cão, diz a minha mulher, é Presbiteriana tal como ela e a criança. No ano passado a criança era Baptista – ou seja, ela frequentou o programa inteiro para mães da Igreja Baptista, duas vezes por semana. Este ano é Presbiteriana porque os Presbiterianos têm mais baloiços e escorregões, e outras coisas assim. Eu acho isso uma enorme falta de vergonha e disse-lho. A minha mulher foi uma Presbiteriana legítima durante toda a vida e diz que isso a autoriza a agir assim; quando era uma criança ela costumava frequentar a Igreja Presbiteriana em Evannsville, Illinois. Eu não ia à igreja porque eu era uma ovelha negra. Havia cinco filhos na minha família e, entre nós homens, íamos fazendo girar o estatuto de ovelha negra, o mais velho seria a ovelha negra durante uns tempos, enquanto passava pelo seu período de embriaguez ou o que quer que fosse, e só depois, à medida que ia envelhecendo, e tendo talvez arranjando um emprego ou estando até cumprir serviço militar, tornava-se finalmente numa ovelha branca quando cassasse e tivesse um neto. A minha irmã nunca foi uma ovelha negra porque era uma rapariga.
A nossa criança é uma criança encantadora. Durante anos disse à minha mulher que ela jamais poderia ter uma criança porque isso seria muito caro. Mas elas derrotam-nos sempre por exaustão. Elas são bastante boas a derrotar-nos por exaustão, mesmo que isso possa demorar anos, como foi o caso. Agora ando com a criança ao colo e abraço-a sempre que posso. O nome dela é Joanna. Ela veste um macacão da Oshkosh e diz “não”, “biberão”, “fora” e “mamã”. Ela é a coisa mais adorável quando está molhada, quando acaba de tomar banho e o seu cabelo louro está encharcado, embrulhada numa toalha bege. Por vezes quando está a ver televisão ela esquece-se por completo que também estamos lá. Podemos ficar só a olhar para ela. Quando ela está a ver televisão parece muda. Gosto mais dela quando está molhada.
Esta coisa do cão está a transformar-se na grande questão. Eu disse à minha mulher, “Bom, já tiveste a criança, precisaremos também agora do diabo de um cão?”. O cão irá provavelmente morder alguém ou até perder-se. Já me estou a ver a percorrer o nosso bairro inteiro a perguntar às pessoas, “Por acaso viu este cão castanho?” “Como se chama o cão?”, irão todos perguntar, e eu fitá-los-ei com toda frieza e direi, “Michael” É assim que ela o quer chamar, Michael. É um nome estúpido para um cão e lá terei de procurar por esse cão, possivelmente raivoso, e perguntar às pessoas, “Por acaso viu este cão castanho? Michael?” É o suficiente para nos pormos a pensar em divórcio.
O que é que a criança poderá fazer com o cão que não o possa fazer comigo? Brincar livre e desenfreadamente? Eu consigo fazê-lo. Levei-a ao parque infantil da escola. Era domingo, o local estava deserto, e brincámos de uma forma livre e desenfreada. Eu corri, e ela cambaleou atrás de mim a um bom ritmo. Eu amparava-a sempre que deslizava no escorregão. Ela percorreu todo o caminho interior de um tubo de cimento que existia no parque. Ela apanhou uma pena e ficou horas a contemplá-la. Eu estava preocupado que aquela fosse uma pena contaminada mas ela não a meteu à boca. Depois corremos ainda mais pelo campo pelado e abrasivo de softball e através das arcadas que ligam as salas de aula de madeira temporárias, que estão a perder a sua pintura amarela, ao edifício principal. Num destes dias, a Joanna irá frequentar esta escola, e isto se eu permanecer no mesmo emprego.
Fui ver alguns cães no Pets-A-Plenty, que tem pássaros, roedores, répteis e cães, todos em óptima condição. Eles mostraram-me os Cairn Terriers. “Eles têm os seus livros de orações?”, perguntei. A funcionária não entendia o que é que eu estava para ali a dizer. Os Cairn Terriers poderiam rondar os 295 cada, com papéis. Eu comecei por perguntar se por acaso eles não teriam algum filho ilegítimo a preços mais baixos, mas pude ver que isso seria inútil, e cheguei mesmo à conclusão de que a mulher já não ia com a minha cara.
Mas, o que é que há de errado comigo? Porque é que eu não sou uma pessoa mais natural, tal como a minha mulher pretende que o seja? Eu permaneço acordado, desde manhã cedo, postado à minha secretária que está no segundo piso da casa. A secretária está de frente para a rua. Às cinco e meia da manhã, os corredores já estão lá fora, individualmente ou em pares, a correr por uma saúde de ferro1. Eu estou a beberricar um copo de Chablis2 Gallo com uma pedra de gelo, a fumar, a preocupar-me3. Preocupo-me com a possibilidade de a criança cravar uma faca de cozinha numa tomada eléctrica enquanto estiver molhada. Apliquei aquelas pequenas fichas de protecção de plástico em todas as tomadas, mas ela aprendeu a retirá-las. Já verifiquei os lápis de cera. Mas eles fizeram-nos de forma a tornar a sua ingestão inofensiva – eu telefonei para sede na Pennsylvania. Ela pode comer uma caixa inteira de lápis de cera que nada lhe acontece. Se eu não comprar os novos pneus para o meu carro, posso comprar o cão.
Lembro-me do tempo, há cerca de trinta anos, quando, na estrada de Beaumont, atirei com o Buick da mãe do Herman para um campo de milho. Havia outro carro que seguia na minha faixa, não bati nele e ele também não me bateu. Lembro-me de guinar o carro para a direita, seguindo para baixo para a valeta, atravessando a vedação, detendo-me apenas no campo de milho e saí do carro para acordar o Herman para ambos verificarmos como tinham ficado os felizes bêbados do outro carro, na valeta do outro lado da estrada. Isso aconteceu quando eu era uma ovelha negra, anos e anos atrás. Aquilo foi realizado com toda a destreza, penso eu. Levanto-me, felicito-me pela memória e vou lá dentro para dar uma espreitadela à criança.
Donald Barthelme, Forty Stories, “Chablis”. New York: G.P. Putnam’s Sons, 1st edition, 1987, 256 pp. [tradução: AMC, Março/2008]
(Este conto foi originalmente publicado na revista The New Yorker, de 12 de Dezembro de 1983, p. 49 [Vol. 59 Issue 43])
Notas de tradução:
- No texto original surge a expressão “rude red health”, que designa aqueles que demonstram e dispõem de uma invejável condição física.
- Chablis é um conhecido vinho francês produzido na região da Borgonha, vinificado exclusivamente em vinho branco e apenas com uvas da casta chardonnay. É um típico vinho branco seco, suave.
- Curioso jogo de palavras nestas duas frases, para os desportistas matinais usam-se, em contexto semântico diverso, as espressões “rude” e “red” (que também pode designar “tinto” para os vinhos), por oposição às subentendidas características organolépticas do próprio vinho, o Chablis (isto é só para enófilos, claro.)
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