sábado, 29 de maio de 2010

Temor

Ishiguro teve sorte, ou procurou-a, no momento em que vendeu os direitos do seu romance Os Despojos do Dia à indústria cinematográfica. Não sei se os vendeu bem, sei, no entanto que, por mais ou menos ponderado que se haja revestido o seu o acto de cedência, a obra-prima, Booker Prize de 1989, ficou na melhor das mãos; foi arrebatada por uma das uniões mais bem-sucedidas no escasso mundo dos verdadeiros artesãos da sétima arte, a Merchant Ivory: James Ivory realizou e Ruth Prawer Jhabvala escreveu o argumento. Independentemente dos prémios, das críticas e das receitas, Os Despojos do Dia (The Remains of the Day, 1993) – a sua beleza cénica, o seu bem doseado pathos (veja-se a epítome da fleuma e da estrita observância no cumprimento do dever em “James Stevens”), o delicado rendilhado da trama, o par eterno Emma T. & Anthony H. – ficará de forma indelével ligado ao firmamento da indústria cinematográfica. A ele já voltei meia dúzias de vezes sem que se houvesse manifestado em mim qualquer sinal de cansaço.
Kazuo Ishiguro pertence ao pequeno grupo de escritores britânicos nascidos nos anos 40 e 50 do século passado cuja bibliografia dificilmente chegará à dezena nos tempos mais próximos. É um perfeccionista, e essa qualidade detecta-se em todas as suas obras. Entre a publicação das suas histórias, o autor de origem japonesa escreveu dois argumentos para cinema para um filme de Guy Maddin (A Canção Mais Triste do Mundo; The Saddest Music in the World, 2003) e outro para James Ivory (A Condessa Russa; The White Countess, 2005), ambos premiados mas bem longe dos holofotes do sucesso. Hoje, sabe-se que o melhor romance (opinião pessoal) (Nunca Me Deixes; Never Let Me Go, 2005) do mestre Ishiguro está a ser transposto para a sétima arte – encontrando-se já na fase de pós-produção, com estreia marcada nos Estados Unidos para os primeiros dias de Outubro deste ano – pelo génio retorcido do argumentista preferido do “blasonado sem causa” Danny Boyle, Alex Garland (n. 1970). A realização ficou a cargo do norte-americano Mark Romanek (n. 1959), que para além de haver dirigido apenas duas longas-metragens ao longo da sua carreira, que começou com a comédia Static de 1985, e terminou com o mais que medíocre projecto de thriller Câmara Indiscreta (One Hour Photo, 2002), realizou uma série de telediscos para Bowie, Morrisey, Madonna, Janet e Michael Jackson e para bandas como os R.E.M., Weezer, Sonic Youth ou os Red Hot Chili Peppers.
No elenco, já disponível na base de dados do IMDB, constam nomes como Carey Mulligan no papel da doce “Kathy”, Charlotte Rampling (que, atendendo às características da personagem, ficará bem no papel da inescrutável “Miss Emily”), a leighiania Sally Hawkins e a inevitável Keira Knightley, para além do jovem grande actor Andrew Garfield – os sentimentos mistos que me despertaram, também não auguram nada de bom.
Um temor apoderou-se de mim. E é sempre assim, quando uma obra literária que me encheu as medidas é adaptada ao cinema. Ainda bem presente na minha memória está a adaptação desastrosa em 2007 do melhor romance de Ian McEwan, Expiação (Atonement, 2001) pela dupla Joe Wright & Chris Hampton, uma película que parecia filmada com um scanner (remissão para dois textos aqui escritos) que retirou toda a beleza subliminar da já canónica obra de McEwan.
Só me resta esperar para nestas páginas, se ainda por cá andar, poder zurzir na obra fílmica que se anuncia, tal é a energia acumulada pelos sentimentos de temor/cólera. Porém, uma coisa afigura-se-me como certa, nestes casos qualquer lampejo de brilhantismo pode ter o efeito pernicioso de fazer soltar a minha veia encomiástica, tão baixas são as expectativas – pernicioso? Porquê? Se a imagem que possais ter deste que vos escreve não me preocupa…
Nota: no ficheiro fotográfico acima (da esquerda para a direita), Keira Knightley (“Ruth”) e Carey Mulligan (“Kathy”) no local das filmagens.