domingo, 14 de janeiro de 2007

Identidade Arenas

Guarda o teu caderno de apontamentos, meu querido; põe-no de parte, pois não encontrarás nada mais inspirador do que as incessantes machetadas e o incessante regresso da claridade, manhã após manhã.
Esquece as tuas palavras de eleição, meu querido, e também as palavras eloquentes. Não há palavra, por muito nobre que seja, capaz de imprimir mais força ao teu poema do que o grito:
já de pé, filhos da puta!, cada vez que nasce o dia.
Guarda os cadernos, meu querido; arrecada o teu minuciosíssimo acervo de citações e frases decisivas. A poesia, como o destino, nasce da vertiginosa rotação de um êmbolo a quatro tempos, do fastidioso desfile de carroças carregadas de cana-de-açúcar e da voz agreste que te ordena:
mais rápido, mais rápido. A poesia encontra-la tu aqui: na pausa ao meio-dia para beber um trago de água suja. Sim, a poesia mora aqui: entre o turbilhão de moscas que te enxameiam o rosto quando levantas a tampa da retrete.
Não há dúvida de que a prática do açoitamento (
já chega, senhor; já chega, patrão; já chega, chefe) levou à fundação de uma nova escola literária.
Lá onde abunda o medo e medra o estupor, aí acharás a tua vitória; lá onde o medo é próspero (mas haverá lugar sem medo?), aí, exactamente aí brota a caudalosa fonte da qual todos, sem discriminação de cor ou filosofia, poderão beber.


Excerto de “à noite os negros”, de Reinaldo Arenas, O Engenho. Lisboa: Antígona, 1.ª edição, Outubro de 2006, pp. 48-49 (tradução de Carla da Silva Pereira; obra original: El Central, 1981).

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