Uma inquietação sobre a realidade que chegou até mim em caracteres negros nas edições do dia dos matutinos lusos – podia haver-lhe chamado uma inflamação, não fora a primazia comodista e superficial dada à emanação lúbrica de pólenes fecundadores que, afagados pelo vento, acasalam com os meus olhos e as minhas mucosas nasais – sobreveio quando li que foi criada a primeira célula artificial em laboratório por um tal de Craig Venter. E se uma inflamação é potencialmente mais abrasiva que uma inquietação, não há nada como fazer cair sobre o assunto um manto de silêncio, à laia de um Donoso, escarninho, expondo ao ridículo o reaccionarismo literário de antanho e por curiosa anteposição ao seu revivalismo defendido por tão ilustre gente; aquela turba que, ainda hoje, beija os pés ao sumo-sacerdote James do Bosque – reduzido à condição de poeira episódica pelo canonizador Bloom, que desabrocha (e não, não me refiro aqui ao cúmulo da inocência) e é de imediato varrida pelo vento da irrelevância, concluindo pela inexistência do tal do Bosque na crítica literária, nem para corroborar o arcaico princípio cartesiano.
Deixemos a botânica, o Bosque a Desabrochar, as rememorações de Donoso, o realismo e a lanugem das gramíneas e voltemos ao manto de silêncio.
Entrei numa das vinte salas do UCI para assistir a mais um filme não-americano. Se na semana passada foi o claustrofóbico israelita, vencedor do último Leão de Ouro em Veneza, para esta reservei um italiano do, para mim, quase desconhecido realizador siciliano Luca Guadagnino (n. 1971), Eu Sou o Amor (Io sono l’amore*).
Decorridas duas horas, saí da sala como uma sensação estranha de enfartamento – não encontro melhor descrição para a espécie de mal-estar de que parecia padecer. Ainda os olhos se habituavam à luminosidade exterior e dei por mim a divagar sobre se tinha acabado de ver uma película realizada por um mutante que houvesse assumido, por um lado, a brusquidão, a violência psicológica, os zooms repentistas de Visconti e, por outro, o melodrama vívido, delirante, em technicolor de Sirk, como Imitação, antes de se despedir da América que o acolheu durante os anos do terror nazi. Focando na parte italiana da mimese (sintetizada no genoma do mutante), há, de facto, laivos de O Leopardo (Il gattopardo, 1963) como alguns lhe apontam. Todavia o que afluiu à minha mente cinéfila foi sobretudo o ímpeto e o delírio de Os Malditos (La caduta degli dei, 1969) e o lado mais áspero de Violência e Paixão (Gruppo di famiglia in un interno, 1974). Mas também há Haynes – talvez um dos braços do mutante, ou mesmo parte do tronco – e o seu premiadíssimo Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002).
Tilda Swinton é soberba. Arrisco-me mesmo a proferir uma sentença abonatória: neste momento, é a melhor actriz em actividade. Guadagnino é espalhafatoso na cor, nos grandes planos, na, a título de exemplo, duradoura cena de sexo quase explícita, numa, de certo modo estafada, metáfora imagética com abelhas, insectos, flores e polinizações, de onde sobressaem os cumes alcantilados das montanhas envolventes; é, em suma, um abusador do simbolismo, da mensagem subliminar que qualquer mente mais atenta não deixará de tentar descodificar, culminando com o plano da “caverna obscura”, já depois da ficha que anuncia o elenco e que os pressurosos filistinos já não vêem – quais bonecos articulados que tratam os créditos finais com menor apreço que o manual de instruções de uma loção capilar. Reflexos platónicos? A renúncia à descoberta da verdade, o triunfo do amor corpóreo como paralisia e fautor do acomodamento nas trevas da caverna?
Assaltam-me, ainda agora, sentimentos contraditórios: admiração e desassossego, o entranhado, por anos de aprendizagem, horror ao melodramático e a descoberta da beleza numa cascata de emoções a brotar do celulóide.
Obra-prima? O tempo e um novo visionamento o dirão. Por enquanto, não chegarei ao cúmulo de lhe justapor o rótulo OFNI (Objecto Fílmico Não Identificado), como, directamente de Cannes e com alguma graça, escreveu Olivier Delcroix acerca do Ricky de Ozon nas páginas do Le Figaro.
Nota: *título baseado na famosa ária do 3.º acto da ópera Andrea Chénier (1896) do compositor italiano Umberto Giordano (1867-1948). No filme é usado o registo da ária interpretada por Maria Callas (gravada ao vivo no Scala de Milão em 1955), tal como aparece no momento mais dramático do filme de 1993 de Jonathan Demme Filadélfia (Philadelphia), cujas imagens surgem simbolicamente no leito conjugal de Emma (Swinton) e Recchi (Delbono). Do libreto, os últimos versos:
«(…)Eu sou o amor, eu sou o amor, amor,
E o anjo aproxima-se, beija-me,
E é o beijo da morte!
O corpo de moribunda é o meu corpo.
Então leva-o.
Eu sou já uma coisa morta!» [versão: AMC]