Já todos sabem, até pelo seu uso frequente, que os italianos empregam uma espirituosa sentença popular, concebida pela feliz proximidade fonética entre duas palavras do seu léxico, que pretende exprimir, por oposição, as necessárias idoneidade e precisão na arte de tradução literária: “Traduttore, Traditore” (tradutor, traidor).
Não é novidade, e até poderia resultar de uma constatação empírica, que traduzir exige do tradutor argúcia e inteireza de contextuação, assim como zelo e objectividade, sob pena de, à mais simples inexactidão, arruinar o engenho, a razão de ser, a alma que o autor emprestou à obra, em suma, a sua subjectividade.
Nabokov, um fiel suspeitoso das traduções – não foi à toa que traduziu, ele mesmo, algumas das suas obras e acompanhou outras que não pôde traduzir, revendo-as –, dizia que sendo a tradução perfeita impossível a literalidade é preferível à legibilidade ou à tão em voga “tradução artística” que desvirtua o sentido original da obra.
Mas, como em quase tudo na vida, há excessos. Há quem leve o literalismo demasiadamente a sério. E se o exercício de uma determinada função extravasa o domínio das suas competências (mesmo que tacitamente determinadas, vulgo razoabilidade), isso significa que, por estupidez, por inépcia ou pelo puro prazer de um raro autoritarismo supervenientemente alcançado, se cria uma situação potencialmente intolerável para os destinatários desse mesmo exercício – neste caso, o leitor, apodado de forma subliminar de ignaro.
Ora, no caso da tradução de uma obra literária, o zelo extremoso e até paternalista do tradutor, materializado, por exemplo, em infindáveis notas de pé de página de carácter dispensável, não só prejudica de forma irremediável a integridade da obra e o prazer da sua leitura, como também incentiva o consumo de ansiolíticos pelas sobranceria e insolência da afirmação velada da sua superioridade intelectual.
Na biografia de Leni Riefenstahl, escrita por Steven Bach, recentemente publicada pela Casa das Letras, surge na página 10 uma pequena advertência sobre o aspecto formal da obra editada em português para «comodidade de leitura»: eliminaram-se a notas do autor típicas de um trabalho académico, deixando para o fim do livro as «que enriquecem a informação factual do corpo do texto», acrescentando em rodapé as notas do tradutor.
Até este ponto, apesar da discutibilidade do critério – porque não permanecerem ambas em pé de página, identificando-as como “N.A.” se do autor ou como “N.T.” se do tradutor? –, não há motivos para algum reparo de natureza substantiva. No entanto, à medida que se lê a obra e nos vamos familiarizando com a mecânica de leitura das tais notas, atinge-se rapidamente o ponto de saturação pela profusão de notas de tradução irrelevantes e até caricatas, como a tradução dos nomes dos jornais alemães para português. Assim, na página 77, as segunda e terceira notas de rodapé servem apenas para traduzir os nomes dos periódicos «Neueste Nachrichten» por «Últimas Notícias» e «Morgenpost» por «Correio da Manhã», respectivamente; ou, por exemplo, na página 154 «Lokal-Anzeiger» por «O Anunciante Local» – afinal, o grupo Cofina já publicava o seu jornal diário na Alemanha na década de 1920.
Seguindo esta linha de raciocínio, só não entendo por que motivo não se atribuiu a obra ao escritor Estêvão Ribeiro.
Referência bibliográfica:
Steven Bach, Leni – A Vida e Obra de Leni Riefenstahl. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Novembro de 2007, 469 pp. (tradução de Óscar Mascarenhas; obra original: Leni – The Life and Work of Leni Riefenstahl, 2007).
Não é novidade, e até poderia resultar de uma constatação empírica, que traduzir exige do tradutor argúcia e inteireza de contextuação, assim como zelo e objectividade, sob pena de, à mais simples inexactidão, arruinar o engenho, a razão de ser, a alma que o autor emprestou à obra, em suma, a sua subjectividade.
Nabokov, um fiel suspeitoso das traduções – não foi à toa que traduziu, ele mesmo, algumas das suas obras e acompanhou outras que não pôde traduzir, revendo-as –, dizia que sendo a tradução perfeita impossível a literalidade é preferível à legibilidade ou à tão em voga “tradução artística” que desvirtua o sentido original da obra.
Mas, como em quase tudo na vida, há excessos. Há quem leve o literalismo demasiadamente a sério. E se o exercício de uma determinada função extravasa o domínio das suas competências (mesmo que tacitamente determinadas, vulgo razoabilidade), isso significa que, por estupidez, por inépcia ou pelo puro prazer de um raro autoritarismo supervenientemente alcançado, se cria uma situação potencialmente intolerável para os destinatários desse mesmo exercício – neste caso, o leitor, apodado de forma subliminar de ignaro.
Ora, no caso da tradução de uma obra literária, o zelo extremoso e até paternalista do tradutor, materializado, por exemplo, em infindáveis notas de pé de página de carácter dispensável, não só prejudica de forma irremediável a integridade da obra e o prazer da sua leitura, como também incentiva o consumo de ansiolíticos pelas sobranceria e insolência da afirmação velada da sua superioridade intelectual.
Na biografia de Leni Riefenstahl, escrita por Steven Bach, recentemente publicada pela Casa das Letras, surge na página 10 uma pequena advertência sobre o aspecto formal da obra editada em português para «comodidade de leitura»: eliminaram-se a notas do autor típicas de um trabalho académico, deixando para o fim do livro as «que enriquecem a informação factual do corpo do texto», acrescentando em rodapé as notas do tradutor.
Até este ponto, apesar da discutibilidade do critério – porque não permanecerem ambas em pé de página, identificando-as como “N.A.” se do autor ou como “N.T.” se do tradutor? –, não há motivos para algum reparo de natureza substantiva. No entanto, à medida que se lê a obra e nos vamos familiarizando com a mecânica de leitura das tais notas, atinge-se rapidamente o ponto de saturação pela profusão de notas de tradução irrelevantes e até caricatas, como a tradução dos nomes dos jornais alemães para português. Assim, na página 77, as segunda e terceira notas de rodapé servem apenas para traduzir os nomes dos periódicos «Neueste Nachrichten» por «Últimas Notícias» e «Morgenpost» por «Correio da Manhã», respectivamente; ou, por exemplo, na página 154 «Lokal-Anzeiger» por «O Anunciante Local» – afinal, o grupo Cofina já publicava o seu jornal diário na Alemanha na década de 1920.
Seguindo esta linha de raciocínio, só não entendo por que motivo não se atribuiu a obra ao escritor Estêvão Ribeiro.
Referência bibliográfica:
Steven Bach, Leni – A Vida e Obra de Leni Riefenstahl. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Novembro de 2007, 469 pp. (tradução de Óscar Mascarenhas; obra original: Leni – The Life and Work of Leni Riefenstahl, 2007).
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