domingo, 10 de dezembro de 2006

Extensão do Domínio da Luta

Decididamente, o escritor francês Michel Houellebecq*, hoje com 48 anos (nascido na Ilha de Reunião em Fevereiro de 1958), produz com os seus escritos um efeito de ambivalência modelarmente antagónica na vasta comunidade literária: ou se venera – roçando os níveis da idolatria – ou se detesta – atingindo-se a intensidade do insulto impudico e gratuito** –, sem que se consiga formular uma razão simples, iniludível e aparente que possa explicar este paroxismo afectivo provindo, designadamente, da numerosa massa leitora.
A Quasi – honra lhe seja feita – editou em Outubro passado o primeiro romance da carreira literária de Houellebecq: Extensão do domínio da luta (Extension du domaine de la lutte, 1994). Assim, resta a tradução da obra de ficção Lanzarote para que se complete, em Portugal, a edição da bibliografia (na categoria “romance”) do autor francês. Assim, em Portugal já se encontram disponíveis os títulos As Partículas Elementares (Temas e Debates, 2000; Les Particules élémentaires, 1998), Plataforma (Bertrand, 2002; Plateforme, 2001) e A Possibilidade de Uma Ilha (Dom Quixote [Salgado], 2006; La Possibilité d'une île, 2005).

Em Extensão do domínio da luta, Houellebecq, transmutado num engenheiro informático – profissão que desempenhava na realidade – que incidentalmente se vê envolvido com Ministério da Agricultura francês, revela à priori os seus já bem conhecidos traços idiossincráticos enquanto autor de literatura de ficção, por exemplo, quando confessa que frequenta “muito pouco a natureza humana, e isto a propósito do excesso de densidade descritiva dos traços de personalidade dos personagens que se entrecruzam nos romances de outros autores, num mundo que, segundo o narrador (Houellebecq) as relações humanas” se tornam “progressivamente impossíveis. Logo há que destruir a “camada de pormenores, um por um”, havendo revelado que seria preferível “observar os lavagantes a pisarem-se uns aos outros dentro de um aquário (basta ir a uma marisqueira)” a ter de seguir esse caminho de desperdício de talento (pág. 17).
Depois, a narrativa flui pela itinerância forçada que o narrador terá de fazer pela França agrícola, onde os episódios picarescos se vão sucedendo a uma cadência de tal forma inebriante que nem damos conta da iminente chegada ao fim do livro.
Das reuniões iniciais no Ministério da Agricultura, nas quais podemos vislumbrar personagens que connosco se cruzam no dia-a-dia, há a destacar o teórico (pág. 30) – cujas “intervenções serão tanto para manter a ordem sobre a importância da metodologia como, de um modo geral, para apelar à reflexão preliminar à acção” – e os manuais de procedimentos, tendo por epítome as “Directivas do plano informático do Ministério da Agricultura” que são, por exemplo, um espelho da tecnocracia do teórico modelado no regalo meta linguístico em frases como (pp. 26-27):
«O nível estratégico consiste na realização de um sistema de informação global assente na integração de subsistemas heterogéneos distribuídos»;
Onde se acrescenta esta:
«Parece ser urgente validar um modelo relacional canónico numa dinâmica organizacional simplificado a meio termo numa base de dados orientado para um fim».
Porém, a extensão do domínio da luta só se define cabalmente a meio do livro, quando o narrador refere (pág. 79)***:
«Decididamente, pensava eu, nas nossas sociedades, o sexo representa o belo, segundo um sistema de diferenciação, completamente independente do dinheiro; comporta-se como um sistema de diferenciação impiedoso. Os efeitos destes dois sistemas são pelo menos estritamente equivalentes. Tal como o liberalismo económico sem entrave e por razões análogas, o liberalismo sexual produz os fenómenos de pauperização absoluta. Alguns fazem amor todos os dias; outros, cinco ou seis vezes na vida inteira, ou então nunca. Alguns fazem amor com meia dúzia de mulheres; outros com nenhuma. É aquilo a que chamamos a “lei do mercado”. No sistema económico onde o licenciamento é proibido, cada um consegue de uma maneira ou de outra encontrar o seu lugar. Num sistema sexual onde o adultério é proibido, ninguém consegue, de uma maneira ou de outra, encontrar a sua companhia na cama. Num sistema económico perfeitamente liberal, alguns acumulam fortunas consideráveis; outros improdutivos estão no desemprego e na miséria. Num sistema sexual perfeitamente liberal, alguns têm uma vida exótica e excitante; outros estão reduzidos à masturbação e à solidão. O liberalismo económico é uma extensão do domínio da luta, a sua extensão a todas as idades da vida e a todas as classes da sociedade. Do mesmo modo que o liberalismo sexual é a extensão do domínio da luta, a sua extensão acontece em todas as idades da vida e a todas as classes da sociedade. No plano económico, Raphaël Tisserand [o seu colega de trabalho, feiíssimo, e companheiro nas viagens profissionais pela França], pertence à classe dos vencedores; no plano sexual, à dos vencidos. Há quem ganhe em ambos os lados, há também quem perca nos dois. As empresas disputam entre si alguns jovens licenciados; as mulheres disputam alguns jovens homens; os homens disputam algumas mulheres; o problema e a agitação são consideráveis.»

Sem ser uma obra-prima, considero o primeiro romance de Houellebecq como globalmente bom e acima de tudo divertido. As suas bem características crueza, insensibilidade e misoginia normalmente bem impressas na narrativa ainda se encontravam aqui na sua fase de incubação, não alcançando a violência dos romances seguintes, que lhe atraiu uma horda de inimigos.

No blogue
Lauro António Apresenta… existe informação mais detalhada sobre este romance e sobre o autor e as outras obras.

Notas:
* Para mais informação sobre a actualidade houellebecquiana veja-se o
blogue do autor (embora a última entrada date de 5 de Setembro deste ano).
**Veja-se a página na Internet da
Associação (intergaláctica) dos Inimigos dos Amigos de Michel Houellebecq (A.E.A.M.H.)
***Hoje, através das
mini-entrevistas do Luís Carmelo, fiquei a saber que Lauro António tem um blogue e que, curiosamente, há uma semana havia efectuado a transcrição desta parte do texto de Michel Houellebecq. Ele há coisas fantásticas, não há!?

Referência bibliográfica:
Michel Houellebecq, Extensão do domínio da luta. V. N. Famalicão: 1.ª edição, Outubro de 2006, 123 pp. (tradução de Paula Lourenço)

1 comentário:

Anónimo disse...

Pena é nunca por cá ter aparecido nenhuma das suas contribuições cinematográficas ( se não considerarmos '9 Songs' onde teve uma participação indefinida - aparece o seu nome nos 'special thanks'). Não só escreveu os argumentos das adaptações ao cinema de 'Particulas elementares' e 'Extensão...' como realizou algumas curtas-metragens.