O seu nome assemelha-se a uma onomatopeia retirada das páginas coloridas de uma fantasia gráfica maniqueísta da DC Comics ou da Marvel; porém, no mundo mais restrito da cinefilia, onde remanescem alguns estouvados que insistem em despender alguns dos seus parcos recursos para conseguirem obter o acesso a cinematografias alternativas de forma a proporcionar o enchimento estético da retina, aquela onomatopeia aliterante há muito que vai servindo para identificar um notável realizador vietnamita, quase desconhecido do público português pela imperiosas leis do nosso mercado, oligarca por definição, tanto no circuito da distribuição e da exibição cinematográficas, como no mercado de DVD.
Nascido em 1962 na tristemente célebre cidade de Da Nang, o jovem futuro cineasta viveu a sua infância em Saigão (hoje Ho Chi Minh). Em 1975, fugia com a sua família para França após a queda de Saigão sob o domínio dos norte-vietnamitas e perante o inevitável colapso e retirada das tropas americanas das terras meridionais da Indochina, encurraladas a oeste pelos khmers vermelhos cambojanos. Hoje, aquele rapaz que nasceu sob o estridor das bombas, dos gritos de martírio de uma população dizimada e o “cheiro a napalm pela manhã” (ou odor?), é um cidadão francês de pleno direito e um dos mais ilustres realizadores da inimitável indústria asiática de cinema.
Em Portugal, Tran Ahn Hung é sobretudo conhecido pelo seu maravilhoso filme de estreia, O Odor da Papaia Verde (Mùi du du xanh, 1993), que lhe valeu a nomeação para o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 1994 (perdê-lo-ia para o mediano Belle Epoque do realizador espanhol Fernando Trueba) e que antes lhe havia permitido a saída do quase anonimato – embora já tivesse dado que falar com as suas duas curtas-metragens anteriores – ao vencer o Caméra d’Or no Festival de Cannes de 1993 – júri nesse ano presidido pela actriz Micheline Presle, a volúvel “Marthe Grangier” de Radiguet levado à grande tela pelo infame Claude Autant-Lara.
De lá para cá, Tran Ahn Hung realizou dois filmes notáveis: Cyclo (Xich lo, 1995) e “Em Pleno Verão” (título possível em português; Mua he chieu thang dung / À la verticale de l'été, 2000); o primeiro com projecção limitada no nosso país, o segundo nem sequer viu a luz da projecção em solo luso – valha-me o mercado espanhol que permitiu aprofundar a minha admiração pelo notável esteta asiático. Com o assombroso e brutal Cyclo, o realizador franco-vietnamita conquistou o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza em 1995 (Bienal de Veneza) – curiosamente, como é demais conhecido, um evento anual quase desde a sua fundação em 1932 – derrotando, entre outros, o nosso João César Monteiro, o recentemente falecido Claude Chabrol, Ettore Scola, Spike Lee ou Hirokazu Koreeda.
Em 2008, o cineasta asiático aventura-se no domínio do inglês, com uma produção multinacional (britânica, chinesa, espanhola, francesa e irlandesa), e cria I Come with the Rain (“Venho com a Chuva”, tradução possível para a nossa língua), tendo por protagonista o sex symbol norte-americano Josh Hartnett (que o interpretou ainda embalado pelo reconhecimento público do personagem-tipo em A Dália Negra de Brian De Palma) e a jovem estrela da televisão japonesa Takuya Kimura. Trata-se da 4.ª longa-metragem do autor vietnamita, cuja cópia se dissipou, misteriosamente, no éter dos circuitos comercial e independente de cinema, com estreias modestas no Extremo Oriente, estando apenas disponível no lado ocidental por vias esconsas e pouco recomendáveis em nome do cumprimento da lei. Há quem assegure que foi o próprio Tran Ahn Hung que procurou esse fim face à implacável rasoira de alguns sectores importantes da crítica internacional, apesar de terem surgido outras bastante positivas, as más foram suficientemente arrasadoras, e logo para a obra que marcou o regresso do cineasta ao grande ecrã após oito anos de ausência – se houver oportunidade, direi de minha justiça sobre este filme em que nos assomam sentimentos de amor e ódio quase simultâneos.
Uma curiosidade: todos os filmes contam com a presença da actriz vietnamita Yenkhe Tran Nu (n. 1968), assume o papel de mulher do realizador no mundo fora da tela: bela, de uma transcendência exótica difícil de definir com o seu sorriso enigmático de Mona Lisa, de gestos dóceis, lentos e de uma perfeição estudada, porém graciosa e profunda, de um equilíbrio oriental nos momentos mais frementes e buliçosos.
Nascido em 1962 na tristemente célebre cidade de Da Nang, o jovem futuro cineasta viveu a sua infância em Saigão (hoje Ho Chi Minh). Em 1975, fugia com a sua família para França após a queda de Saigão sob o domínio dos norte-vietnamitas e perante o inevitável colapso e retirada das tropas americanas das terras meridionais da Indochina, encurraladas a oeste pelos khmers vermelhos cambojanos. Hoje, aquele rapaz que nasceu sob o estridor das bombas, dos gritos de martírio de uma população dizimada e o “cheiro a napalm pela manhã” (ou odor?), é um cidadão francês de pleno direito e um dos mais ilustres realizadores da inimitável indústria asiática de cinema.
Em Portugal, Tran Ahn Hung é sobretudo conhecido pelo seu maravilhoso filme de estreia, O Odor da Papaia Verde (Mùi du du xanh, 1993), que lhe valeu a nomeação para o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 1994 (perdê-lo-ia para o mediano Belle Epoque do realizador espanhol Fernando Trueba) e que antes lhe havia permitido a saída do quase anonimato – embora já tivesse dado que falar com as suas duas curtas-metragens anteriores – ao vencer o Caméra d’Or no Festival de Cannes de 1993 – júri nesse ano presidido pela actriz Micheline Presle, a volúvel “Marthe Grangier” de Radiguet levado à grande tela pelo infame Claude Autant-Lara.
De lá para cá, Tran Ahn Hung realizou dois filmes notáveis: Cyclo (Xich lo, 1995) e “Em Pleno Verão” (título possível em português; Mua he chieu thang dung / À la verticale de l'été, 2000); o primeiro com projecção limitada no nosso país, o segundo nem sequer viu a luz da projecção em solo luso – valha-me o mercado espanhol que permitiu aprofundar a minha admiração pelo notável esteta asiático. Com o assombroso e brutal Cyclo, o realizador franco-vietnamita conquistou o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza em 1995 (Bienal de Veneza) – curiosamente, como é demais conhecido, um evento anual quase desde a sua fundação em 1932 – derrotando, entre outros, o nosso João César Monteiro, o recentemente falecido Claude Chabrol, Ettore Scola, Spike Lee ou Hirokazu Koreeda.
Em 2008, o cineasta asiático aventura-se no domínio do inglês, com uma produção multinacional (britânica, chinesa, espanhola, francesa e irlandesa), e cria I Come with the Rain (“Venho com a Chuva”, tradução possível para a nossa língua), tendo por protagonista o sex symbol norte-americano Josh Hartnett (que o interpretou ainda embalado pelo reconhecimento público do personagem-tipo em A Dália Negra de Brian De Palma) e a jovem estrela da televisão japonesa Takuya Kimura. Trata-se da 4.ª longa-metragem do autor vietnamita, cuja cópia se dissipou, misteriosamente, no éter dos circuitos comercial e independente de cinema, com estreias modestas no Extremo Oriente, estando apenas disponível no lado ocidental por vias esconsas e pouco recomendáveis em nome do cumprimento da lei. Há quem assegure que foi o próprio Tran Ahn Hung que procurou esse fim face à implacável rasoira de alguns sectores importantes da crítica internacional, apesar de terem surgido outras bastante positivas, as más foram suficientemente arrasadoras, e logo para a obra que marcou o regresso do cineasta ao grande ecrã após oito anos de ausência – se houver oportunidade, direi de minha justiça sobre este filme em que nos assomam sentimentos de amor e ódio quase simultâneos.
Uma curiosidade: todos os filmes contam com a presença da actriz vietnamita Yenkhe Tran Nu (n. 1968), assume o papel de mulher do realizador no mundo fora da tela: bela, de uma transcendência exótica difícil de definir com o seu sorriso enigmático de Mona Lisa, de gestos dóceis, lentos e de uma perfeição estudada, porém graciosa e profunda, de um equilíbrio oriental nos momentos mais frementes e buliçosos.
O que é Tran Ahn Hung?
Imagens fortes, com toda a carga polissémica do qualificativo: verdes deslumbrantes – a natureza húmida do Vietname; a iridescência bruxuleante e voluptuosa da gastronomia oriental; o suor endémico que escorre por aquela pele de tez acobreada, entre o ébano da Índia e o ebúrneo envelhecido da China. Movimentos de câmara enleantes e claustrofóbicos, como se os nossos olhos deambulassem por um mural gigantesco, incapaz de ser captado na sua plenitude pela insolúvel finitude espacial congénita do nosso campo visual – uma sensação de confinamento, que Tran Ahn Hung solta com mestria nos momentos adequados, mostrando-nos o pormenor que não nos poderia escapar. Os silêncios que nunca são mudos, sempre matizados pelos sons da fauna local – o chilreio dos pássaros exóticos, o sibilar dos répteis, o coaxar das rãs, o barulho ininterrupto dos mais espantosos insectos –, ou pelo bulício de uma metrópole babélica, como em Cyclo – o marralhar dos comerciantes, os escapes estridentes das motocicletas, a chiadeira dos travões dos táxis, o gotejar do desespero na solidão do lar degradado: a humidade, as lágrimas, o suor e o sangue. A banda sonora que irrompe mansamente para depois desaparecer de forma abrupta, regressamos ao silêncio, como alerta simbólico para o brotar de uma mensagem forte, que tem de ser retida, pode tratar-se de um desenlace perturbador – como com “Creep” dos Radiohead em Cyclo – ou das entrelinhas de uma emoção inconfessável, o despertar para um tabu pronto a ser quebrado – como com “Pale Blue Eyes” ou “Coney Island Baby” dos Velvet Underground e Lou Reed, no filme “Em Pleno Verão” – ou a paixão ardente, porém inocente, paciente, feita de uma longa espera mas pronta a eclodir, a derrubar os muros das convenções e estratos sociais – o 3.º andamento da Suite Bergamasque de Debussy “Clair de Lune”, ou o arrebatamento dos dois últimos prelúdios para piano de Chopin, em O Odor da Papaia Verde. A violência gráfica de “Venho com a Chuva” atinge os seus momentos culminantes com três faixas dos Radiohead, todas retiradas de álbuns diferentes: “Nude” (In Rainbows, 2007); “Climbing Up the Walls” (OK Computer, 1997); e “Bullet Proof..I Wish I Was” (The Bends, 1995).
Imagens fortes, com toda a carga polissémica do qualificativo: verdes deslumbrantes – a natureza húmida do Vietname; a iridescência bruxuleante e voluptuosa da gastronomia oriental; o suor endémico que escorre por aquela pele de tez acobreada, entre o ébano da Índia e o ebúrneo envelhecido da China. Movimentos de câmara enleantes e claustrofóbicos, como se os nossos olhos deambulassem por um mural gigantesco, incapaz de ser captado na sua plenitude pela insolúvel finitude espacial congénita do nosso campo visual – uma sensação de confinamento, que Tran Ahn Hung solta com mestria nos momentos adequados, mostrando-nos o pormenor que não nos poderia escapar. Os silêncios que nunca são mudos, sempre matizados pelos sons da fauna local – o chilreio dos pássaros exóticos, o sibilar dos répteis, o coaxar das rãs, o barulho ininterrupto dos mais espantosos insectos –, ou pelo bulício de uma metrópole babélica, como em Cyclo – o marralhar dos comerciantes, os escapes estridentes das motocicletas, a chiadeira dos travões dos táxis, o gotejar do desespero na solidão do lar degradado: a humidade, as lágrimas, o suor e o sangue. A banda sonora que irrompe mansamente para depois desaparecer de forma abrupta, regressamos ao silêncio, como alerta simbólico para o brotar de uma mensagem forte, que tem de ser retida, pode tratar-se de um desenlace perturbador – como com “Creep” dos Radiohead em Cyclo – ou das entrelinhas de uma emoção inconfessável, o despertar para um tabu pronto a ser quebrado – como com “Pale Blue Eyes” ou “Coney Island Baby” dos Velvet Underground e Lou Reed, no filme “Em Pleno Verão” – ou a paixão ardente, porém inocente, paciente, feita de uma longa espera mas pronta a eclodir, a derrubar os muros das convenções e estratos sociais – o 3.º andamento da Suite Bergamasque de Debussy “Clair de Lune”, ou o arrebatamento dos dois últimos prelúdios para piano de Chopin, em O Odor da Papaia Verde. A violência gráfica de “Venho com a Chuva” atinge os seus momentos culminantes com três faixas dos Radiohead, todas retiradas de álbuns diferentes: “Nude” (In Rainbows, 2007); “Climbing Up the Walls” (OK Computer, 1997); e “Bullet Proof..I Wish I Was” (The Bends, 1995).
E agora vem aí Jonny Greenwood com Murakami e os seus Beatles…
[Na imagem: “Lien” (a irmã mais nova) por Yenkhe Tran Nu e “Hai” (o irmão) pelo actor Ngo Quang Hai, dançando ao som de “Coney Island Baby” de Lou Reed, em Mua he chieu thang dung – À la verticale de l'été, 2000.]
--- Fim da parte I (a parte II, a razão de ser deste texto, para quando houver tempo) ---