segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Um pouco de Conrad

«Só os jovens passam por momentos assim. Não quero dizer os novos demais; esses não conhecem, para falar verdade, momentos propriamente difíceis. É dado à adolescência o privilégio de viver antecipadamente os dias da sua vida na plena continuidade admirável de uma esperança ininterrupta e sem introspecções.»
Joseph Conrad, Linha de Sombra
. Lisboa: Relógio D’Água, 1984, pág. 13 (tradução de Maria Teresa Sá e Miguel Serras Pereira; obra original: The Shadow Line, 1917)



Lembro-me bem dessa linha de sombra. A aflitiva transição entre a responsabilidade partilhada e a plena assunção dos danos que as nossas falhas infligem. Não se trata porém de um momento definido, como uma marca a vermelho no calendário de uma vida, infinita na sua compleição: a morte não nos pertence, não se pressente. A sede de viver, a rebeldia sem causas – um pouco Deaniano, é certo –, é sobretudo a pressa não sentida, mas que se reflecte no aproveitamento exemplar do oxigénio que nos alimenta as células.
Oh, quantas vezes não dou por mim, agora, a arrazoar sobre as tontices e a frugalidade que essa pressa me impingia. Loucuras vividas, o leve sentimento do limite alcançado como um funâmbulo sem vara de equilíbrio caminhando nas nuvens da imortalidade sentida. Fui feliz. Vivi. Aproveitei essa saudável alucinação com todas as forças que a juventude despretensiosamente me forneceu. Ouvia o Ian, psicótico e cavernoso, que atravessava a linha mas não lograva alcançar aquela centelha que nos indica a outra margem; porventura pretendia regressar, mas a porta fechara-se, e uma corda pendia do tecto de um suposto firmamento, não há centelha, há apenas a visão nocturna de um pensamento amadurecido na negridão percebida da inutilidade da vida. Ouvia-te e paradoxalmente só reforçaste a minha vontade de respirar livremente, formavam-se os ideais que mais tarde poria em prática… Esperança vã. A soberba advinda da convicção que pela palavra mudaremos a rota do nosso microcosmos. O muro ergue-se. Somos Nashe vagueando sem destino, somos Pozzi na convicção de que o mundo se ajoelha perante o desembaraço demonstrado. O muro construímo-lo, passo a passo, pedra sobre pedra, e só quando a vertigem da intransponibilidade se manifesta é que o dilema sobrevém: contornar, abdicando dos valores que se foram solidificando na alma; persistir na luta, mesmo que sintamos que só algo de intangível – ó alma – o poderá atravessar.
Essa dúvida foi a minha linha de sombra. Essa obstinação por percorrer o caminho que parece… que é o correcto. Foi… ainda é. Esse ideal alimenta-me e deixa-me paralisado. Enche-me de esperança e vai apartando-me do mundo. Envaidece-me e convence-me de que sou um pacóvio presunçoso, sem vida, sem futuro.
Na ausência do meu ser, dar-vos-ei tudo, ó mulheres da minha vida, mesmo que alma se arrede por uns momentos para se alimentar da utopia que brotou das sombras da minha mutação ontológica.

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