quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Anotações e Transcrições – 6

Começo com os V’s que, nada tendo que ver com o inimitável Pynchon, se constituem numa trindade cujo silêncio, acaso ajustado, atordoa de tão hermético: Valentim, Veiga e Vieira.
Há silêncios que, face ao estridor impudico precedente, não se conseguem explicar à luz de uma linearidade de comportamento que se preza e na qual se deverão basear os mecanismos judiciais para uma correcta aplicação do direito, não só no estrito cumprimento da sua missão de reparação do dano e de compensação da perda, como também no seu fim último de prevenção, ou seja, reduzir a probabilidade de ocorrência de casos similares.
Face ao exposto, nada melhor que as excelsas palavras dos outros, perante a dolorosa assunção de uma certa fadiga intelectual sobre o assunto, quando aquelas vêm de encontro às diversas interrogações que se apoderaram de mim desde a publicação da obra-prima do momento, pela ilustre e desinteressada editora Dom Quixote.

Eis as palavras [os destaques são da minha inteira responsabilidade]:

«A bota pode ser a do Ricardo Quaresma, o mais genial jogador do campeonato português – tal como já o era no ano passado, queira Scolari ou não queira. A perdigota pode ser a D.ª Carolina Salgado, que actualmente simboliza muito bem aqueles que chegaram ao futebol por acaso ou caminhos ínvios, dele se alimentaram para tentarem ser alguém e que a ele só trouxeram vergonha e sujidade. Há quem prefira o futebol à maneira da D.ª Carolina; eu prefiro-a a maneira do Ricardo Quaresma. Se vou para a bancada do estádio é por causa de jogadores como o Quaresma; se não me aproximo dos camarotes é por causa de pessoas como a D.ª Carolina, que por lá habitam.

Há três anos que venho dizendo isto e peço desculpa por me repetir: o grande embaraço do Apito Dourado é que desde o início que se tornou óbvio, para quem tenha alguns conhecimentos de direito ou algumas preocupações em ver a justiça ser feita, que as expectativas que muitos alimentaram à sua conta não encontravam correspondência nos factos do processo. Ou, por outras palavras, o grande objectivo de 80 por cento daqueles que obcecantemente falam, escrevem e sonham com o Apito Dourado – a saber, o entalanço de Pinto da Costa e do FC Porto – esbarram miseravelmente no pouco interesse que despertam as manigâncias do FC. Gondomar e de um pequeno exército de sombras gravitando à roda do major Valentim Loureiro. E isso, manifestamente, não interessa aos entusiastas do Apito Dourado: não é o Gondomar que interessa, é o FC Porto; não é Valentim Loureiro, é Pinto da Costa. Que chatice, não bater a bota com a perdigota!

Com grande esforço e voluntarismo, alguns magistrados do Ministério Público fizeram o que puderam para chegar onde a maioria queria: descobriu-se um árbitro que terá ido beber um café a casa de Pinto da Costa, antes de um palpitante FC Porto-Rio Ave para a Taça de Portugal, e outro que terá pedido a alguem que pediu a alguém ligado ao FC Porto duas meninas para se entreter antes de arbitrar o terrível FC Porto-Estrela da Amadora, disputado numa altura de 2004 em que o FC Porto já tinha uma vantagem irrecuperável para ser campeão e estava a dias de ganhar a Champions, enquanto o Estrela da Amadora já não tinha forma de evitar a despromoção. Eis um problema sério: como encontrar aqui interesse em corromper um árbitro, como descobrir o móbil do crime?

Segunda contrariedade: quem é que as escutas telef6nicas revelaram como grande
pivot do Apito Dourado
, verdadeiro patrão do jogo de sombras do futebol português? Valentim Loureiro. E quem é que deu o poder a Valentim Loureiro e com ele dividiu os cargos e influências na Liga de Clubes? O Benfica e Luís Filipe Vieira. Quem é que as escutas apanharam a escolher com ele ao telefone o árbitro que convinha ao seu clube? Luís Filipe Vieira. Quem é que lhe telefonou a pedir a interdição do campo do adversário e depois lhe prometeu «um beijinho» pelo favor feito? José Veiga. Que chatice, querem ver que a Justiça é cega?

Mas eis que agora, subitamente, um
sirocco
de esperança varre as almas justiceiras! Ainda nem tudo está perdido, ainda se pode fazer justiça! Graças à chegada aos acontecimentos de duas mulheres, já há benfiquistas que desabafam comigo que para o ano o FC Porto estará na II Divisão, tal como a Juventus, em Itália (já lá vai o tempo em que eles acreditavam poder vencer-nos: agora querem-nos é longe da vista e dos relvados...) Carolina Salgado, juram-me, vai ser a «testemunha-chave», «a mulher de coragem», como atestam a Leonor Pinhão e aquele Dr. Bexiga, ex-vereador de Gondomar, que, depois de a ouvir confessar que contratou e pagou aos que lhe deram uma coça, chegou à conclusão que ela era «um exemplo cívico» (mais uma e ele ainda a propõe para a Ordem do Infante...) O povo espera, obviamente, que o governo abra uma excepção às restrições orçamentais e que aplique parte do dinheiro dos nossos impostos e do nosso trabalho a garantir adequada protecção e recompensa a esta testemunha preciosa, cuja credibilidade, desinteresse e carácter moral estão amplamente expostos naquela coisa edificante a que a Editora D. Quixote resolveu chamar «livro» e que deve ser, com certeza, um modelo daquilo que os novos admiradores da D.ª Carolina gostariam de ver exposto acerca de si próprios, no dia em que os seus cônjuges resolvessem vingar-se deles. Valha-nos Carolina Salgado para perceber em que campo moral cada um se situa e como o futebol português é, de facto, o território do «vale tudo». Mas o povo também espera que a Dr.ª Maria José Morgado faça jus à sua fama de arrasa-criminosos e consiga descobrir finalmente o móbil do crime portista, nem que para isso tenha de mandar torturar, um por um, todos os árbitros portugueses, incluindo até Lucílio Baptista e todos os que apitaram jogos do Benfica, na gloriosa caminhada rumo ao titulo de 2004/05. Dela se espera bem mais do que aquele caricato episódio de um juiz de instrução a ouvir três peritos em arbitragem para ver se eles conseguiam detectar, no vídeo do célebre FC Porto-Estrela da Amadora (4-1), provas concludentes sobre a corrupção do árbitro, coisa que, estranhamente, não se tornou patente.

Mas há uma coisa que, nem que Cristo descesse à terra para dirigir pessoalmente as investigações do Apito Dourado, se conseguiria desfazer: é esta chatice da verdade do futebol jogado dentro dos relvados e que todas as semanas pode ser constatada por quem segue o assunto e ainda gosta de futebol, E aí, nesse território da verdade, o que a memória dos últimos largos anos nos diz é que, tirando esporádicos intervalos, o FC Porto é a melhor equipa portuguesa a léguas de distância das outras e uma das melhores equipas da Europa e do Mundo. Não deve ser coincidência que quem por lá passa, seja jogador ou treinador (e, em especial, se vindo dos rivais directos), não se cansa de repetir que ali encontrou uma organização, um espírito de equipa e uma cultura de vitória como em lado algum. E, depois, há equipas como a do Baía, do Ricardo Carvalho, do Deco, do Derlei, ou esta do Helton, do Pepe, do Quaresma e do Anderson, que todas as semanas mostram num canal perto de si que só por absoluto fanatismo e má-fé é que é possível pretender que não é a eles que se devem as vitórias, mas sim aos árbitros – aqui, na Europa e no Mundo.

O FC Porto de Jesualdo Ferreira acaba de encerrar de forma brilhante dois ciclos de jogos, com uma interrupção de dez dias pelo meio, em que foi o único representante português a ultrapassar a fase de grupos na Champions e se afirmou internamente como o grande candidato ao título. Foram 13 jogos, quase todos sem Anderson, alguns arrostando com arbitragens prejudiciais, outros encaixando a quase violência dos adversários, e apenas cedendo, no final, dois empates: um em Alvalade, no campo de um rival directo, e outro contra o Arsenal, em que só o azar impediu a vitória. Nunca o Apito Dourado deu tanto jeito para desviar as atenções!
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Por Miguel Sousa Tavares, "Não bate a bota com a perdigota", in A Bola, 19/12/2006

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