segunda-feira, 7 de maio de 2007

Sitiado

Março de 1857, Gustave Flaubert (1821-1880), escritor, epítome do movimento realista francês do século XIX e herdeiro do romantismo de Stendhal (1783-1842), de Chateaubriand (1768-1848), de Balzac (1799-1850) e do romantismo poético de Charles Baudelaire (1821-1867) – embora esta corrente artística se houvesse, desde logo, manifestado com mais acuidade no século anterior e predominantemente nas literaturas inglesa e alemã –, inicia a extensa pesquisa bibliográfica – baseada, no essencial, nas obras do historiador e geógrafo grego Políbio (circa 203-120 a.C.) – para o romance que se seguirá ao escandaloso, para a época, e talvez a sua obra mais famosa a par de Educação Sentimental (1869), Madame Bovary (1857) – publicado pela primeira vez em fascículos em 1856 –, assim como ao encerramento, por absolvição, do processo judicial que lhe foi movido em França, sob a acusação de obscenidade e de atentado à moral e aos bons costumes.
Este será o segundo romance do autor, integrando a inovadora corrente francesa do realismo histórico e que se centrará no Império Cartaginês do século III a.C., após o decurso da I Guerra Púnica (de 264 a 241 a.C.) travada com o expansionista Império Romano pelo domínio das ilhas e das regiões costeiras do Mediterrâneo. A sua escrita termina em Junho de 1862, cinco anos após o seu início, o que demonstra à saciedade o afamado perfeccionismo estético do escritor natural de Ruão, igualável ao do seu mais jovem coetâneo, e seu admirador confesso, Henry James (1843-1916).
Para além do laborioso trabalho de recolha de fontes históricas, em 1858 Flaubert desloca-se, numa longa viagem e em plena fase de escrita do seu romance, às regiões do norte de África, onde outrora se situou a cidade-estado de Cartago – a cerca de 20 km a Leste de Tunes, capital da Tunísia –, o centro nevrálgico do Império Cartaginês.

Salammbô é uma personagem ficcional, filha de Amílcar Barca, general e comandante das tropas cartaginesas e pai de uma das figuras mais marcantes da antiguidade clássica, Aníbal Barca – protagonista da II Guerra Púnica com Roma (218-202 a.C.), nascido na Península Ibérica, local que despoleta o conflito.
Após a oclusão da I Guerra Púnica, os mercenários – os bárbaros – que auxiliaram Cartago contra Roma no conflito – entre os quais se contam os lusitanos, para além dos líbios e dos númidas, entre outros – e regressados da ilhas mediterrânicas onde combateram, retiram-se das muralhas da cidade sob a promessa do Conselho da República, extremamente debilitada, que os seus soldos iriam ser pagos assim que estes encetassem a viagem de regresso às suas terras.
O romance inicia-se com uma monumental orgia, nos jardins de Amílcar – ausente na Sicília – e que assinala o fim das hostilidades:

«Os soldados que este [Amílcar] comandara na Sicília organizavam um grande festim para celebrar o aniversário da batalha de Éryx e, como o dono da casa estava ausente e eram muitos, comiam e bebiam em completa liberdade.» (pág. 11).

É no primeiro capítulo que, no meio da exaustiva descrição da babilónia de povos, de línguas e dos comportamentos bárbaros de tão heterogéneo grupo, começam a surgir os protagonistas da obra que se divide entre a descrição histórica e um romance de fundo, de contornos cómicos e insólitos, entre o guerreiro líbio Mathô e a virgem Salammbô, filha de Amílcar guardada no seu palácio. Narr’Havas o traiçoeiro Príncipe da Numídia, Espêndio o perspicaz e agitador escravo grego de Mathô, Amílcar Barca o sufeta dos mares de Cartago, Hanão o sufeta da terras e herói da I Guerra Púnica, Gisgão o infeliz general cartaginês que se encarregou da promessa dos pagamentos aos mercenários.
A revolta dos mercenários perante o incumprimento de Cartago irá servir de base ao romance até à sua conclusão, assim como o estranho roubo do véu, Zaimph, da deusa Tanit, a Lua e deusa da fecundidade, cuja ausência é entendida como um presságio do enfraquecimento de Cartago, que poderá levar à extinção do império.

Salammbô estende-se por quinze capítulos, relatando ao detalhe as atrocidades das guerras da antiguidade clássica. Segundo alguns críticos e estudiosos de obra de Flaubert, Salammbô é entendida como uma alegoria para as atrocidades que se iam perpetrando em nome do poder absoluto e da glória dos povos e das civilizações em pleno século XIX – não nos podemos esquecer que a queda de Napoleão Bonaparte apenas havia ocorrido em 1814-15, ou seja, poucas décadas antes da publicação do romance, e que no momento eclodia a bárbara Guerra da Secessão americana (1861-1865).
Para além disso, o que mais fascina em Salammbô é a consciencialização da intemporalidade da crueldade imanente ao ser humano que se manifesta, servindo-se de meios que foram evoluindo, pela atrocidade das inumeráveis batalhas, do fratricídio sem fim que Flaubert quis testemunhar vinte séculos após o surgimento da guerra de Cartago contra os mercenários que, poucos anos antes, haviam apoiado a república do norte de África contra os romanos.
Faça-se uma extrapolação das barbaridades relatadas na obra para os dias de hoje e verificaremos que os vícios da humanidade, como a corrupção, a cupidez, a intolerância e a traição, estão presentes, como um espectro que é transversal à obra. Vícios que, de uma forma implacável, acompanharam e irão acompanhar a espécie humana durante séculos, até à sua profetizada auto-extinção, o Dia do Juízo onde os réus serão, porventura, declarados como contumazes, ao arrepio do anunciado na Sagradas Escrituras.

Salammbô é uma obra fascinante, um tratado de História – que na época em que foi publicada provocou uma autêntica febre cartaginesa na França novecentista – e simultaneamente um minucioso mapa psicossocial do comportamento humano perante a diferença entre povos, raças, religiões e culturas.
O romance requer alguma parcimónia e um ritmo pausado de leitura, não só pelos nomes estranhos que pululam ao longo da primeira metade da obra, como pela opção da editora em incluir as notas do tradutor no final da narrativa, como, também, pela delicadeza de alguns pormenores que a sua não leitura, para um leitor zeloso, decerto implicará o recuo de umas páginas para retomar o encadeamento da narrativa, ou, quiçá, poderá obrigar a um torturante retrocesso de um capítulo inteiro.

Uma obra genial e sobretudo intemporal, características que a tornaram um “clássico da Literatura”:
Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Gustave Flaubert, Salammbô. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Março de 2007, 275 pp. (tradução de Pedro Tamen; obra original: Salammbô, 1862)


Notas:

  1. A edição portuguesa da Relógio D’Água inclui no final uma carta enviada por Flaubert ao escritor e crítico francês Sainte-Beuve, como resposta aos três longos artigos publicados por este último no Nouveaux lundis em Dezembro de 1862, extremamente corrosivos e críticos da obra. Inclui uma pequena nota final de tréguas redigida por Sainte-Beuve no dia de Natal desse ano.
  2. Para ler as críticas de Sainte-Beuve, assim como os dois textos encarniçados escritos pelo arqueólogo e conservador do Museu do Louvre Guillaume Froehner e publicados na Revue contemporaine em Dezembro de 1862 e Janeiro de 1863, respectivamente, assim como as respostas de Flaubert, consultar esta página da Web.

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