Nunca um defeito – que me merece todo o respeito, tal como um excesso, desde que não me fodam com patranhas – me pareceu tão adequado para qualificar a novela arrastada, burlesca, pobrezinha, em suma, epítome da lusitanidade, sobre a “vinda/não-vinda” da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema para o Porto. Somos pobres, provincianos e estamos curvados, receptivos (faltam as feromonas), perante o poder ditado pela Capital. O Bénard, semideus, não queria, logo pelo dom emanado dos miasmas além-túmulo não se faz – como um oráculo tenebroso, lançando gritos, aflições e pragas através da corrupção da carne e da vetustez do espírito.
Sin Cinemateca – é como nos tratam, como bando de espanhóis que enchem os bolsos a uma corte de subsidiados que levantam o nariz e apontam o dedo, clamando por ventos e tempestades contra qualquer iniciativa que lhes roube a chama sagrada da cultura. E cá continuamos, no enquadramento bucólico do porto, como o Ícaro de Brueghel de cabeça e tronco mergulhados nas águas cediças, de traseiro virado ao deus iracundo pelo arrojo da sugestão – nem sequer houve tempo para o roubo da chama eterna que ilumina aquelas cabeças olímpicas, supra-sumos da intelectualidade e agentes exclusivos da cultura.
Basta olhar para a programação, e deixar destilar a inveja que me invadiu, arrasadora e pérfida, pela constatação da sua excelência, embora à custa da depredação dos corpos exauridos das regiões mais pobres da Europa a 27 – e, nesse momento, surge a ira pela diferença abissal entre a sumptuosidade asiática da Capital macrocéfala e os cenários de devastação humana que me rodeiam. Pecador sem remissão.
Oh, e como a Sra. Dra. (por lá tratam-se todos assim, pelos títulos, a que nem as salas de projecção conseguem escapar; esse novo-riquismo, snob, sine nobilitate, a jactância pequeno-burguesa, o triunfo dos porcos que finalmente se acham símiles dos humanos no poder), investida daquela sua farpa graciosa, em que tartamudeando, faz as suas piadinhas demagógicas e atestadas de soberba:
«Houve um abaixo-assinado [sobre a criação de um pólo da Cinemateca no Porto], como sabe. E acontecem algumas projecções na Fundação de Serralves em que, segundo me disseram... Por exemplo, no ciclo dedicado a Pedro Costa, não sei se o realizador se alguém por ele, perguntou, perante o número exíguo de espectadores, se eles estavam ali em representação dos 4970 signatários.»Maria João Seixas, Ípsilon, 28/05/2010 (em entrevista a Kathleen Gomes).
Ciclo, mas que ciclo? O extinto preparatório? Um cripto-ciclo com duas projecções duas (Ne change rien de 2009, e O Sangue de 1989) num auditório que não reúne as condições necessárias para uma projecção cinematográfica de qualidade (visual e sonora) e minimamente confortável?
Não há salas cheias, sem se readquirirem os hábitos que se perderam, ou que nos foram roubando. A outrora considerada cidade ibérica com maior número de cinéfilos, vai-se divertindo com os popós nos Aliados e na Boavista (com aplauso de veneração da Capital), as lantejoulas brejeiras e revisteiras à Praça D. João I e o gordo dos concursos à Sá da Bandeira. E chega.
E continuo a olhar para o programa, e a ira e a inveja consomem-me pelos trezentos quilómetros de distância.
Sin-Cinemateca. Para os mais eruditos, latinistas, Sine-Cinemateca. Besuntai-vos com ela e com as soluções de compromisso com os mortos. Bastava um arquivo digital que, com o dinheiro de todos nós, replicasse no Porto e noutras cidades com um razoável número de cinéfilos (Coimbra, Braga ou Vila Real, por exemplo), o programa exibido na Barata Salgueiro.
Polanski, Spielberg, Visconti e… Mário Barroso, uma nota cómica (a talho de foice)
A Cinemateca promoveu uma pequena e curiosa iniciativa (ainda em realização) denominada “Os Filmes dos Presidentes”, que se enquadra nas comemorações do Centenário da República, nesse sentido «a Cinemateca entendeu convidar quem ocupa e ocupou o mais Alto Cargo da República para a realização deste Ciclo, apresentando um filme da sua escolha.» Eis a selecção:
- Cavaco Silva escolheu O Pianista (The Pianist, 2002), de Roman Polanski;
- Jorge Sampaio elegeu o grandioso O Leopardo (Il Gattopardo, 1963), de Luchino Visconti;
- Ramalho Eanes optou pelo mais prosaico e militarista O Regaste do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998), de Steven Spielberg;
- Mário Soares, bem ao seu estilo, laico e republicano (agora fala-se muito da ética desta última), sobrinhou (foi bastante papista) O milagre segundo Salomé, do realizador português Mário Barroso.
Como diria alguém que conheço e muito prezo: uma beleza!