quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Os amigos da Revolução

Há anos, surgiram nos Estados Unidos – o Império do Mal, responsável por todos os cataclismos à escala global: políticos, económicos, sociais, culturais, ambientais, tecnológicos –, pela evolvente propiciatória da livre iniciativa e do mercado concorrencial, empresas privadas que se dedicam à limpeza das “zonas de crime”: lavam carpetes, tapam os buracos de balas perdidas, repõem o stock de picadores de gelo (quiçá de picaretas mexicanas, com a marca de água do NKVD) e de conjuntos lustrosos de facas de cozinha; só não garantem a desinfecção do idealismo e da mitomania do coitadinho – está ainda para surgir um insecticida iconoclasta. Mas sobre a mitomania revolucionária, deixo as despesas do verbo a quem conhece (por palavras e actos) o assunto por dentro, Olivier Rolin (n. 1947):
«Vocês têm vinte anos, são românticos, revoltados, ignorantes, esforçam-se por amar os ídolos da revolução mundial (há ainda, na época, qualquer coisa no mundo que usa esse nome “Revolução Mundial”), Marx ou Mao, alguns vão ainda mais longe no seu zelo e tentam convencer-se de que gostam de Estaline. Mas há em vocês uma inquietação, no fundo dessa zona livre e sonhadora que habita no vosso íntimo e que resiste ao culto dos líderes, à cobarde admiração pelos vencedores. Vocês são muito ignorantes, e no entanto sentem que a Revolução é um gesto cuja grandeza prometaica [sic] não resiste à sua própria vitória, que a Revolução vitoriosa vê o tempo dos burocratas e dos polícias suceder ao dos heróis, e que não há grande Revolução a não ser nos primeiros momentos incrédulos, e depois de ser assassinada. Rosa Luxemburgo lançada ao Landwehrkanal, num dia de gelo e de sangue em 1919, Che Guevara deitado como um Cristo deposto da cruz no lavadouro do hospital de Valegrande: o que há de menos vulgar e de menos servil em vocês pressente que é eles serem vencidos o que os faz tão gloriosos. A República espanhola, a Comuna de Paris, a sua história é para vocês uma epopeia porque é feita apenas de derrotas. E ninguém te emociona mais do que aqueles que são duplamente derrotados, porque foram mortos por uma causa na qual deixaram de acreditar. Fazes bem em defender-te, a personagem que te fascina já não é a do militante, mas a muito mais romântica, a do aventureiro. Porque tu desejas, ao mesmo tempo, a fraternidade e a solidão. Tu também te sentes “desenraizado” do mundo. Sombrio, intransigente, apaixonado, desesperado, Rossel* é um dos heróis dos teus vinte anos idealistas e teatrais.» [destaque a bold de minha autoria]
Olivier Rolin, Um caçador de leões, pp. 87-88
[Lisboa: Sextante, 1.ª edição, Outubro de 2009, 198 pp; tradução de Tiago França; obra original: Un chasseur de lions, 2008.]

*[nota minha]: Louis Rossel (1844-1871), coronel do Exército Francês, o único oficial a juntar-se à Comuna de Paris (em Março de 1871), como resistente à invasão prussiana da França, e a capitulação desta perante Guilherme I e o seu chanceler Otto Bismarck. Morreu fuzilado perante ordens do presidente Adolphe Thiers, que esmagou a insurreição e destruiu a Comuna quarenta dias depois de haver sido instituída.