segunda-feira, 12 de março de 2007

Vidas

A prodigiosa mente humana e as suas constantes fugas ao que outros por nós convencionaram chamar de caminho ou de rumo correctos – ou até de via rápida sem atribulações para o utilizador.
As convenções, o resultado de juízos sobranceiros à suposta pequenez do confessor. De onde vêm? Porque surgem? Serão o resultado de simples acto de entrega, sem interesse e objectivo?
Aí está a sentença para a desfrutares contigo próprio, na solidão dos teus pensamentos, e com os outros que, munidos da soberba postuladora, a formularam. Convenção que resultou de uma presciência que invejo nesses tais – os outros – porque com o pulsar do tempo no seu irritante ritmo síncrono mais certeza tenho da incerteza desse destino que se havia concebido como certo ou, mais grave ainda, como indutor de felicidade.
As convenções levam-nos a um permanente escrutínio da bondade dos nossos actos, quando não são os outros, o inferno, que nos poupam à execução dessa tarefa deveras torturante e, por definição, improfícua – chorar sobre o leite derramado, em vez de procurar a fonte que permita a sua rápida reposição para o estado ou a condição precedentes ao seu derramamento.

Todo esse exame da acção passada carrega o peso das emanações de uma profunda letargia, fomenta a indolência na resposta ao desafio mais premente: viver a vida. Ela não se coaduna com tais rememorações; ela é voraz e pulha o suficiente para nos prostrar a um canto, onde predomina a mais espessa e vazia escuridão, à espera que desse ilusório buraco negro algo emerja e nos ilumine a trajectória que julgáramos perdida; todavia, e esse é o seu lado mais frustrante, a única certeza que dela advém é a lenta e inexorável aproximação do seu fim. Um pessimismo que nos vai corroendo a alma, espalhando os fragmentos da identidade que nos distinguia dos demais.
Resta-nos a ilusão – talvez seja uma manifestação da nossa megalomania – de um vida outrora bem vivida.

«Tudo isto pertence à denominada “linguagem do fantástico”. Há muitas formas de falar nesta língua e quase todas começam quando uma pessoa diz a outra: “Eu desejava…” O que quer que desejem é totalmente irrelevante sempre e quando for algo de impossível: “desejava que o sol nunca mais se pusesse”, “desejava que o dinheiro crescesse nos meus bolsos”, “desejava que a cidade voltasse a ser como era nos velhos tempos”. Fazes uma ideia do que te digo, não é verdade? Questões absurdas e infantis, sem significado nem possibilidade de se converterem em realidade. De um modo geral, as pessoas sustentam a teoria de que por muito má que a situação estivesse ontem, hoje será sempre pior; o que ocorreu há dois dias é melhor que o ocorrido ontem. Quanto mais te remontares ao passado, mais belo e desejável te parece o mundo. A cada manhã despertas forçosamente do sonho para enfrentares algo muito pior que o que nos coube viver no dia anterior; mas ao falar do mundo que existia antes de ires dormir podes enganar-te a ti mesmo e acreditar que o dia de hoje é só uma ilusão, nem mais nem menos real que a recordação de todos os outros dias que guardas no teu interior.»
Paul Auster, In The Country of Last Things [tradução livre: AMC, 2007].

2 comentários:

Anónimo disse...

Pff, e a pontuação...

Anónimo disse...

Que pontuação?