quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Apropriações fílmicas – parte I


Não sei se os seus fautores estão ou não numa corrida desesperada ao restrito tapete vermelho que se estenderá à porta do Kodak Theatre no dia 7 de Março de 2010, mas há duas estreias cheias de pólvora festiva que me causaram alguma apreensão enquanto cinéfilo inflexível perante determinados desarranjos cinematográficos.

Começo com o muito incensado realizador alemão de 67 anos, radicado nos Estados Unidos, Werner Herzog – que viu recentemente parte da sua filmografia condensada em dois volumes em edição da Fnac – que surge com um tal The Bad Lieutenant: Port of Call – New Orleans, trazendo na bagagem uma menção especial da 66.ª edição do Festival de Cinema de Veneza, talvez condicionada pela água da Laguna Veneta que teimosamente vai inundando as outrora zonas secas da cidade italiana.
Herzog roubou o título ao filme de 1992 de Abel Ferrara, Bad Lieutenant (Polícia Sem Lei) superiormente interpretado por Harvey Keitel – que lhe valeu os prémios para Melhor Actor no nosso Fantasporto e no Independent Spirit Awards em 1993 –, para além de haver alistado o insuportavelmente decadente Nicolas Cage, a apoteótica bomba sexual Eva Mendes, o cabotino Val Kilmer – porventura ainda sob o efeito dos psicotrópicos do “Rei Lagarto”, nada de mais marcante tem feito, para além de Heat – Cidade Sob Pressão, filme de 1995 de Michael Mann, nem mesmo no sobrevalorizado Spartan – O Rapto, filme de 2004 de David Mamet. Porém, bem medidas as coisas neste particular, Herzog talvez se salve no meio desta horda artística que se prefigura como elenco catastrófico-milionário, pelo recrutamento de Michael Shannon, incapaz de não encher o ecrã com a sua reconhecida e incontornável aura (lynchiana) de actor de culto, enigmático e sombrio. Se exceptuarmos o título e os pecadilhos do Tenente, parece que nada aproxima o filme de Herzog ao original de Ferrara. O título deve-se à subjugação da arte à feroz política de marketing de Hollywood. Porém, os nomes de Ferrara, Victor Argo, Paul Calderon e Zoë Lund, argumentistas do filme de 92 surgem nos créditos da nova película de Herzog, entretanto estreada nos Estados Unidos, ao lado de um argumentista de séries televisivas conceituadas chamado William Finkelstein, que porventura retirou as vísceras ao argumento original, deixando decerto o produto final pronto a digerir pela avidez de um público cada vez menos exigente. Um outro bom sinal: Herzog confessa que não viu o filme de Ferrara – talvez, nunca lhe tenha sido apresentado e não o conheça de lado nenhum.
A ver vamos. Para ser honesto, não posso fazer aqui algum juízo apriorístico sobre os méritos do referido filme, porquanto apenas conheço os seus contornos e a manifestação de desagrado de Ferrara, de mãos e pés atados perante a derivação, talvez espúria, de um produto de sua autoria. No entanto, e a essa parte não me posso escusar, o processo é criticável, mesmo que o filme mereça que se esgotem os adjectivos encomiásticos após a sua projecção à frente dos meus olhos num grande ecrã desta cidade e arredores.

Nota: A parte II das “Apropriações fílmicas”, trará um filme cujo heteróclito e descabido remake me revolveu ainda mais as entranhas, essencialmente pela convicção de que jamais poderá resultar numa melhoria do produto original. Qual Gus Van Sant com Psico (Psycho, 1998).

(continua)