O prémio que consta do título deste texto de facto não existe. Porém, por que não criar um galardão que permitisse notabilizar o que de muito mau se faz na Literatura, à semelhança dos Razzies na 7.ª arte, e que vende como lixo (que, na realidade, é)?
O imaginado prémio T. Harris inspira-se no escritor norte-americano Thomas Harris (n. 1940), autor da obra O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1988), fabulosamente adaptada para o cinema pelo argumentista Ted Tally, com a espantosa realização de Jonathan Demme e as inesquecíveis interpretações de Anthony Hopkins e Jodie Foster.
Antes do filme que o trouxe para as luzes da ribalata, Harris já havia escrito O Dragão Vermelho (The Red Dragon, 1981), adaptado para o cinema em 1986 sob o título Manhunter, com argumento e realização de Michael Mann.
Explorando o filão que a obra-prima de Demme lhe serviu numa bandeja de prata, Harris escreve em 1999 Hannibal, em jeito de sequela do “I do wish we could chat longer, but I’m having an old friend for dinner”, deixado em aberto por Demme. O sucesso era garantido. De tal forma que Dino De Laurentiis tomou a seu cargo a produção do filme (estreado em 2001), contratando uma equipa de luxo encabeçada pelo realizador Ridley Scott e pelo polivalente realizador-argumentista-dramaturgo-escritor David Mamet – que teve a cargo a elaboração do argumento, mais tarde modificado por Steven Zaillian, devido, ao que dizem, à violência gratuita do primeiro. Este último filme não convenceu, apagou-se do estrelato dos galardões anualmente atribuídos, exibindo cenas dignas de um filme de Ed Wood, como por exemplo a charla ridícula do banquete final mantida entre Hopkins, Julianne Moore e Liotta, este último proferindo inanidades ao mesmo tempo que exibia de forma grotesca os seus miolos que iam sendo excisados por um Hannibal faminto.
Em 2002, surge, em tom de remake, O Dragão Vermelho baseado no referido livro homónimo de Harris. Desta feita De Laurentiis contratou um mediano realizador de filmes de acção, Brett Ratner, assegurou Ted Tally para o escrever o guião e apostou num naipe de actores que, para além de Hopkins, contava com nomes grandiosos como Edward Norton, Ralph Fiennes, Emily Watson, Harvey Keitel, Philip Seymour Hoffman e Mary-Louise Parker. O filme vendeu e estava assegurada a fórmula para eventuais sequelas ou prequelas.
E assim foi, ao mesmo tempo que se lançava para o mercado o último livro de Thomas Harris sobre o famoso psiquiatra psicopata, anunciava-se ao mundo a estreia iminente do filme Hannibal Rising, desta vez com argumento a cargo do próprio Thomas Harris e com o quase estreante Peter Webber – nome aclamado por Rapariga com Brinco de Pérola, filme de 2003. (Sobre o filme estamos conversados, ainda não o vi, logo será de todo conveniente dele não falar.)
O livro – Hannibal: A Origem do Mal – retrata os anos da infância e da adolescência do mentalmente torturado Hannibal Lecter.
A história centra-se em terras da Lituânia durante a 2.ª Guerra Mundial e onde se perpetraram muitas das mais bárbaras atrocidades durante o conflito, tanto pelo exército nazi, como pelo exército vermelho que, no final do conflito, veio a ocupar aquele território do Báltico.
Hannibal, herdeiro do Conde Lecter, vive num castelo nas florestas da Lituânia com os seus pais, irmã, preceptor e restante criadagem, quando de um momento para o outro, após fuga forçada do castelo para um longínquo pavilhão de caça, a família é subitamente dizimada por um bombardeiro nazi em perseguição a uma comitiva de soldados pertencentes ao exército soviético. Hannibal vê-se irreparavelmente abandonado, tendo que cuidar da sua querida irmã de apenas três anos de idade, quando é invadido por um grupo de mercenários que assenta arraiais no refúgio, que para sobreviver se entregam a práticas alimentares menos ortodoxas.
A trama é posteriormente ensombrada pelo desaparecimento da pequena Misha e pelas torturantes rememorações do pequeno Hannibal, que após a libertação da Lituânia do jugo nazi irá viver para França na companhia do seu tio paterno e da sua esbelta e atraente mulher japonesa, que, mais tarde, o acompanhará em Paris após a morte trágica do seu marido.
Seguem-se os corriqueiros e mais do que estafados planos de vingança na mente de um psicopata, a roçar a gratuitidade da violência, sem subentendidos ou reticências, revelando, isso sim, uma aturada investigação pelo autor da anatomia do ser humano.
Aquilo que podia ser uma tenebrosa viagem à mente de um criminoso, transforma-se num amontoado de lugares-comuns, de escrita tautológica, sem ritmo, com elipses incompreensíveis e numa linguagem – pese embora algo que eventualmente se poderá ter perdido na tradução – corriqueira, sem arte e a raiar a oralidade mais desprovida de vocabulário.
Depois surgem, carregadas de um lirismo ímpar, frases do género:
«Milko fez aquele pequeno ajuste do coração que fazemos antes de matarmos.» (pág. 219)
Lamento informar o Sr. Harris de que não faço a mínima ideia do que seja um ajuste do coração – a não ser o imaginável numa nunca sofrida intervenção cirúrgica para a introdução de um pacemaker – e muito menos matei alguém nos meus 34 anos de vida; nem penso vir um dia a sentir o tal ajuste devido ao cometimento desse acto.
Outra frase lapidar surge no momento em que Hannibal assiste com a sua tia japonesa, num camarote da Ópera de Paris, à representação de Fausto de Charles Gounod:
«Hannibal, com dezoito anos, torcia por Mefistófeles e desprezava Fausto, mas só estava a prestar mais atenção ao clímax.» (pág. 143)
Vêem como ele é mauzinho! Harris não o referiu mas subentende-se que Hannibal também torcia por Bafo de Onça contra o Rato Mickey, ou pelo implacável Inspector Javert contra o pobre Jean Valjean de Victor Hugo, ou até – naquela mente quem sabe? –, por Mr. Hyde contra o manietado Dr. Jekyll, de Robert Louis Stevenson.
Pronto, quebrei a regra que estatuí ainda no meu anterior blogue: falar de livros maus e classificá-los. Mas uma raiva incontida pelos euros desperdiçados numa obra de uma pobreza confrangedora sobrelevou essa norma.
Classificação: * (Péssimo)
Referência bibliográfica:
Thomas Harris, Hannibal: A Origem do Mal. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 275 pp. (tradução de Maria Dulce Guimarães da Costa; obra original: Hannibal Rising, 2006).
(*) Título inspirado nesta triste notícia escrita pelo Eduardo Pitta.
O imaginado prémio T. Harris inspira-se no escritor norte-americano Thomas Harris (n. 1940), autor da obra O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1988), fabulosamente adaptada para o cinema pelo argumentista Ted Tally, com a espantosa realização de Jonathan Demme e as inesquecíveis interpretações de Anthony Hopkins e Jodie Foster.
Antes do filme que o trouxe para as luzes da ribalata, Harris já havia escrito O Dragão Vermelho (The Red Dragon, 1981), adaptado para o cinema em 1986 sob o título Manhunter, com argumento e realização de Michael Mann.
Explorando o filão que a obra-prima de Demme lhe serviu numa bandeja de prata, Harris escreve em 1999 Hannibal, em jeito de sequela do “I do wish we could chat longer, but I’m having an old friend for dinner”, deixado em aberto por Demme. O sucesso era garantido. De tal forma que Dino De Laurentiis tomou a seu cargo a produção do filme (estreado em 2001), contratando uma equipa de luxo encabeçada pelo realizador Ridley Scott e pelo polivalente realizador-argumentista-dramaturgo-escritor David Mamet – que teve a cargo a elaboração do argumento, mais tarde modificado por Steven Zaillian, devido, ao que dizem, à violência gratuita do primeiro. Este último filme não convenceu, apagou-se do estrelato dos galardões anualmente atribuídos, exibindo cenas dignas de um filme de Ed Wood, como por exemplo a charla ridícula do banquete final mantida entre Hopkins, Julianne Moore e Liotta, este último proferindo inanidades ao mesmo tempo que exibia de forma grotesca os seus miolos que iam sendo excisados por um Hannibal faminto.
Em 2002, surge, em tom de remake, O Dragão Vermelho baseado no referido livro homónimo de Harris. Desta feita De Laurentiis contratou um mediano realizador de filmes de acção, Brett Ratner, assegurou Ted Tally para o escrever o guião e apostou num naipe de actores que, para além de Hopkins, contava com nomes grandiosos como Edward Norton, Ralph Fiennes, Emily Watson, Harvey Keitel, Philip Seymour Hoffman e Mary-Louise Parker. O filme vendeu e estava assegurada a fórmula para eventuais sequelas ou prequelas.
E assim foi, ao mesmo tempo que se lançava para o mercado o último livro de Thomas Harris sobre o famoso psiquiatra psicopata, anunciava-se ao mundo a estreia iminente do filme Hannibal Rising, desta vez com argumento a cargo do próprio Thomas Harris e com o quase estreante Peter Webber – nome aclamado por Rapariga com Brinco de Pérola, filme de 2003. (Sobre o filme estamos conversados, ainda não o vi, logo será de todo conveniente dele não falar.)
O livro – Hannibal: A Origem do Mal – retrata os anos da infância e da adolescência do mentalmente torturado Hannibal Lecter.
A história centra-se em terras da Lituânia durante a 2.ª Guerra Mundial e onde se perpetraram muitas das mais bárbaras atrocidades durante o conflito, tanto pelo exército nazi, como pelo exército vermelho que, no final do conflito, veio a ocupar aquele território do Báltico.
Hannibal, herdeiro do Conde Lecter, vive num castelo nas florestas da Lituânia com os seus pais, irmã, preceptor e restante criadagem, quando de um momento para o outro, após fuga forçada do castelo para um longínquo pavilhão de caça, a família é subitamente dizimada por um bombardeiro nazi em perseguição a uma comitiva de soldados pertencentes ao exército soviético. Hannibal vê-se irreparavelmente abandonado, tendo que cuidar da sua querida irmã de apenas três anos de idade, quando é invadido por um grupo de mercenários que assenta arraiais no refúgio, que para sobreviver se entregam a práticas alimentares menos ortodoxas.
A trama é posteriormente ensombrada pelo desaparecimento da pequena Misha e pelas torturantes rememorações do pequeno Hannibal, que após a libertação da Lituânia do jugo nazi irá viver para França na companhia do seu tio paterno e da sua esbelta e atraente mulher japonesa, que, mais tarde, o acompanhará em Paris após a morte trágica do seu marido.
Seguem-se os corriqueiros e mais do que estafados planos de vingança na mente de um psicopata, a roçar a gratuitidade da violência, sem subentendidos ou reticências, revelando, isso sim, uma aturada investigação pelo autor da anatomia do ser humano.
Aquilo que podia ser uma tenebrosa viagem à mente de um criminoso, transforma-se num amontoado de lugares-comuns, de escrita tautológica, sem ritmo, com elipses incompreensíveis e numa linguagem – pese embora algo que eventualmente se poderá ter perdido na tradução – corriqueira, sem arte e a raiar a oralidade mais desprovida de vocabulário.
Depois surgem, carregadas de um lirismo ímpar, frases do género:
«Milko fez aquele pequeno ajuste do coração que fazemos antes de matarmos.» (pág. 219)
Lamento informar o Sr. Harris de que não faço a mínima ideia do que seja um ajuste do coração – a não ser o imaginável numa nunca sofrida intervenção cirúrgica para a introdução de um pacemaker – e muito menos matei alguém nos meus 34 anos de vida; nem penso vir um dia a sentir o tal ajuste devido ao cometimento desse acto.
Outra frase lapidar surge no momento em que Hannibal assiste com a sua tia japonesa, num camarote da Ópera de Paris, à representação de Fausto de Charles Gounod:
«Hannibal, com dezoito anos, torcia por Mefistófeles e desprezava Fausto, mas só estava a prestar mais atenção ao clímax.» (pág. 143)
Vêem como ele é mauzinho! Harris não o referiu mas subentende-se que Hannibal também torcia por Bafo de Onça contra o Rato Mickey, ou pelo implacável Inspector Javert contra o pobre Jean Valjean de Victor Hugo, ou até – naquela mente quem sabe? –, por Mr. Hyde contra o manietado Dr. Jekyll, de Robert Louis Stevenson.
Pronto, quebrei a regra que estatuí ainda no meu anterior blogue: falar de livros maus e classificá-los. Mas uma raiva incontida pelos euros desperdiçados numa obra de uma pobreza confrangedora sobrelevou essa norma.
Classificação: * (Péssimo)
Referência bibliográfica:
Thomas Harris, Hannibal: A Origem do Mal. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 275 pp. (tradução de Maria Dulce Guimarães da Costa; obra original: Hannibal Rising, 2006).
(*) Título inspirado nesta triste notícia escrita pelo Eduardo Pitta.
3 comentários:
andré:
aqui vai um conselho amigo: não gastes 5.20 euros no filme. é preferível queimá-los ou dá-los para caridade (não por esta ordem).
o filme é das piores coisas que vi nos últimos 5 anos, e já vi muito lixo.
não sei como peter webber, depois de fazer um filme que eu considero magnífico, muito devido à fotografia do nosso eduardinho, consegue fazer uma coisa assim. mas se o livro é tão mau como tu dizes ser, nem cristo fazia o milagre.
abraço
Não vou comentar este produto do Thomas Harris que não tenciono ler. É a primeira vez que visito este seu cantinho e tropecei logo na citação do Schikaneder (também o primeiro Papageno) e na sua opinião sobre o significado da data de 5 de Dezembro de 1791.
Não posso concordar mais, que para mim Mozart nem é uma paixão: é uma religião.
Durante anos massacrei o meu melhor amigo a repetir-lhe que só a obra dele nesse último ano de vida faria a glória de qualquer compositor... Um dia ele apareceu-me com um livro fascinante, que devorei em duas noites e que, se não o conhece, vai pô-lo doido: 1791 - Mozart's Last Year, H. C. Robbins Landon.
Não resisto a transcrever, para lhe aguçar o apetite, as palavras finais do capítulo sobre o fim: "It has taken perhaps two hundred years to realize fully and in all its aspects what this loss has meant to music - and to humanity. Haydn said: 'Posterity will not see such a talent again in 100 years!' Posterity has not seen it in two hundred."
Agora vou ler umas coisas deste seu cantinho.
Manuel,
Depois do livro dificilmente verei o filme. E se tu me dizes que é assim tão bom...
Abraço
Teresa,
Obrigado pelas palavras. Na realidade, a epígrafe deste blogue baseou-se no livro de Robbins Landon. Sou um apaixonado pela vida e obra daquele pequeno grande génio.
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