Esclarecimento
Não tive a oportunidade de assistir em directo na televisão à mensagem presidencial de Ano Novo, nem tão-pouco à primeira emissão do ano do debate televisivo semanal Quadratura do Círculo que, sei agora, reflectiu sobre a pertinência da tal mensagem enviada aos portugueses por Cavaco Silva no exercício das suas funções.
Dei-me conta, todavia, dos ecos noticiosos repercutidos pela mensagem – que pude ler na íntegra no sítio da Presidência da República –, li, atónito, a notícia de primeira página da edição do Jornal de Negócios de ontem sobre o assunto e ouvi hoje o podcast do referido programa da SIC Notícias, que foi para o ar na passada quarta-feira à noite, dia 2 de Janeiro.
Perplexidades
José Pacheco Pereira classificou o alerta/reflexão do Presidente da República sobre se os «rendimentos auferidos por altos dirigentes de empresas não serão, muitas vezes, injustificados e desproporcionados, face aos salários médios dos seus trabalhadores» como fait divers e uma manobra populista.
António Lobo Xavier apelou inclusivamente ao recurso da evidência estatística para desmistificar essa inverdade presidencial de natureza e objectivos marcadamente demagógicos, ignorando, todavia, porque à boa maneira do político luso falou de cor, os próprios dados tratados pela mesma ciência tão assertiva e enfaticamente evocada que, por mero azar, depois de uma simples análise descritiva, foram publicados no dia seguinte pela generalidade da imprensa nacional e que demonstraram de uma forma categórica o gigantesco desfasamento entre o rendimento médio de dirigentes e trabalhadores – informação apurada pela empresa norte-americana Mercer Human Resource Consulting; em Portugal a média de rendimentos da classe de dirigentes é cerca de 32 vezes superior ao rendimento médio dos trabalhadores (15 em Espanha, 14 no Reino Unido e 10 na Alemanha, por exemplo).
Jorge Coelho, reconhecidamente um homem inteligente e um político astuto, bem informado sobre os meandros do poder, entendedor da retórica da ilusão e dos preceitos da teoria da falácia, disse que o problema não está nos altos rendimentos dos dirigentes das empresas portuguesas mas nos baixos rendimentos dos trabalhadores em geral.
Ora, a realidade que a tríade comentadora não pode nem deve encobrir, até por conhecimento de causa, angariado nos lugares de responsabilidade públicos e privados que ocupam ou ocuparam, e sem que com isso se caia na apologia do radicalismo cego da meritocracia, normalmente esquecediça das condições de partida, é a do processo viciado de cariz endogâmico, em circuito fechado, de nomeações de figuras políticas para altos cargos directivos nos domínios empresariais público e privado. Nomeia-se pela influência subterrânea criada pelo exercício anterior da função pública, prática corrente, reiterada, tacitamente aceite e potenciada por um Estado controlador e superpoderoso, anquilosado e ainda inadaptado ao exercício dos seus poderes dentro dos limites naturais definidos por uma sociedade democrática moderna e avançada, onde deveriam imperar, para a sua própria sobrevivência, o espírito da livre iniciativa e o princípio da igualdade de oportunidades para todos os cidadãos sem excepção.
Em Portugal todos invocam a Constituição, todos falam sobre o cumprimento ou sobre a derrogação dos direitos, liberdades e garantias previstos pela Lei fundamental, existe até um tribunal que zela pelo seu cumprimento, cujos membros são designados pelo poder político, pelos grupos de interesse legalmente constituídos, vulgo partidos; porém ainda ninguém reparou ou quis notar que a vozearia invocativa oculta o seu verdadeiro estado de efectividade, o daguerreótipo da situação real do país: ferida de morte por incumprimento implícito, cúmplice e tolerante – a tão típica impunidade dos poderosos.
Não errarei por muito se disser que Portugal nunca foi um país verdadeiramente democrático, apesar de apresentar alguns sintomas ou indícios de democracia, consubstanciados meramente na eleição dos órgãos de poder nacional, regional e local. Aliás, o apodo de “democrático” ao nosso Estado, salvaguardadas as devidas distâncias demonstradas pela História, faz-me lembrar o segundo D na sigla DDR (ou o D da ex-RDA em língua portuguesa), um país democrático não praticante. Vivemos numa pura oligarquia que a ciência política não nega. Prevalecem os nepotismos, os favoritismos de cor e de filiação partidária e a luta pelo poder subterrâneo entre os homens do avental e os rapazes do cilício – diga-se, em abono da verdade, que Cavaco Silva, segundo confidência de uma voz assaz entendida no assunto, foi o primeiro Presidente da República eleito que jamais pertenceu quer a uma quer a outra organização de compadrios malsãos.
Cavaco Silva entendeu por bem trazer à colação a disparidade remuneratória entre dirigentes e dirigidos, talvez instigado pelos mais recentes escândalos ocorridos no centro nevrálgico de comando do Millennium BCP. O trio de comentadores da Quadratura do Círculo, em especial Pacheco Pereira e Lobo Xavier, escarneceram e vituperaram o Presidente da República por este se haver referido a um assunto menor e que, segundo dizem, está deslocado da realidade do país. Pois bem, neste caso, não entrando em linha de conta com o desrespeito desabrido ao mais alto soberano da nação e nos termos em que foi feito, releva a reacção desmesurada e desproporcional face a um assunto que resulta de uma mera constatação empírica e que em nada desmerece o estatuto do político por haver sido proferido por Cavaco Silva. Além disso, ninguém espera que um bom Presidente, interventivo e perspicaz, se auto-inflija de um degredo opinativo, posicionando-se no alto de uma torre de marfim, ignorando as reais preocupações da população que, de acordo com os poderes constitucionais, superintende. É bonito falar-se da livre iniciativa e da liberalização do mercado e que um mercado livre tende a corrigir os seus erros. No entanto, numa oligarquia típica de um país terceiro-mundista como o nosso, o verdadeiro mercado não existe porque nele apenas intervém um grupo restrito de senhores e protegidos. Nem tão-pouco se pode falar em activismo accionista, ou na célebre e ilustrativa Teoria da Agência formulada por Jensen e Meckeling, ou numa monitorização da gestão eficaz. Os próprios reguladores institucionais não intervêm ou quando o fazem movem-se apenas por reacção. Os accionistas de referência são poucos, de fraca qualidade e espalham-se por ambos os lados da barricada – o principal e o agente – em diversas empresas. Os pequenos investidores participam de forma marginal no mercado e actuam como meros especuladores, onde a maximização dos lucros é uma um conceito difuso. A generalidade da classe dirigente das empresas portugueses para além de não agir de forma directa na criação de valor para os seus accionistas, esquece-se por completo dos demais interessados, de onde emergem os próprios trabalhadores, para além dos clientes ou fornecedores, ou mesmo do Estado. Não há uma efectiva política de recompensas, ou um sistema de incentivos, aos trabalhadores que se relacione de forma directa com a produtividade total (não apenas a laboral).
No meio de tudo isto, o mais surpreendente, talvez para os mais desprevenidos, foi a exagerada e agreste reacção de repúdio dos comentadores supracitados. Talvez o Presidente da República haja logrado atingir um ponto sensível a tão desinteressados analistas de quase tudo o que mexe politicamente na lusa pátria.
E será que JPP, ALX e JC:
- Acaso não conhecem empresas cujos próprios titulares dos órgãos administrativos e de supervisão interna aumentam os seus próprios salários e benefícios em dinheiro ou em espécie de forma considerável apesar da prevista e iminente ruína económica e financeira, despedindo trabalhadores à discrição, com salários em atraso e indemnizações por pagar?
- Será que os comentadores da Quadratura do Círculo desconhecem que os bancos agora investigados têm deixado de forma impiedosa particulares, empresas e respectivos trabalhadores à beira da miséria, para fazerem valer os seus direitos de crédito?
Não acredito. Aliás, estou convicto de que, na posição de observadores privilegiados dentro de um sistema oligárquico, não desconhecem situações como essas. E, no entanto, criticam ferozmente a diligência presidencial, que em nada extravasou o limite das suas competências funcionais e orgânicas, de um firme e sonoro alerta ao país, às instituições policiais e judiciais, às entidades reguladoras.
E se realmente necessitam de uma imagem para atestar do grau de impunidade reinante na república oligárquica portuguesa, basta que nos recordemos da imagem recente (final de Dezembro de 2007), carregada de um forte simbolismo do status quo luso, quando a propósito de uma reunião de dirigentes do BCP uma longa fila de automóveis de cor escura com motorista, de marcas Jaguar, Mercedes, BMW e Audi, estava plantado na zona pedonal da Rua Augusta em Lisboa. O que aconteceria se na mesma situação estivesse envolvido o tal Zé de Durão Barroso? Dispenso-me a mais palavras. A impunidade, a vassalagem e a bajulação do poder estão à vista de todos. Pobre cidadãos, a quem pretendem furar dos dois olhos o único que permanece são.
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