Em 1998 não votei. Afirmo-o de livre consciência e sem que me haja envergonhado pela opção tomada ao ceder ao letargo do tempo previamente planeado para o ócio dominical, que me impediu a deslocação à assembleia de voto.
Naquela altura, votaria “sim” e talvez a certeza de uma não certeza, por manifesta falta de reflexão, haja contribuído para a preguiça em detrimento do cumprimento do tal dever cívico.
Desta feita irei votar e votarei SIM!
No próximo dia 11 de Fevereiro, eis uma nova oportunidade para exprimir o meu ponto de vista sobre a forma de cruz no boletim, debaixo de uma pergunta putativamente neutra e isenta de preconceitos – embora haja assentido que a sua formulação dificilmente alcançaria esse desiderato, o da neutralidade e da isenção.
No tal processo de maturação surgiram-me diversas dúvidas e interrogações cujas respostas que aparentemente estatuí com verdadeiras revelaram a chave para a resolução desta dicotomia preponderantemente do foro íntimo do meu ser.
Assim, coube-me procurar essas respostas. A questão que se coloca situa-se ou não no domínio do exercício da liberdade individual do Homem? Estará em causa a interferência do indivíduo no direito inalienável à vida de um terceiro que, por questões morfológicas, não pode exercer uma opção de vida?
Apesar da irrefutável interposição do, porventura subjectivo, entendimento de liberdade na reflexão a que me propus realizar, as possíveis respostas revestem-se de uma duplicidade intransponível, uma vez que lhes estão subjacentes fundamentos exclusivos do foro médico-legal. Ou seja, trata-se de definir e delimitar o conceito de “feto” e em que medida o simples acto intrusivo de um espermatozóide num óvulo pode ser considerado como o início de uma vida que, pela multiplicação celular, gerará num futuro próximo um ser humano. Não é uma questão de percepção da realidade e do grau de inteligibilidade dessa amálgama celular. No outro extremo também não se trata de uma decisão que se toma com base num futuro supostamente certo para o ser que se acabou de criar: se será ou não um indivíduo feliz; se será ou não um indivíduo exemplar. Essas dúvidas extravasam o domínio do tangível e apenas poderão ser elucubradas meras conjecturas ou previsões face à experiência passada e à envolvente no momento presente.
Ao contrário daquilo que muitos querem fazer crer, a opção por interromper uma gravidez que não se deseja, ou que se deseja mas as circunstâncias presentes contribuíram para uma decisão dolorosa – porque contrária ao desejo manifesto – para a sua interrupção, a mulher – ou no limite, o casal – em regra, não toma a decisão de ânimo leve. Não se trata de enfrentar um dilema corriqueiro de, por exemplo, tomar ou não tomar a pílula, de usar ou não usar o preservativo, ou até do acautelamento, de base meramente especulativa, na toma da pílula do dia seguinte, perante a perpetração do acto, tão humano como animal, da cópula.
A decisão, porque fracturante, implica dor, ponderação e um duro escrutínio dos prós e contras. Normalmente, e isso é o que nos faz distinguir dos seres que connosco partilham a biosfera, há a consciência de que a decisão versa sobre o permitir ou não permitir a existência de um ser humano. Só depois surgem as condições.
Quer se queira quer não, uma decisão desse calibre implica uma ruptura, não há meio-termo, nem soluções de equilíbrio. As respostas são mutuamente exclusivas, implica um processo doloroso duradouro e não imediato, instantâneo e sem hipótese de recuo: no limite uma má escolha gerará infelicidade, e se se optar por dar vida ao feto que se vai formando no ventre materno, a miséria jamais poderá ser estancada mesmo através de uma morte medicamente assistida e constitui-se como uma simples disseminação da infelicidade dos progenitores; essa opção poderá gerar um ser infeliz e/ou objecto da infelicidade da própria vileza da natureza humana: quantos casos não conhecemos que redundaram na pederastia, na pobreza extrema, na inanição, em suma numa vida desgraçada, infame e aniquiladora das mínimas condições para uma subsistência material e/ou espiritualmente saudável.
Quanto à questão jurídica e à necessidade de um ordenamento que possibilite a convivência do indivíduo no seio de uma comunidade – na qual terá de existir um mínimo de afinidade nos seus valores, crenças e atitudes, sob pena da indigência física e mental –, sabemos que a lei emana do direito natural que, por seu turno, surgiu com a concepção ética da sobrevivência humana. A lei surgiu para plasmar em letra o entendimento que determinada sociedade tem sobre determinado assunto num determinado momento. Se porventura essa identificabilidade for posta em causa, a lei torna-se injusta e por isso inadequada, podendo provocar uma de duas reacções: ou a sua violação permanente sem que a essa situação esteja associada uma pena, passando de forma indelével a letra morta, ou então à aniquilação da própria comunidade, presa a um preceito anacrónico e que de forma alguma contribui para a sua felicidade e para o seu bem-estar. Uma lei injusta, se não derrogada ou espojada dos eventuais preceitos indutores de injustiça, é um instrumento potencialmente genocida. Exemplificando, fenómenos como a escravatura, a segregação racial, as relações sexuais com crianças e menores, o trabalho infantil e a semana de trabalho sem descanso já foram moralmente aceites pela sociedade. Porém, a dada altura a felizmente mutável percepção da realidade, como reacção à envolvente e como precaução perante um futuro incerto, provocou a mudança de valores sobre a condição humana e os padrões morais resultantes dessa consciência colectiva coagiram no caminho da formulação de leis e de códigos de conduta que previssem a abolição da escravatura, a penalização da segregação racial, a condenação da pederastia e da pedofilia e a imposição ao empregador na atribuição de um período de descanso ao trabalhador durante a semana laboral.
Hoje, percorridos seis anos do século XXI, será justo criminalizar, condenar a penas de prisão e sujeitar ao enxovalho público mulheres que de forma livre e voluntária, independentemente do grau de sofrimento – jamais mensurável por critérios sérios e objectivos –, decidiram interromper a gravidez?
Até me poderão apontar a falácia do enriquecimento súbito e ostensivo de empresas, sob a forma de clínicas especializadas no assunto, como corolário da liberalização, mas não será essa uma consequência quase que natural de qualquer mudança legislativa? Alguém discorda que sejam impostas algumas restrições ao fumo em locais públicos, sabendo que isso implica transferir a riqueza das indústrias tabaqueiras para as empresas farmacêuticas especializadas em produtos inibidores do vício do tabaco, para clínicas de desintoxicação tabágica, para médicos psiquiatras, para empresas de pastilhas elásticas, de chupa-chupas ou até de verniz para as unhas?
A mim preocupa-me a condenação pura e simples de mulheres que, mais ou menos conscientes dos riscos físicos e psíquicos em que poderão incorrer pela decisão tomada, mais ou menos identificadas com o momento em que surge o tal valor sagrado da vida, assumiram de forma corajosa, interromper um processo para o qual foram sendo preparadas no seu processo ontogenético.
Termino com uma citação de um curioso diálogo, que é parte integrante de uma obra literária. Discutia-se a função primordial da reprodução, a escolha da via da paternidade e a visão de um pai perante o nascimento não desejado de um filho (neste caso ilegítimo):
«Qual de nós não viveu esse calvário! É uma das grandes provações da vida. Os que sucumbem e se tornam pais contra a vontade ficam para sempre condenados pela sua derrota. Fazem-se maus como todos os homens que perderam e desejam igual sorte a todos os demais.»
O mesmo interlocutor prossegue mais adiante a sua prédica a favor da sua condição celibatária (como forma de impedir a geração de mais um ser infeliz no mundo dos Homens):
«A era moderna já desmascarou todos os mitos. A infância de há muito deixou de ser a idade da inocência. Freud descobriu a sexualidade do lactente e disse-nos tudo a respeito de Édipo. Só Jocasta permanece intocável, ninguém ousa arrancar-lhe o véu. A maternidade é o último e o maior dos tabus, o que encerra a maldição mais grave. Não há laço mais forte do que o que amarra a mãe ao filho. Esse laço mutila para sempre a alma da criança e prepara para a mãe, quando o filho tiver crescido, as mais cruéis de todas as dores do amor.»
Milan Kundera, A Valsa do Adeus. Porto: Asa, 1.ª edição, Outubro de 2006, pp. 84-85 (tradução de Miguel Serras Pereira)
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