domingo, 20 de janeiro de 2008

Filmar com scanner (II)


Diversão ingrata, esta, a que se materializa na tarefa de o admirador incondicional da obra literária ter de observar a sua transposição para o grande ecrã. Depois da sua concretização já nada do que até aí se alcançou de satisfação interior, de prazer estético, da doce saudade dos momentos de leitura, se detém nos anteriores lugares da memória, virgem, intocado, despoluído.
Em 2002, a editora Gradiva publicava a versão de Atonement para a nossa língua, obra-prima do portentoso escritor inglês Ian McEwan. Deu-lhe o título de Expiação, designativo que foi transposto para o filme de 2007, dirigido pelo realizador inglês Joe Wright, com estreia mundial em Novembro passado (antestreia no local de origem em Setembro) e já vencedor de numerosos prémios, entre eles o Globo de Ouro para Melhor Filme (Drama), recebeu 14 nomeações para os BAFTA 2008, fazendo-se uma extrapolação vitoriosa para os Óscares da Academia, cujas nomeações serão anunciadas na próxima terça-feira (quarta-feira de madrugada em Portugal).
Amesterdão (Amsterdam, 1998) venceu o Booker Prize, Expiação foi finalista vencido do mesmo prémio em 2001 (conquistado pela obra genial A Verdadeira História de Ned Kelley do escritor australiano Peter Carey), e são ambas, na minha opinião pessoal, embora estruturalmente diferentes, as suas melhores obras – já o referi dúzias vezes e não me cansarei de o repetir outras tantas, sempre que a ocasião se proporcionar, convém vincar a posição dada a constatada volatilidade de leitores assíduos deste blogue.
Porquê Expiação?
«Ao longo destes cinquenta e nove anos [1940-1999], o problema tem sido este: como pode uma escritora expiar os seus crimes se, com o poder absoluto de decidir o final, é em certa medida Deus? […] É uma tarefa impossível, e a questão foi precisamente essa. O que conta é a tentativa.
[…]
Dei-lhes a felicidade, mas não fui prestável ao ponto de permitir que me perdoassem.
»
(Expiação, Ian McEwan. Gradiva, 2.ª ed., 2005, pp. 417-418, trad. Maria do Carmo Figueira).
A realidade, dura, implacável, pode ser mais tenebrosa e sombria que a ficção:
«Se eu a entendi correctamente, você levantou uma suspeita tão medonha que eu mal tenho palavras para a descrever» (palavras dirigidas por Henry Tilney a Catherine Morland sobre as suspeitas macabras que esta levantou sobre o pai do primeiro, General Tilney, a propósito da morte da sua mulher Mrs. Tilney, in Jane Austen, Northanger Abbey, 1817; tradução livre: AMC). Estas são as escassas linhas que faltam à passagem do romance de Austen citada em epígrafe no livro Expiação de Ian McEwan.
Os anais da História da Literatura contam que Northanger Abbey surgiu como uma paródia ao movimento da literatura gótica, que despontava pelas mãos de autores como Ann Radcliffe, designadamente pela sua obra de 1794 The Mysteries of Udolpho (publicada em Portugal como Os Mistérios do Castelo de Udolfo). Austen pretendia desmistificar a literatura da ilusão, da substituição de uma realidade pelo delírio ficcionado – a miscigenação do sagrado e do profano –, que, apesar de tudo, no próprio romance de Austen, acaba por não ser menos violenta – a cupidez e a frivolidade da classe alta inglesa expia o pecado da vil difamação.
Em Expiação a realidade de Briony é mais brutal que o romance engendrado ao longo de toda uma vida: «Não há ninguém, nenhuma entidade, nenhum ser superior a quem ela possa apelar, com quem possa reconciliar-se ou que possa perdoar-lhe.» (pág. 417)
A culpa não morre. O processo de expiação é permanente, sem hipótese alguma de reparação do mal causado por um acto irreflectido perpetrado décadas antes.

Joe Wright, através do argumento de Christopher Hampton, transcreve literalmente para o ecrã o romance de McEwan – já aqui me havia referido à crítica na The New Republic por Christopher Orr, onde este falava do tal “livro filmado”.
Em boa verdade, se exceptuarmos a parte final, em que uma nada convincente Vanessa Redgrave encarna o papel de Briony Tallis aos 77 anos (em Londres, 1999) para, perante as câmaras de um estúdio televisivo – no romance trata-se apenas de um amargo e culpado monólogo interior –, contar a verdade nua e crua sobre as personagens Robbie Tuner (James McAvoy), o rapaz humilde, filho da governanta, que cresceu no seio da aristocrática família Tallis, e a sua irmã Cecilia (Keira Knightley), Wright segue fielmente a obra de McEwan com os constrangimentos imagéticos e de tempo que a adaptação de uma obra literária ao grande ecrã exige – a obra de McEwan, na edição portuguesa da Gradiva, dispões de 418 páginas. Wright cria assim a sua própria armadilha e que se reflecte, por exemplo, na necessária redução da deambulação de Robbie por território francês no início da II Guerra Mundial como soldado ao serviço do exército britânico (corresponde a mais de uma quinta parte do livro), que culmina com a violenta retirada deste último por via marítima nas desoladoras praias de Dunquerque no nordeste da França, junto à fronteira belga, enquanto os homens aguardavam a salvação eram impiedosamente bombardeados pela Luftwaffe e pela divisão Panzer. A espera em Dunquerque vê-se como uma enorme alegoria para a maldade humana materializada na guerra, que, por um lado, reforça a cadeia de acontecimentos provocadas por um acto irreflectido de uma jovem pré-púbere de 13 anos e, por outro, mostra a dureza de uma realidade bélica, comprovada factualmente nas atrocidades cometidas entre Homens no conflito mundial. Por outro lado, Wright reduz a quase nada a última parte (por sua vez subdividida em duas: (1) a narração dos factos ocorridos em 1940 por Briony aos 18 anos como principiante na prática de enfermagem; (2) a revelação da realidade por Briony, sozinha em Londres, no dia em que fez 77 anos).
Com interpretações seguras de McAvoy e de Knightley, e um soberbo desempenho da jovem actriz norte-americana Saoirse Ronan (de apenas 13 anos) na pele de Briony, com uma mais do que razoável banda sonora a cargo de Dario Marianelli (vencedor do Globo de Ouro para Melhor BSO), com um argumento difícil de avaliar dado o perceptível esforço da textualidade e, por último, com uma realização firme no início que, a partir dos acontecimentos narrados em 1940, se vai desmoronando de cliché em cliché – seguindo o movimento aparente da obra, como se a sua elaboração seguisse a sequência dos factos narrados, à medida que o filme se aproxima do fim assalta-nos a sensação de que Wright foi perdendo o fôlego, cedendo, esgotado de energia e de ideias, a um academismo artificioso, vide, entre muitas outras que abundam na parte final, a cena em que Briony de 18 anos se dá a conhecer como aprendiz de enfermeira... é, simplesmente, kitsch –, Expiação não consegue encher as medidas, carece de um toque de génio para se tornar num “grande filme”.
Trata-se de um melodrama, é certo, com todas as inferências menos abonatórias que o género pode trazer, que, aqui sim, não encaixa com o tom da obra de base. E esta dissonância, que à primeira vista poderia consubstanciar-se numa questão meramente formal, é o principal defeito do filme: está longe de captar a verdadeira essência da obra, a crueza realista e sem contemplações líricas da narrativa mcweaniana e dos seus personagens. Trata-se, em suma, sem ser um mau filme, longe disso até – dar-lhe-ia entre 7 a 8 pontos em 10 possíveis –, do cometimento cinematográfico de um pecado capital sobre o brilhantismo de uma obra que, tenho a certeza, perdurará no Olimpo literário por mais alguns séculos.
No entanto, os prémios estão aí, as previsões laudatórias têm-se vindo a confirmar, o que demonstra que para o todo o pecado, mesmo que capital, há pelo menos uma hipótese de redenção...
«Mas agora tenho de dormir.»

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