terça-feira, 1 de maio de 2007

O Fim da História e o Choque das Civilizações

Vertigem Americana: Uma viagem pela América profunda seguindo os passos de Tocqueville, é um retrato da América dos nossos dias vista pelos olhos de Bernard-Henri Lévy.

BHL, empresário, escritor e filósofo francês, nascido na Argélia em 1948, de ascendência judaica, aluno de Derrida e de Althusser na École Normale Supérieure em Paris, é considerado o pai do movimento dos “Novos Filósofos”, surgido no início dos anos 70 do século passado em Paris, incluindo nomes como André Glucksmann ou Christian Jambet, entre outros, que, pretendendo romper com a tendência marxista (o capitalismo era tido como a origem de todos os males) dos seus antecessores pós-estruturalistas (e.g. Derrida, Foucault, Deleuze) fortemente arreigada na ideologia de base de regimes totalitários e afastando-se das suas nefastas sequelas sobre a realidade humana envolvente, denuncia o afastamento daquelas escolas do pensamento de uma necessária e inevitável abordagem centrada no indivíduo, de uma ligação mais concreta ao cenário internacional e de uma maior visibilidade do pensamento filosófico através dos meios de comunicação social.
A Nova Filosofia, mereceu como é óbvio a forte contestação do establishment do pensamento filosófico francês, entre os principais críticos destaque-se Gilles Deleuze que, em entrevista concedida à revista Minuit de Maio de 1977, chega a afirmar que para ele os Novos Filósofos «nada» representam, acrescentando que crê «que o pensamento deles é nulo.» Lançando de seguida fortes ataques a BHL, em jeito de resposta a ideias por ele professadas: «Ele diz que existe uma ligação profunda entre o Anti-Édipo e “a apologia do podre perante a miséria da decadência” (e é assim que ele o diz), uma ligação profunda entre o Anti-Édipo e os consumidores de drogas. Pelo menos, isto fará rir os drogados. Ele diz, também, que o CERFI [Centre d’études, de recherches et de formation institutionnelles, fundado por Félix Guattari, do qual fez parte Deleuze, e co-autor de O Anti-Édipo] é racista: ora isso é ignóbil.»
Enfim, pretendeu-se aqui dar apenas uma pequena amostra da truculência opinativa, e da instabilidade provocada, de BHL na difícil interacção com o seu meio de explanação intelectual, que, de todo, não é o assunto principal deste texto.

BHL, a convite da revista norte-americana Atlantic Monthly percorreu durante um ano o território americano, 170 anos depois do seu compatriota Alexis de Tocqueville haver imergido na América profunda, por ofício do Governo francês, com o objectivo inicial de estudar o sistema prisional americano. Porém, Tocqueville, na companhia de Beaumont, acabou por ir mais além e desenvolver o fabuloso e celebérrimo tratado Da Democracia na América.

O livro, para além do prefácio de Freitas do Amaral na edição portuguesa, está dividido em três partes fundamentais: a primeira trata das expectativas e dos preparativos para viagem de BHL; a segunda, que ocupa grande parte do livro, dedica-se aos relatos da viagem (dividida em 7 partidas); e a terceira e última, o epílogo, a que o autor dedica uma aprofundada análise filosófica, baseada na experiência, sobre o conceito de se ser americano; sobre a ideologia americana e a sua relação com emergência do terrorismo após o 11 de Setembro de 2001; e uma reflexão sobre a essência da América, sobre os estereótipos do imperialismo, do fundamentalismo e do neoconservadorismo; para além de um post-scriptum sobre o furacão Katrina e das longas fracturas reveladas da sociedade americana, já quando BHL havia concluído a sua viagem e se encontrava a elaborar os remates finais do livro.

América, terra de contrastes (não é novidade). Local onde coabitam numa estranha harmonia o maior dos sonhos, o idílio de uma vida dourada, e o mais negro dos pesadelos, a pobreza e a exclusão (também aqui não resulta nada de novo para os nossos estafados ouvidos europeus). Caldeirão de culturas, de religiões e de raças (idem). A venda livre de armas, a mercantilização da religião e dos seus templos, o endeusamento da iniciativa privada e da privatização dos serviços públicos e das funções do Estado (designadamente da Saúde, da Segurança Social e até de parte do sistema prisional), …
Tudo isto não é novo, porém a beleza da obra resulta das reflexões de BHL que se entrecruzam nos diversos relatos; no seu esforço de se desintoxicar dos apriorismos de um francês cultivado de lugares-comuns antiamericanos; em suma, procura desempenhar o papel de observador neutro e descomplexado para captar a verdadeira essência daquele todo social, sobre a qual, a pedra angular, se constrói aquela babilónia de formas de pensar, de sentir e de agir e que se consubstancia num padrão comportamental social único, por vezes ininteligível para o cidadão europeu.
De Newport a Des Moines, passando por Montana, de Seattle a San Diego, de Las Vegas a Tempe, de Austin (capital do Texas) a Little Rock, de Miami a Pittsburgh, passando por Washington, D. C. e terminando em Cape Cod, ficam as marcas em: a descrição do sistema prisional, onde Guantánamo é uma síntese daquilo que pôde observar no resto do país; as cidades desproporcionalmente grandes para as necessidades da comunidade; o estado de abandono de Detroit (outrora a sede de uma indústria automóvel em expansão) e as cidades fantasma; a incomensurabilidade de Los Angeles (a anti-cidade, sem um centro de referência) que se estende desde a costa do Pacífico por 70 km para Leste e cerca de 80 km para Sul desde o ponto mais a norte; a sua paixão por cidades como Seattle, Savannah, Nova Orleães e Boston, cidades que escolheria para viver se emigrasse para os EUA; os republicanos que votaram Kerry em 2004 e os democratas (e extremistas de esquerda) que votaram Bush; o encantamento pela mente esclarecida de Warren Beatty, por Woody Allen e a sua paixão pelo seu clarinete; uma certa decepção com Kerry e a sua comitiva; a conversa com Norman Mailer; as conspirações sobre o suicídio de Hemingway; os índios republicanos e anti-semitas; a exagerada propensão para a entronização da banalidade em museus (o exemplo picaresco da tábua de queijos como obra de arte em exposição); as comunidades herméticas de velhos reformados onde não é autorizada a permanência a menores de 55 anos, onde apenas se subsiste contando os dias para o fim da vida numa condição quase que pueril (aquilo que BHL designa como o apartheid dourado); as feiras de armamento abertas ao público, onde BHL foi revistado à entrada enquanto casais, tipicamente pertencentes à classe média, saíam com espingardas a tiracolo; a imensa mole de cubanos cristalizados no tempo que ocupam grande parte da cidade de Miami; a forma peculiar de conservação da natureza, que se pode encontrar nos pântanos do Everglades; a história tenebrosa por detrás do icónico Mount Rushmore; a vigilância da fronteira com o México e a política de recrutamento dos guardas fronteiriços; a emergência do criacionismo e a sua influência, por exemplo, na formação do Grand Canyon; os mórmones, os quakers e as seitas apocalípticas.
Enfim, uma multiplicidade de encontros e desencontros com as práticas civilizacionais europeias.

Será que, através desta análise em solo americano, poderemos vislumbrar o fim da História (Hegel ou Marx, ou…)? Ou pelo contrário, ela sobrevive pelo iminente e inevitável choque civilizacional?
Numa interessante análise final, BHL parte de dois paradigmas e aplica-os à situação corrente da maior potência mundial:
Francis Fukuyama vs. Samuel Huntington.
O fim da História por Fukuyama, a era da pós-historia, pela queda do comunismo, pelo esboroamento das ideologias fundadas na dicotomia capitalismo (por oposição) versus comunismo e pela emergência (vitória) da democracia liberal (economia neoliberal) como único sistema sem contraditório porque vazia de ideias sujeitas a discussão, desempenhando a política uma função meramente administrativa.
A refutação desse fim anunciado, onde Huntington professa que finda a guerra das ideologias, ela será de imediato substituída pelo choque de civilizações que forçosamente manterão viva a História, embora esse prognóstico sirva de instrumento teórico, como refere BHL, para a barbárie contra a grande comunidade hispânica (e não só) nos EUA, tal como sucedeu no início do século XX, segundo Huntington: «“a plebe amorfa multicolor” de “eslavo-latinos” e de “judeus do oriente” que vinham corromper “a personalidade política e moral dos Estados Unidos”» havendo-se perdido «o credo britânico que fez a nossa boa e bela nação» (pág. 287).

Por outro lado, são também interessantes as teses da putativa propensão americana para a subjugação imperial dos povos através da sua política externa, que BHL refuta recorrendo à velha noção de império e do autoritarismo imanente que de facto não existe. Ademais, BHL defende que a forma como os sucessivos governos norte-americanos olham para o exterior não assenta num princípio que permita divisar a forte segmentação entre a direita e a esquerda, entre republicanos e democratas. Para isso, e de modo simplista (como ele próprio define) BHL divide o intervencionismo americano no exterior em quatro correntes distintas, partindo da dicotomia intervencionista/isolacionista: jeffersoniana (talvez a única com um pendor marcadamente partidário, a extrema direita republicana e cujo nome decorre do isolacionismo preconizado pelo terceiro presidente americano, Thomas Jefferson, defendida por exemplo por James Baker aquando da intervenção dos EUA na Bósnia, que não vislumbrava algum interesse imediato na participação dos americanos no conflito dos Balcãs), a hamiltoniana (oriunda do Pai Fundador Alexander Hamilton, que preconizava a intervenção no exterior apenas em defesa dos interesses económicos e comerciais dos EUA), a jacksoniana (decorrente do 7.º presidente dos Estados Unidos Andrew Jackson, que defende a intervenção só quando os interesses vitais americanos – de todo o tipo – estiverem em jogo, sendo que a intervenção deveria ser rápida, seguir a forma do “hit and run”) e, finalmente, porventura a mais conhecida, a wilsoniana (decorrente do 28.º presidente norte-americano Woodrow Wilson, apologista do intervencionismo puro e duradouro, política que esteve na génese da decisão de entrada dos EUA em 1916 na 1.ª Guerra Mundial, quando Wilson verificou que seria inútil e uma mera perda de tempo, com consequências nefastas, a tentativa de se estabelecer um acordo de paz entre as partes).
BHL, por fim deixa nas entrelinhas e sobre a forma interrogativa pistas que nos dão a ideia dos EUA como um país laico e de pendor não imperialista, ao contrário dos preconceitos dos seus preclaros concidadãos europeus.
Vertigem Americana é um bom livro (embora entediante a espaços, por exemplo quando o autor parece perder-se em algumas divagações filosóficas), que se segue com interesse pela quase inatingível capacidade enciclopédica ao abarcar o mosaico social multicolor de um país que continua, hoje em dia, a despertar o maior dos fascínios ao cidadão estrangeiro, mesmo naqueles que, de forma categórica, exprobram a sua bandeira, as suas cores, enfim, the american way of life.
E não será essa execração antiamericana uma forma de fascínio?

Classificação: **** (Bom)

Referência bibliográfica:
Bernard-Henri Lévy, Vertigem Americana. Porto: Caderno (Asa), 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 366 pp. (tradução de Carlos Aboim de Brito; obra original: American Vertigo, 2006).



Nota: ler o que já referi aqui e aqui a propósito deste livro e que me escusei a repetir neste texto.

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