«A verdade, como o silêncio, existe apenas onde não estou. O silêncio existe por trás das palavras que se animam no meu interior, que se combatem, se destroem e que, nessa luta, abrem rasgões de sangue dentro de mim. Quando penso, o silêncio existe fora daquilo que penso. Quando paro de pensar e me fixo, por exemplo, nas ruínas de uma casa, há vento que agita as pedras abandonadas desse lugar, há vento que traz sons distantes e, então, o silêncio existe nos meus pensamentos. Intocado e intocável. Quando volto aos meus pensamentos, o silêncio regressa a essa casa morta. É também aí, nessa ausência de mim, que existe a verdade.» (pág. 123)
Este pequeno, porém brilhante, naco de prosa foi retirado do romance Cemitério de Pianos de José Luís Peixoto. Escritor português, de 32 anos (nascido em 1974), natural do Alentejo. Na badana do livro (na sua 1.ª edição) podem-se ler várias frases de reputados autores e de gente das letras que não deixam margens para dúvidas no que se refere ao talento inato deste jovem autor. Destaco a frase de Antonio Muñoz Molina sobre a escrita de Peixoto: «O fantástico é contado com a naturalidade do quotidiano. A crónica e a fábula sobrepõem-se, como as histórias que contam ou presenciam ou calam as personagens de William Faulkner ou de Juan Rulfo.»
Neste livro conta-se sobretudo a história, de conexões metaforicamente bíblicas, de Francisco Lázaro. Desde já, adivinho que, tal como ocorreu no meu mui particular percurso de leitura, assim que aquele nome for pronunciado e inteligido, uma vaga reminiscência, de uma intermitência desesperante, acompanhará o leitor até ao surgimento da palavra-chave, que por pudor advindo do possível cometimento de uma indiscrição – em jeito de desmancha-prazeres – aqui não revelarei.
Eis uma história de gerações que se entrecruzam e se confundem, conferindo-nos por vezes a sensação de um anacronismo latente, que, num olhar mais atento e dedicado, é desfeito e refeito nas mais variadas elipses da narrativa, elaboradas com uma mestria rara no panorama da escrita contemporânea portuguesa.
O Cemitério de Pianos...? O sepulcro dos nossos medos, o cofre dos nossos segredos, o refúgio para a libertação da angústia que nos atormenta, a caixa de Pandora que perigosamente habita, para ser aberta, no refúgio de uma carpintaria; a Carpintaria onde exerceu ofício o Mestre, ponto de partida para a redenção dos flagelos, vícios e impiedades que se vão transmitindo, ao correr das páginas, por um processo atávico.
A cadência expositiva dos factos e dos argumentos escoa-se como água fugindo por entre os dedos. Porém, é esse sentimento que nos mantém agarrados, um leve fluir que inebria e que nos vai calmamente mortificando pela presença constante do sentimento de orfandade, quer pela ausência de afectos, quer pela ausência física do personagem – induzida pela inevitável mortalidade do corpo – que imediatamente se regenera pela vida num outro ser. Não é à toa que José Luís Peixoto escolhe para epígrafe um fragmento do prodigioso romance de Kazuo Ishiguro “Quando éramos órfãos”: «(…) our fate is to face the world as orphans, chasing through long years the shadows of vanished parents. (…)»
Esta é(são) a(s) história(s) de Francisco, ubíquo, ensombrado através da alegoria pelo seu terrível apelido. Todavia, aquela é o resultado da intersecção das histórias de outros, onde a tal ubiquidade se constitui como uma fiel reverberação das vidas atormentadas dos seus irmãos Marta, Maria e Simão: Betânia – e mais não direi.
Chegado ao fim do livro, perante a agonia do desejo, irrealizável e vivamente experimentado, de multiplicação das páginas já lidas, eis que emerge a frase de abertura, como uma aparição (talvez, Eu sou a ressurreição e a vida*), sob a forma de uma marca indelével – não se apagou transcorridas horas de leitura, folheadas cerca de 310 páginas –, ei-la: «Quando comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer.»
Finalmente, à laia de um Nostradamus não catastrofista, irrompeu em mim uma ideia em forma de presságio, que assumi como uma quase certeza: rapidamente, a jovem esperança passará a figurar no mais alto firmamento (Olimpo) da nobreza literária – assim lhe permita a vida –, juntando-se a um grupo assaz restrito de autores portugueses que aí foram chegando em oito séculos de História. Esta é a minha convicção de diletante, e nada mais!
Termino, referindo que, sem qualquer tipo de pejo, das obras de ficção em prosa originalmente editadas em português no ano de 2006 – e por mim lidas – esta é sem dúvida a melhor. E, ademais, mantém-se em posição cimeira se à lista anterior juntarmos as obras de língua estrangeira editadas em 2006 em língua portuguesa. Nesse largo conjunto, afirmo, sem rodeios, que porventura será apenas ligeiramente inferior a uma pequena obra-prima – de todo não comparável em termos formais – de um tal génio russo/norte-americano, que morreu na Suíça, chamado V. Vladimirovich N., publicada pela Assírio & Alvim no início deste ano, que aqui dei conta (nas melhores leituras do 1.º semestre de 2006).
Este homem promete, e acabou de contribuir com mais um prego para o caixão onde em breve jazerá, sem hipótese de ressureição, o meu equilíbrio orçamental.
*João, 11: 25
Referência bibliográfica:
Cemitério de Pianos, José Luís Peixoto. Lisboa: Bertrand, 1.ª edição, Dezembro de 2006, 315 pp.
1 comentário:
Concordo em absoluto em relação ao facto de considerar que o "Cemitério de pianos" é um grande livro.
Eu comecei pro ler o Morreste-me e tocou-me como nenhum outro livro. Tive ocasião de o dizer ao José Luís há menos de duas semaans. E ele percebeu cada uma das minhas palavras acerca do livro, o que me sensiblizou. Aliás, toda a postura dele é o que devai ser a postura de um grande escritor.
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