
Contudo, há excepções que se abrem por causas que reputo de nobres na minha escala de encantamentos muito pessoal, de mais fácil concretização na Literatura, de alguma dificuldade de acrobata no Cinema – locais de exibição, horários e tempo de permanência no circuito comercial – e de uma quase impossibilidade na Música – concertos em Lisboa ou em locais inacessíveis, pantanosos e babilónicos como os que acolhem os festivais de Verão.
Eis a excepção para a fuga: David.
Nascido há quase 45 anos em Denver, Colorado, Estados Unidos (Agosto de 1962), David Fincher é, de longe, na actualidade, o meu realizador de cinema preferido.
Sem formação académica nas artes e ciências cinematográficas, começou, por realizar anúncios publicitários para marcas destacadas e alguns vídeos musicais. Com apenas 30 anos realizou o terceiro filme da saga Alien – de longe o seu pior, abaixo da versão de Ridley Scott (Alien, o 8.º passageiro, filme de 1979) e da de James Cameron (Aliens, recontro final, filme de 1986), mas imensamente superior à de Jean-Pierre Jeunet.
Segue-se a fabulosa sequência Se7en (1995), O Jogo (1997), Clube de Combate (1999), A Sala de Pânico (2002) e Zodiac (2007), encontrando-se a rodar o mais do que aguardado The Curious Case of Benjamin Button, baseado no conto homónimo do gigante decadentista Francis Scott Fitzgerald – um dos melhores de sempre na sua arte e no top 10 das minhas preferências literárias –, com Brad Pitt e Cate Blanchett nos principais papéis.
Já descrevi em inúmeros textos neste e no meu anterior blogue as sensações experimentadas com cada filme daquele sublime quarteto. Hoje chegou a vez de Zodiac, estreado em Portugal e no mundo inteiro (circuito comercial) no passado dia 17 de Maio.
Fincher, conhecido no meio pela exigência que apõe nos guiões que escolhe para levar à grande tela – lembro-me bem do desgosto que se acometeu de mim quando o seu nome foi apontado para a realização do 3.º filme da série Missão Impossível, que, felizmente, mais tarde viria a recusar –, conseguiu uma vez mais subverter as expectativas que qualquer cinéfilo poderia dispor sobre um filme baseado nos crimes reais ocorridos, nas décadas de 60 e 70 do século passado, em São Francisco, perpetrados por um assassino em série que se dava a conhecer pelo nome de código Zodiac, que por sua vez deriva do expediente de envio de mensagens encriptadas onde aquele relatava os brutais assassinatos. Zodiac não é um filme sobre serial killers, cujo modelo está completamente estafado após as incontáveis réplicas, tão típicas de Hollywood, que se seguiram ao excepcional O Silêncio dos Inocentes de Jonathan Demme – atenção que Se7en também não o foi...
Do parágrafo anterior não se entenda que o derribar das tais expectativas contribuiu para ferir de morte o fascínio que a obra suscita. Bem pelo contrário, a surpresa surge pela engenhosa secundarização dos crimes, mostrando-nos outra realidade que, à boa maneira de Hitchcock, está diante dos nossos olhos, é palpável, tem som, cor e cheiro, mas que se nos vai revelando de forma progressiva e parcimoniosa, como se caminhássemos sob as trevas profundas de uma caverna em direcção à porta para o resplandecente mundo exterior: aquilo que antes era um ténue fio de luz culmina num brilho ofuscante, de íris ainda dilatadas pela surpresa.
Zodiac é um filme sobre a obsessão e sobre a ínfima distância, não percebida, a que aquela se encontra de nós, à ilharga, pronta a atacar pelo choque e pelo medo emanados de um acontecimento brutal. A obsessão é aqui entendida como um ser vivo que se vai alimentando, numa voracidade invisível, de tudo aquilo que rodeia o seu objecto, como uma bomba de neutrões detonada pela nossa acção primária sem a assunção das possíveis consequências, e cuja radiação destrói tudo o que se mexe e que gravita em torno da nossa existência, deixando apenas de pé a efígie do monumento que é a nossa mente.
Zodiac não é um filme de travelings ou de soluções tecnológicas inovadoras como foram os seus predecessores, realizados por Fincher. É, no entanto, um filme cerebral e perturbador pela forma como se escoa o fio da narrativa em planos fixos, gestos, olhares e toda uma coreografia representativa da somatização de um desconcerto espiritual e comportamental. É, também, uma obra cheia de subentendidos, de imagens subliminares e de planos que despertam em nós o sentimento, bem sintetizado pela expressão francesa, de “dejà vu” – o Ricardo, por exemplo, lembra uma delas que também não me escapou enquanto via o filme: o grande crachá do Nixon na secretária do jornalista Paul Avery interpretado, de forma magistral, por Robert Downey, Jr.
Depois há a ligação estabelecida ao filme mudo The Most Dangerous Game (1932) realizado pela dupla Irving Pichel e Ernest B. Schoedsack, baseado na obra homónima do escritor norte-americano Richard Donnell – que se encontra editada em Portugal pela Assírio & Alvim (colecção Beltenebros) sob o título Zaroff (O Jogo mais Perigoso) – este livro conta a história de um psicopata, o Conde Zaroff, que vivendo isolado no seu castelo situado numa ilha, vai recebendo os náufragos que aí vão acostando, entre eles o caçador Bob Rainsford que de súbito se vê envolvido num jogo de contornos macabros criado pelo anfitrião, onde os hóspedes se tornam presas – o jogo mais perigoso. Ora, Zodiac, o homicida, ter-se-á, alegadamente, baseado na obra de Connell, na medida em que se serve dessa tensão psicológica de expectativa de crime iminente para, através dos jogos labirínticos criados para as suas presas preferenciais – os investigadores policiais e os jornalistas –, poder perpetrar os seus crimes. O assassino do zodíaco vive precisamente aí, no intrincado da lei processual penal excessivamente garantista, que rege a própria investigação criminal, e que se propaga a todo um ordenamento jurídico de um Estado de Direito. E daí as diversas alusões ao eterno inspector Harry Callahan, mais conhecido como Dirty Harry, personagem imortalizada no cinema por Clint Eastwood, que por outros meios, chamemos-lhes, eufemisticamente, heterodoxos, alcançava êxito nas suas brutais investigações policiais, tal como sucede no filme epónimo com a perseguição ao homicida de nome Scorpio, que os investigadores e jornalistas do filme de Fincher assistem na data da sua estreia em 1971: [Dirty Harry]: Well, I'm all broken up over that man's rights! [Em resposta ao magistrado do MP que o acusava de brutalidade policial e de desrespeito à lei].
Com Zodiac temos David no seu melhor.
(Embora possa aqui fazer um mea culpa, ao reconhecer a inutilidade do emprego do adjectivo comparativo de superioridade de bom na última frase. Em Fincher não lhe consigo detectar outro valor na escala qualitativa.)
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