«Os dias passavam, vagarosos, sem que ninguém os contasse, os assinalasse num calendário. Lá longe, ao longo da interestadual, enormes filas de carros calcinados e cobertos de ferrugem. O metal despido das jantes mergulhado numa pasta dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de arame. Os cadáveres incinerados, mirrados até ao tamanho de crianças e apoiados nas molas nuas dos assentos. Milhares de sonhos sepultados naqueles corações reduzidos a lascas de pedra. Eles continuaram a caminhar. Palmilhavam o mundo sem vida como ratinhos numa roda. De noite, silêncio de morte e trevas sepulcrais. Tanto frio.» (pág. 179)
Pai e filho caminham sós por essa imensa estrada, unindo-os uma relação de amor incondicional, resquícios dos afectos de um tempo que já passou. Pequenos nadas que se consolidaram numa liga indestrutível perante a miséria.
Pai e filho caminham para Leste, em direcção ao mar. Talvez a única força viva da Natureza que, pela distância – na memória do pai – ou pelo desconhecimento que não seja através de uma memória secundária – no caso do filho –, simboliza todo o fulgor e o fascínio que necessariamente o simples acto de viver, toda uma existência, requer para lhe atribuir um significado, um propósito, um objectivo cuja génese incognoscível – Deus? – poderá encerrar algo de absolutamente aterrador, mas que decerto conduz à libertação... à luz.
Pela estrada deambulam pessoas em busca de alimento, quando não pertencem e nem se encontram organizados em comunas fortemente hostis ao contacto com o exterior despedaçado. No pai subsiste a memória de um espaço de luz e toda a aprendizagem de um processo que conduziu o planeta ao apocalipse. Ao filho resta-lhe a obediência cega à voz da experiência do seu velho companheiro de caminhada, e um coração puro, não contaminado, desconhecedor das atrocidades praticadas e, principalmente, da razão de ser para aquele cenário de autodestruição: «Está bem», simboliza a tal obediência que é simultaneamente o epítome de um sentimento arrebatador que extravasa toda a degradação; e, enfim, a caridade que, como dizia o Profeta, recolherá os seus frutos num tempo que há-de vir.
Cormac McCarthy conquistou com este livro o prémio Pulitzer 2007 para a melhor obra de ficção literária. Nas cerca de 190 páginas do romance, que se lêem de um só fôlego, o escritor norte-americano faz jus às atribuídas solidez e integridade narrativas, especialmente difícil numa obra de carácter distópico.
Com alguma crueza em determinados relatos – vide a descrição, tão discutida pela crítica, do bebé canibalizado – e, por outro lado, sem haver deixado algum do barroquismo que caracteriza a sua bibliografia ficcional activa, esta é, no meu entender a sua melhor obra e, seguramente um dos romances do ano editorial português, uma vez mais com a chancela de uma das minhas editoras preferidas, a Relógio D’Água.
Classificação: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica
Cormac McCarthy, A Estrada. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Março de 2007, 187 pp. (tradução de Paulo Faria; obra original: The Road, 2006).
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