sábado, 7 de abril de 2007

O Regresso de McEwan

É verdade, os meus autores favoritos já se encontram a viver para além da sua quinta década de deambulação pelo mundo. Ian McEwan, nascido em Aldershot, Inglaterra, em Junho de 1948, prepara-se para ver lançada para o mercado a sua última obra, o romance On Chesil Beach que, segundo pude ler numa curta sinopse para não utilizadores do jornal Público, será simultaneamente editado em língua portuguesa – provavelmente pela detentora dos direitos de autor em Portugal, a editora Gradiva –, facto inédito que só é de saudar.
Das ilhas britânicas o trio anglo-irlandês McEwan, Banville e Tóibín sempre me encheu as medidas estético-literárias, a que se podem juntar os miscigenados Ishiguro e Rushdie e o fleumático, estirpe Oxford, Martin Amis.
Porém, foi para McEwan a minha primeira contemplação de puro encantamento quando há uns bons anos li Cães Pretos e pensei ter intuído a sua simbologia, os fantasmas que, apesar de julgarmos possuir todos os meios que permitem vislumbrar o caminho para a felicidade, nos turvam a mente – esse ser insondável que se confunde com a alma.
Desde logo estabeleci uma regra que me permitisse desvendar aos poucos um fio condutor na carreira literária do notável autor inglês: seguiria cronologicamente a sua obra.
Foi que fiz com a excepção de duas obras editadas na nossa língua que, apesar de as deter na minha estante, por motivos diversos ainda não li: O Sonhador (The Daydreamer, 1994) e O Inocente (The Innocent, 1990), esta última não leitura motivada pela paupérrima adaptação do romance para o filme de 1993 de John Schlesinger, com Anthony Hopkins e Isabella Rossellini – que como irei demonstrar não serviu de critério noutro caso semelhante.

Ian McEwanAs colecções de contos Primeiro Amor, Últimos Ritos (First Love, Last Rites, 1975) e Entre os Lençóis (In Between the Sheets, 1978) são um fascínio pela tortuosidade que McEwan confere aos seus personagens. São histórias negras que revelam a perversidade da mente humana, o frágil ponto de equilíbrio que se rompe e transforma a vida de um banal ser humano, nesta indigente sociedade contemporânea, num animal grotesco ornado dos seus instintos mais primários. Contudo, não são contos imorais e muito menos amorais, embora estes não encerrem uma moralidade mais ou menos subentendida, à laia de guia prático do comportamento humano. Os primeiros contos de McEwan são antes histórias que, pelo simples factos de a informação nos assaltar todos os dias no conforto do nosso lar, são brutalmente verosímeis e por isso de certa forma angustiantes. Neles se relata a depravação sexual, a perversidade, a perda da inocência e a indigência intelectual do indivíduo numa sociedade implacável e que se metamorfoseia em ritmo acelerado rumo a nenhures ou, pelo menos, a um destino não imediatamente intuído. Por elas McEwan foi notabilizado – havendo vencido com a primeira obra o Somerset Maugham Award –, todavia não se livrou de que alguns o rotulassem de escritor negro, sinuoso e até vicioso.
No entanto, McEwan seguiu o seu caminho e em 1978 publicou uma das suas melhores obras, O Jardim de Cimento (The Cement Garden). O autor voltou às luzes da ribalta pela distorção dos moralistas do regime, que destacaram a utilização abusiva pelo autor do último dos tabus, o incesto. Esta será, contudo, uma das muitas histórias que se poderá enquadrar no conjunto de anátemas com que alguns dos habituais críticos pretendem ensombrar o processo criativo de outrem. Em O Jardim de Cimento o incesto é um mero acessório que apenas serve de alerta – se é que, na realidade, se trata de um pretendido alerta – para o perigo da propensão do homem contemporâneo para o orgulhoso isolamento intelectual e para as densas fortificações que a própria mente erige, conferindo-nos a sensação de existir a real possibilidade de uma revigorante sobrevivência sem o contacto com o exterior, sem interacção, os tais reinos de Camelot para que vamos lentamente imergindo e que nos vão apartando do relacionamento com os outros, da sinergia que pulula por sobre as nossas cabeças, como o pólen das flores no viço da Primavera, que já não conseguimos captar, confinando-nos a uma masmorra cujas paredes lúgubres e viscosas presenciarão, mais cedo ou mais tarde, o próprio fim: «Através de uma nesga da cortina, a luz azul da sirene, volteando, desenrolava um desenho na parede do quarto. (…) – Ora aí está – disse ela. – Foi um sono muito lindo.»
Em 1981 é publicado Estranha Sedução. Porventura, fiel ao título com que foi baptizado em português – o original é The Comfort of Strangers – é um dos livros mais tenebrosos do escritor britânico. A acção decorre em Veneza, local de férias escolhido por um jovem casal decidido a reencontrar a paixão que se foi desvanecendo com o tempo e a rotina da convivência e, de repente, se vê envolvido num trama de contornos poucos claros com um velho casal residente, que de forma parcimoniosa e simultaneamente de um magnetismo inexplicável vai arrebatando a vida ao casal, como desinscrustáveis e insaciáveis sanguessugas.
O romance foi adaptado para o cinema por Harold Pinter, com realização a cargo de Paul Schrader e, apesar das notáveis interpretações de Natasha Richardson, de Christopher Walken e de Helen Mirren, o produto final não me conseguiu convencer. Posteriormente li o romance e de certa forma anseio por um segundo visionamento para desfazer as dúvidas sobre o filme.

Até 1992, McEwan escreve argumentos para televisão, um libreto para música de Michael Berkeley e vários argumentos para cinema, para além de mais três romances: o fabuloso A Criança no Tempo (The Child in Time, 1987), vencedor do Whitbread Novel Award em 1987 e do Fémina em 1993, O Inocente (1990) e Cães Pretos (Black Dogs, 1992).
Em 1993 McEwan escreve o argumento O Bom Filho (The Good Son), para o filme realizado por Joseph Ruben – que anos antes havia assustado meio mundo feminino com o filme Dormindo com o Inimigo – onde se destacam os desempenhos dos jovens Elijah Wood e Macaulay Culkin.
A partir daqui consegue-se distinguir um novo fôlego na carreira do autor inglês. McEwan adopta a narrativa mais elaborada, densa e com uma forte componente de investigação. O Fardo do Amor (Enduring Love, 1997) baseia-se no historial clínico verídico de um paciente com uma patologia psíquica conhecida como síndrome de De Clérambault, relatado num artigo científico reproduzido na íntegra do final de romance.
Esta transformação não significa, porém, uma ruptura de McEwan com a temática do insondável da mente humana, das distorções psíquicas que se materializam numa forte tensão sexual e comportamental com sequelas na sociedade e que simultaneamente gera, por uma sinuosa reverberação, o comportamento desviante. Assim, O Fardo do Amor marca a tal viragem na carreira do autor pelo enchimento das personagens, que confere de forma deliberada um tom mais romanesco aos seus escritos. Nessa altura anuncia-se um Ian McEwan mais maduro e mais seduzido com a miríade de possibilidades que a prosa ficcional oferece. Se antes tínhamos uma história, um determinado objectivo e alguns artifícios que rapidamente nos conduziam ao desenlace, com O Fardo do Amor, sem que desapareça a formal tensão psicológica mcewaniana, há uma grande preocupação plástica na elaboração da urdidura, aparentemente mais complexa e ornamentada.
Seguem-se, na minha muito pessoal opinião de admirador de Ian McEwan, os dois melhores romances do autor, tão díspares nas suas estrutura e densidade, como próximos na genialidade: Amesterdão (Amsterdam, 1998), vencedor do Booker Prize, e Expiação (Atonement, 2001), vencedor do WH Smith Literary Award e do National Book Critics Circle (Fiction Award, EUA) em 2002.
Amesterdão encanta pela ironia, pelo retrato da comédia humana nas suas soberba e cobiça desmedidas. Expiação é profundo e comovente, e simultaneamente um documento histórico sobre os males da guerra no seu sentido mais lato, não só porque parte da acção se situa em pleno campo de batalha durante a 2.ª Guerra Mundial, como também naquela consubstanciada num magistral paralelismo à maldade e à inveja no relacionamento interpessoal.
O sortilégio de Amesterdão está no seu brilho e na sua hilaridade; em Expiação ele emana do próprio processo de auto-análise da protagonista que se estende para fora dos domínios do livro, através do escrutínio das nossas acções passadas que potencialmente provocaram dano, mesmo que este não estivesse presente, ou não fosse conscientemente aquilatado, no momento em que as perfilhámos.
Em 2005 surge o último romance publicado de Ian McEwan: Sábado (Saturday). Vencedor em 2006 do James Tait Black Memorial Prize. Um excelente romance, talvez aquele em que McEwan demonstra no seu pleno esplendor a sua mestria como contador de histórias do dia-a-dia, que porventura só me desapontou pela cruel cronologia: seguiu-se ao melhor dos melhores do autor britânico.

Deste modo, por aqui se vai aguardando, em jubilosa esperança, a publicação de On Chesil Beach, prometida para a próxima semana.

Aqui fica um excerto do romance (1.º parágrafo):
«They were young, educated, and both virgins on this, their wedding night, and they lived in a time when a conversation about sexual difficulties was plainly impossible. But it is never easy. They were sitting down to supper in a tiny room on the second floor of a Georgian inn in Dorset. In the next room, visible through the open door, was a fourposter bed, rather narrow, whose cover was pure white and stretched startlingly smooth, as though by no human hand. Edward did not mention that he had never stayed in a hotel before, whereas Florence, after many trips as a child with her father, was an old hand. Superficially, they were in fine spirits. Their wedding, at St. Mary’s, Oxford, had gone well; the service had been decorous, the reception jolly, the sendoff from school and college friends raucous and uplifting. Her parents had not condescended to his, as they had feared, and his mother had not significantly misbehaved, or completely forgotten the purpose of the occasion. The couple had driven away in a small car belonging to Florence’s mother and arrived in the early evening at their hotel on the coast in weather that was not perfect for mid-June or the circumstances but was entirely adequate: it was not raining, but nor was it quite warm enough, according to Florence, to eat outside on the terrace, as they had hoped. Edward thought that it was, but, polite to a fault, he would not think of contradicting her on such an evening.»

Promete!

Nota: Em Portugal, todos os livros de Ian McEwan foram até agora publicados pela
Gradiva.

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