Foi em finais da década de 90 do século passado que, aproveitando uma sexta-feira de indolência pós-laboral, liguei o antigo canal de filmes TeleCine 2 da TV Cabo – na altura uma oferta, em período experimental, que não viria a ter continuidade pela exaustiva repetição dos filmes exibidos acrescida da prática de um preço abusivo – e reparei, de forma fortuita, que se anunciava um filme italiano para os minutos que se seguiam. Tratava-se de um filme do meu muito apreciado Pepuccino, protagonizado pelo monstro sagrado da cinematografia mundial Marcello Mastroianni – o homem de 8 ½ e de La Dolce Vita do inigualável Fellini, do maravilhoso La Notte do mestre Antonioni e do assombroso Um Dia Inesquecível (Una giornata particolare, 1977) de Ettore Scola, ao lado de Sophia Loren.
Perguntei-me como é que um filme de Tornatore havia escapado à minha análise indefectível de um faccioso do realizador siciliano e de um fã incondicional da escola de cinema que lhe serviu de sustentáculo: Visconti, Fellini, Scola, Antonioni, e tantos outros que construíram no pós-guerra a fábrica de sonhos alternativa à máquina devoradora de Hollywood. Sentimento de ignorância que se agravou pelo facto de o argumento ter sido escrito pelo realizador siciliano em co-autoria com o lendário Tonino Guerra.
E assim se iniciou o filme. Chamava-se Estão Todos Bem (Stanno tutti bene, 1990), terceira longa-metragem de Giuseppe Tornatore, produzida logo após o sucesso universal de Cinema Paraíso (Nuovo cinema Paradiso, 1988) que catapultou Pepuccino até ao Olimpo dos deuses do cinema. O filme abriu com as notas de um allegro que saindo da batuta de Ennio Morricone se tornaram de imediato etéreas. Mastroianni parte… ou melhor, Matteo Scuro sai da sua Sicília, partindo pela primeira vez rumo ao encontro dos seus filhos que há muito migraram, numa espécie de diáspora siciliana, para a imponente Itália em busca de melhores condições de vida.
Este é o filme de Matteo, um amante da ópera lírica, que, viúvo e após se reformar da função pública, caminha até aos lugares que o conduzem à sua prole espalhada por Itália entre Nápoles e Turim, passando por Roma, Florença e Milão. Todos lhe haviam assegurado nas espaçadas visitas à Sicília, estar bem na vida, disputando altos cargos nas mais variadas profissões. Eis o encantador Matteo que, tendo dado asas à sua paixão lírica, dispôs que todos os seus filhos tivessem nomes de personagens famosos criados por alguns dos mais que consagrados compositores italianos: Guglielmo (personagem da ópera Guillaume Tell de Rossini), Tosca (personagem da ópera epónima de Puccini), Norma (personagem da ópera epónima de Bellini), Alvaro (personagem da ópera La forza del destino de Verdi) e Canio (personagem da ópera Pagliacci de Ruggero Leoncavallo).
Mastroianni (1924-1996), apesar de alquebrado por um estado de saúde periclitante – embora quando protagonizou o filme tivesse apenas 65 anos – enche o ecrã com a sua magistral interpretação, desde as situações burlescas passando por aquelas carregadas de um pathos bem tornatoriano (vide, por exemplo, Cinema Paraíso, e o grave e simultaneamente enternecedor A Lenda de 1900).
Com este filme, Tornatore venceu, entre outros, o Prémio do Júri Ecuménico no decurso do Festival de Cannes de 1990 – ano em que David Lynch arrecadou a Palma de Ouro do festival com o inolvidável Um Coração Selvagem (Wild at Heart), sendo o júri presidido por Bernardo Bertolucci.
Mas agora, é chegado o tempo para descrever o horror que me assaltou há poucos dias numa suposta improfícua navegação pela Internet.
Tudo o que atrás foi referido, e que me inebriou até âmago do meu ser, foi, porventura, artisticamente extorquido aos seus autores e arrasado pela repetição, porquanto há pouco mais de uma semana, estreou nos Estados Unidos um filme chamado Everybody’s Fine, baseado no argumento original de Tornatore, Guerra e De Rita, com adaptação do também realizador, um tal de um inglês – que, confessando a minha muito provável cine-ignorância, até hoje desconhecia – chamado Kirk Jones.
Onde havia Morricone há Marianelli – sim, o mesmo das marteladas dactilografadas de Expiação (Atonement, 2007), cujo nome me faz lembrar uma qualquer marca de componentes para automóvel –, e onde brilhava Mastroianni há agora De Niro.
Curiosamente, Robert De Niro tem exactamente a mesma idade de Mastroianni quando este protagonizou o filme de Tornatore. Porém, apesar da inegável qualidade do actor norte-americano – um dos meus preferidos, diga-se –, não consigo vislumbrá-lo a interpretar o papel de um velho reformado, picaresco, terno, crédulo ou aparentemente iludido pelos seus filhos num périplo cheio de incidentes por Itália... perdão, pelos Estados Unidos. O resto do elenco é composto por nomes como Kate Beckinsale, Drew Barrymore e o normalmente apatetado Sam Rockwell.
Para ser sincero, espero o pior. Não consigo, por exemplo, encaixar os tiques dramáticos de De Niro – “are you talking to me?” ou “If I talk to you, and you turn me into a fag, I’m gonna kill you, you understand?” – no papel de Matteo que passou a Frank Goode. E, então, se atentarmos nos seus últimos filmes, o actor italo-americano está a necessitar de uma urgente e profunda intervenção, de que tipo for, para a regeneração do seus, outrora, infindáveis dotes interpretativos.
Como referi na parte I desta série, a ver vamos. Até à sua exibição em frente dos meus olhos (abertos, de preferência), vou deixar morrer lentamente alguns dos apriorismos que me toldaram a mente no momento da inesperada notícia do heteróclito remake hollywoodiano. Até lá resta-me assobiar como Mastroianni (Matteo) fazia para marcar a presença e chamar os seus filhos, e com isso desanuviar a tensão de um cinéfilo irascível.