quarta-feira, 28 de março de 2007

Memória

Fosse porventura um crítico literário – que com alguma (des)ventura não sou, nem anseio ser, talvez pelo perigo que representa transformar o objecto do meu prazer num melancólico instrumento de trabalho – cuja recensão decidisse o destino da obra analisada, João Tordo (n. 1975) ter-me-ia apanhado à 5.ª página, pela epígrafe de Hotel Memória:
«Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios.»
Por um díspar acaso quis a púbere vontade aliada às contingências da vida que não o fosse. E se o tivesse sido, percorrendo os atalhos que tentadoramente os outros nos vão colocando na inevitável interacção social, possivelmente a marca Auster não pudesse ser ostentada com tanta veemência para seguir os firmes cânones da isenção e quiçá da erudição, da estranha convenção de pós-modernista aposta ao poeta do acaso.
Recenseia, mas não te deixes apanhar nas malhas do minimalismo literário e pelos labirintos desassossegados da memória, onde a sombra de um beco parece espreitar a cada esquina dobrada sem que se vislumbre o fim.
A metadiegese é um dos recursos literários de eleição do escritor norte-americano. Aliás, embora não possa ser considerado o pioneiro na área – lembremo-nos de Edgar Allan Poe ou de Jorge Luis Borges –, Auster é hoje considerado como ficcionista ímpar no emprego desse recurso tantas vezes repudiado pela crítica e mais vezes repreendido pelo público que se perde nos tais labirintos narrativos.

Por muito que se tente repudiar, ou até negar, numa recalcitrante escassez de abertura à liberdade criativa, austeriano será em breve um adjectivo que o crescente uso consagrará no vocabulário dos vários idiomas, como se pode constatar, por exemplo, através de uma simples busca do termo nos motores de pesquisa à disposição do utilizador na internet.
Hotel Memória é um romance austeriano por excelência, não só pelo uso da distintiva metadiegese, mas também pelo papel primordial desempenhado pelo acaso nas intrincadas linhas com que se vai cosendo a narrativa. Porém, o romance também transpira Melville não só através das directas alusões às obras de que o protagonista se servirá nas mais diversas ocasiões, como Moby Dick e Bartleby – este último será o apelido que irá adoptar nas suas labirínticas deambulações nova-iorquinas – como na perceptível estrutura existencialista da própria obra, quer na demanda obsessiva por respostas, quer na angustiante busca pela redenção.
Depois, para além de um Bartleby obsessivo, há Samuel, Daniel e Russell: Tratem-me por Ismael (a famosa frase de abertura de Moby Dick, e presumivelmente a voz do próprio Melville, uma alegoria bíblica, o símbolo dos desgarrados deste mundo).
Com a epígrafe e as referências literárias que vão sendo feitas ao longo do romance, Tordo não nega a inspiração e as influências na construção da história. Trata-se de uma brilhante associação Auster/Melville, sabendo-se que o primeiro nunca negou as grandes influências do segundo no seu trabalho (aliás, o contrário seria verdadeiramente impossível).
De linguagem firme, decidida, sem arabescos e com diálogos curtos e incisivos, Hotel Memória prende o leitor pela surpreendente cadência dos acontecimentos. Tal como o inspirador, o inspirado – João Tordo – conseguiu levar-me a momentos de puro choque, sem dramas gratuitos e sensacionalistas, mas pela verosimilhança, pela dura realidade que poderá surgir a qualquer momento e na imperceptível, porém curta, distância do limite de uma existência feliz ao abismo do sofrimento, da solidão, do desespero e da indigência humana.
A luta. Esta constante luta.

Classificação: **** (Bom)

Referência bibliográfica:
João Tordo, Hotel Memória. Lisboa: QuidNovi, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 221 pp.

1 comentário:

Brunorix disse...

Foi um prazer encontrar tanta erudição num comentário a um livro.

Fazia falta uma voz assim por aqui... http://bilhetedeida.blogspot.com/2008/10/clube-de-leitura.html