Austin Gibson Grey é Um Homem Acidental. Personagem principal do romance de 1971 da escritora britânica (de adopção) Iris Murdoch, nasceu em Dublin em 1919 e morreu em Oxford em 1999 vítima da Doença de Alzheimer.
Casada desde 1956 com o escritor e crítico literário John Bailey, Iris Murdoch é ademais conhecida pelas fortes raízes filosóficas da sua formação académica na Universidade de Oxford, baseada sobretudo no existencialismo de Jean-Paul Sartre, cuja marca se faz notar nas suas obras de ficção. Poetisa, dramaturga e ensaísta, foi contudo na literatura de ficção em prosa que se notabilizou. Obras como O Sino (1958), The Black Prince (1973, vencedor do prestigiado James Tait Black Memorial Prize), A Máquina do Amor: Sagrado e Profano (1974, vencedor do Whitbread Book Award), O Mar, O Mar (1978, vencedor do Booker Prize) e O Bom Aprendiz (1985) foram internacionalmente aclamadas como obras-primas da Literatura do século XX.
Este ano (em Janeiro) a excepcional editora lusa Relógio D’Água – cujo trabalho editorial tem permitido a publicação de obras de literatura de outros tempos que jamais haviam sido editadas no mercado português, ou daquelas cuja edição na língua de Camões se encontrava esgotada há décadas – publicou pela primeira vez no nosso país o romance de Iris An Accidental Man (1971) sob o título Um Homem Acidental.
Este romance de Iris Murdoch é, como tantos outros romances da autora, marcado pela matriz filosófica existencialista de Sartre. Fortemente imbuído do intrincado das relações sociais e das influências nefastas que as nossas acções exercem na vida dos outros de forma involuntária, apenas porque somos livres de as praticar, onde imperam a angústia perante a decisão e o absurdo da própria existência.
A obra literária de ficção cria personagens mais ou menos ilustres, mais ou menos encantadores sob o ponto de vista do leitor/receptor, e na maioria das vezes avaliamo-la na sua globalidade, pelo todo que o mestre quis construir ao introduzir determinadas idiossincrasias. Trata-se de um simples jogo de estereótipos que conseguimos identificar nas relações que, como Homo Socialis, estabelecemos no dia-a-dia. Muitas vezes os personagens criados não perduram além da obra, noutras, porém, eles afirmam-se, ultrapassam a circunscrição dos caracteres impressos em papel e parecem ter vida própria fora dele, na nossa cabeça, nas nossas fantasias de leitores que veneram a literatura como forma de entretenimento e de íntimo preenchimento das imposições estéticas.
Para apenas dar um exemplo do que acabei de professar – e suponho que o mesmo deverá ter ocorrido com a maioria das pessoas que leu a obra –, eis o cônsul britânico no México Geoffrey Firmin na obra-prima de Malcolm Lowry, Debaixo do Vulcão. Por muitos anos que distem da última vez em que lemos esse tratado involuntário do existencialismo literário, as atribulações do Cônsul no dia de finados de 1938 permanecem-nos na memória, mais pela amargurada existência que se foi construindo numa série de equívocos que o conduzem à sua aniquilação através do prazer inebriante do álcool que tudo faz esquecer, do que por qualquer predestinação advinda de uma vontade exterior inaudita e que resulta de um colectivo relacional, que ao invés parece girar em torno do seu supremo individualismo, materializado no seu desprendimento pelo mundo, pelo dever, pelo amor da sua Yvonne e pela afeição do seu irmão Hugh – o Mescal e a Tequila são o refúgio, a essência...
Assim é Austin Gibson Grey. Um anti-herói. Um homem que se define a si próprio como acidental. Aquele que pela sua acção aparentemente anódina traz a infelicidade ao mundo e destrói tudo aquilo que o rodeia. Um homem que vive com a culpa dessa destruição e que resignadamente sobrevive com essa consciência. Vive na angústia da separação física da mulher que ama e cuja existência em comum é entendida como um cataclismo por razões aparentemente injustificáveis e não encontradas à luz da razão. A dado passo, num curioso diálogo sobre a Irlanda – terra natal da autora, remota e fortuita na sua consciência, já que viveu em Inglaterra desde os primeiros anos da sua infância –, estabelece-se a analogia entre a terra de São Patrício e o acidental protagonista: «A Irlanda é como o Austin. Bonita para se ver e tem-se pena dela, mas é, de certo modo… horrível.» (pág. 246)
Austin desiste da possibilidade de uma existência feliz, abdica da luta, porém a luta vem ter com ele a cada gesto que, por mais inocência que possa encerrar, arrasa e implica tudo e todos que o rodeiam, mas que, de forma paradoxal e inexplicável, o próprio, o pólo de atracção da tormenta, acaba por sair incólume:
«Austin faz com que qualquer um fique com um ar pálido e assombrado.» (pág. 363)
É em roda deste personagem que se desenrola a trama com mais de uma dúzia de personagens que gravitam em torno dessa contingência existencial que é Austin Gibson Grey, a que não falta um espaventoso carro desportivo, que passa de mão em mão, apelidado de Kierkegaard...
Um Homem Acidental é um puro exercício da mestria das capacidades de narrativa de Iris Murdoch.
A escrita flui num manancial de diálogos que são acompanhados de algumas introspecções, mas sobretudo de cartas e bilhetes que dão uma sequência lógica ao enredo, através da revelação das inquietações mais profundas dos personagens. E depois temos os eventos sociais, onde Murdoch através de frases curtas e aparentemente retiradas do contexto nos transmite de forma magistral a frivolidade da classe média inglesa, numa sociedade que ainda mal acabara de lamber as feridas de uma guerra atroz e que parecia subsistir num auto-estimulado autismo num mundo onde dois pólos opostos se digladiavam no extremo oriente afastando, em definitivo, a barbárie das batalhas fratricidas do martirizado solo europeu.
Um Homem Acidental é um livro de leitura compulsiva, pleno de ironia, com momentos de boa disposição – alguns elevados ao paroxismo do burlesco que nos induzem à manifestação de uma sonora e saudável gargalhada –, e outros que exigem uma reflexão, não à laia de uma enfatuada lição sobre a condição humana, mas sobre os efeitos perversos que as tais contingências resultantes do exercício da nossa inderrogável liberdade individual têm sobre os outros, o inferno.
Classificação: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica
Iris Murdoch, Um Homem Acidental. Lisboa: Relógio D’Água, Janeiro de 2007, 365 pp. (tradução de Maria de Lourdes Guimarães; obra original: An Accidental Man, 1971).
Casada desde 1956 com o escritor e crítico literário John Bailey, Iris Murdoch é ademais conhecida pelas fortes raízes filosóficas da sua formação académica na Universidade de Oxford, baseada sobretudo no existencialismo de Jean-Paul Sartre, cuja marca se faz notar nas suas obras de ficção. Poetisa, dramaturga e ensaísta, foi contudo na literatura de ficção em prosa que se notabilizou. Obras como O Sino (1958), The Black Prince (1973, vencedor do prestigiado James Tait Black Memorial Prize), A Máquina do Amor: Sagrado e Profano (1974, vencedor do Whitbread Book Award), O Mar, O Mar (1978, vencedor do Booker Prize) e O Bom Aprendiz (1985) foram internacionalmente aclamadas como obras-primas da Literatura do século XX.
Este ano (em Janeiro) a excepcional editora lusa Relógio D’Água – cujo trabalho editorial tem permitido a publicação de obras de literatura de outros tempos que jamais haviam sido editadas no mercado português, ou daquelas cuja edição na língua de Camões se encontrava esgotada há décadas – publicou pela primeira vez no nosso país o romance de Iris An Accidental Man (1971) sob o título Um Homem Acidental.
Este romance de Iris Murdoch é, como tantos outros romances da autora, marcado pela matriz filosófica existencialista de Sartre. Fortemente imbuído do intrincado das relações sociais e das influências nefastas que as nossas acções exercem na vida dos outros de forma involuntária, apenas porque somos livres de as praticar, onde imperam a angústia perante a decisão e o absurdo da própria existência.
A obra literária de ficção cria personagens mais ou menos ilustres, mais ou menos encantadores sob o ponto de vista do leitor/receptor, e na maioria das vezes avaliamo-la na sua globalidade, pelo todo que o mestre quis construir ao introduzir determinadas idiossincrasias. Trata-se de um simples jogo de estereótipos que conseguimos identificar nas relações que, como Homo Socialis, estabelecemos no dia-a-dia. Muitas vezes os personagens criados não perduram além da obra, noutras, porém, eles afirmam-se, ultrapassam a circunscrição dos caracteres impressos em papel e parecem ter vida própria fora dele, na nossa cabeça, nas nossas fantasias de leitores que veneram a literatura como forma de entretenimento e de íntimo preenchimento das imposições estéticas.
Para apenas dar um exemplo do que acabei de professar – e suponho que o mesmo deverá ter ocorrido com a maioria das pessoas que leu a obra –, eis o cônsul britânico no México Geoffrey Firmin na obra-prima de Malcolm Lowry, Debaixo do Vulcão. Por muitos anos que distem da última vez em que lemos esse tratado involuntário do existencialismo literário, as atribulações do Cônsul no dia de finados de 1938 permanecem-nos na memória, mais pela amargurada existência que se foi construindo numa série de equívocos que o conduzem à sua aniquilação através do prazer inebriante do álcool que tudo faz esquecer, do que por qualquer predestinação advinda de uma vontade exterior inaudita e que resulta de um colectivo relacional, que ao invés parece girar em torno do seu supremo individualismo, materializado no seu desprendimento pelo mundo, pelo dever, pelo amor da sua Yvonne e pela afeição do seu irmão Hugh – o Mescal e a Tequila são o refúgio, a essência...
Assim é Austin Gibson Grey. Um anti-herói. Um homem que se define a si próprio como acidental. Aquele que pela sua acção aparentemente anódina traz a infelicidade ao mundo e destrói tudo aquilo que o rodeia. Um homem que vive com a culpa dessa destruição e que resignadamente sobrevive com essa consciência. Vive na angústia da separação física da mulher que ama e cuja existência em comum é entendida como um cataclismo por razões aparentemente injustificáveis e não encontradas à luz da razão. A dado passo, num curioso diálogo sobre a Irlanda – terra natal da autora, remota e fortuita na sua consciência, já que viveu em Inglaterra desde os primeiros anos da sua infância –, estabelece-se a analogia entre a terra de São Patrício e o acidental protagonista: «A Irlanda é como o Austin. Bonita para se ver e tem-se pena dela, mas é, de certo modo… horrível.» (pág. 246)
Austin desiste da possibilidade de uma existência feliz, abdica da luta, porém a luta vem ter com ele a cada gesto que, por mais inocência que possa encerrar, arrasa e implica tudo e todos que o rodeiam, mas que, de forma paradoxal e inexplicável, o próprio, o pólo de atracção da tormenta, acaba por sair incólume:
«Austin faz com que qualquer um fique com um ar pálido e assombrado.» (pág. 363)
É em roda deste personagem que se desenrola a trama com mais de uma dúzia de personagens que gravitam em torno dessa contingência existencial que é Austin Gibson Grey, a que não falta um espaventoso carro desportivo, que passa de mão em mão, apelidado de Kierkegaard...
Um Homem Acidental é um puro exercício da mestria das capacidades de narrativa de Iris Murdoch.
A escrita flui num manancial de diálogos que são acompanhados de algumas introspecções, mas sobretudo de cartas e bilhetes que dão uma sequência lógica ao enredo, através da revelação das inquietações mais profundas dos personagens. E depois temos os eventos sociais, onde Murdoch através de frases curtas e aparentemente retiradas do contexto nos transmite de forma magistral a frivolidade da classe média inglesa, numa sociedade que ainda mal acabara de lamber as feridas de uma guerra atroz e que parecia subsistir num auto-estimulado autismo num mundo onde dois pólos opostos se digladiavam no extremo oriente afastando, em definitivo, a barbárie das batalhas fratricidas do martirizado solo europeu.
Um Homem Acidental é um livro de leitura compulsiva, pleno de ironia, com momentos de boa disposição – alguns elevados ao paroxismo do burlesco que nos induzem à manifestação de uma sonora e saudável gargalhada –, e outros que exigem uma reflexão, não à laia de uma enfatuada lição sobre a condição humana, mas sobre os efeitos perversos que as tais contingências resultantes do exercício da nossa inderrogável liberdade individual têm sobre os outros, o inferno.
Classificação: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica
Iris Murdoch, Um Homem Acidental. Lisboa: Relógio D’Água, Janeiro de 2007, 365 pp. (tradução de Maria de Lourdes Guimarães; obra original: An Accidental Man, 1971).
2 comentários:
Li dois livros desta Senhora, ambos geniais: «Henry e Cato» (Cotovia) e «The Philosopher's Pupil» (Penguin). Vou comprar este.
É uma delícia, Henrique. Se bem que pelo tamanho da letra (a rondar os 7 ptos.) te recomende o uso de uma lupa. Pronto, menos árvores abatidas... mas um bom negócios para os oculistas.
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