segunda-feira, 5 de março de 2007

Contemporaneidades

Multiculturalismo e globalização. Choque de culturas e dominação. Pobreza e poderio económico. A arte e a cultura contemporâneas veiculam até à exaustão aqueles chavões. Para onde caminhamos? Caminhará este mundo sobrelotado, de forma inexorável, para a sua autodestruição? Que remédios aplicar para combater o actual estado de insensibilidade perante a miséria, a crueldade e a exploração humanas? Será um sinal dos tempos ou a aqueles atributos da condição humana sempre prevaleceram na História da humanidade? Estaremos mais cientes agora desses defeitos, à medida que progridem a divulgação da informação, a ciência e a tecnologia? Ou a única diferença entre a actualidade e os tempos de outrora radica na possibilidade das vozes de uma ínfima minoria poderem ser ouvidas, já que nesses tempos idos eram silenciadas pela inacessibilidade aos meios de comunicação?
Atrevo-me a dizer, sob pena de ser crucificado pela ínfima comunidade de leitores que se dá ao trabalho de ler os meus textos, que a arte não dá respostas, limita-se a constatar e a anunciar ao mundo o estado a que as coisas chegaram numa óptica perfeitamente subjectiva ou até intimista – não significando, porém, que seja desinteressada –, havendo quem divague sobre a sua aparente inutilidade, levando a que haja quem nela vislumbre uma profunda carência de capacidade transformadora da humanidade.
Nada de mais errado. Essa é a habitual e típica deturpação praticada pelo filisteu, a negação do necessário poder interpretativo, do símbolo, do cariz mediato da obra de arte. Ela deixa uma porta aberta para a descoberta do mundo sob determinada perspectiva que até ao seu surgimento desconhecíamos, e que só se materializou dada a sua capacidade única de estimuladora da consciência ou da interiorização de um problema que em silêncio pairava sobre as nossas cabeças sem se anunciar ou manifestar.
Em suma, uma das funções da arte é a de veicular um ou vários estados de alma, daí a sua inevitável característica de ostentação, não há artista que esconda o produto da sua criatividade quando pensa que esse objecto encerra uma mensagem – e como toda a mensagem, carece de um receptor – que abale o âmago das nossas convicções e da nossa ufana certeza de superioridade cultural.

A conversa já vai longa, e o que aqui se pretende é falar sobre o último livro vencedor do Booker Prize, atribuído em 2006, intitulado A Herança do Vazio, da autora indiana, nascida em 1971, Kiran Desai:
Já na segunda metade da obra, teorizava-se sobre “Crime e Castigo” de Fiodor Dostoievski (conversa entre três mulheres, uma hindu – a bibliotecária, uma cristã ocidentalizada – Noni – e a outra uma adolescente indiana nascida em solo russo e cristã de educação – a protagonista, Sai):
«
– Fiquei um pouco assombrada com a escrita, e, em parte, confusa – declarou Noni – com estas ideias cristãs da confissão e do perdão; colocam o fardo do crime as costas da vítima! Se nada pode reparar a má acção, porque há-de o pecado ser invalidado?
De facto, todo o sistema parecia favorecer os criminosos, em detrimento dos justos. Podia-se ter um mau comportamento, mas mostrando-se arrependimento poder-se-ia desfrutar de uma diversão adicional e ser reintegrado no mesmo cargo que a pessoa que nada tinha feito e que, agora, tinha de sofrer o crime e a dificuldade de perdoar, sem haver nenhum aspecto positivo em toda esta situação. Então, evidentemente, as pessoas sentiam-se mais livres do que nunca para pecar, estando cientes de tal rede de segurança: lamento, lamento, oh, lamento tanto, tanto.
Como delicados pássaros a voarem, podia-se libertar tais palavras.
A bibliotecária, que era cunhada da médica que todos consultavam em Kalimpong, retorquiu:
– Nós, os hindus, temos um sistema melhor. Cada um tem o que merece e não pode escapar as suas acções. E, pelo menos, os nossos deuses parecem deuses, não é? Como o Rajá Rani. Não como aquele Buda ou Jesus… tipos pedintes.
Noni:
– Mas nós também nos escapámos! Não nesta vida, dizemos nós, mas noutras, talvez…
Sai acrescentou:
– Piores são aqueles que julgam que os pobres devem morrer a fome, pois são as suas próprias más acções em vidas passadas que estão a causar-lhes problemas…
A verdade era que se ficava de mãos vazias. Não havia sistema que atenuasse a injustiça das coisas; a justiça não tinha competência; podia deter o ladrão de galinhas, mas grandes crimes evasivos teriam de ser ignorados, pois, se fossem identificados e apanhados nas malhas da lei, fariam desmoronar toda a estrutura da pretensa civilização. Por crimes que ocorriam nas monstruosas relações entre nações, por crimes que ocorriam naqueles espaços íntimos entre duas pessoas, sem qualquer testemunha, por estes crimes, os culpados nunca pagariam. Não havia religião nem governo que mitigasse o inferno.
» (pp. 258-259)

À primeira vista, Desai escreveu uma obra à laia de manifesto, típica de algum messianismo que se costuma apontar aos autores da nova vaga da literatura que despontaram na confirmação da era da globalização e do multiculturalismo.
A tentação é grande, vivemos tempos de incerteza e de medo, de angústia perante um futuro que nem os mais afinados oráculos ousam em confirmar, sendo que se unem na verdade abstracta da inevitável catástrofe.
Porém, A Herança do Vazio não é nada mais que um relato de como se manifesta a inquietude do ser humano nos tempos que correm, não tendo pretensões – pelo menos que haja vislumbrado na sua leitura – a apontar o rumo certo, em que a autora se arroga ao desempenho de um papel ou à descoberta de uma fórmula mágica que busque a redenção da humanidade. É antes a saga de pessoas e das suas famílias, de ricos e pobres, de instruídos e de iletrados, do choque de culturas entre o ocidente e o oriente, da sensação de desterro e da precariedade dos valores e das crenças que supostamente se haviam tornado definitivos, donde deriva uma batalha surda na defesa de algo que convictamente já se sabe que se perdeu: um juiz que vive o ocaso da sua vida na triste certeza da inutilidade da sua existência construída sobre uma mentira piedosa que se avolumou, num efeito de bola de neve, com o passar dos anos; uma jovem indiana, neta do juiz, que vive o confronto entre a cultura do seu país e os valores ocidentais que lhe foram sendo incutidos; um jovem nepalês que se vê a braços com o mesmo dilema, todavia de forma invertida, de origens humildes e em contacto com a instrução e os valores ocidentais no momento em que dá explicações à adolescente; um imigrante indiano ilegal nos Estados Unidos que criara uma aura de vencedor na sua terra pela profissão que exerce na terra de todos os sonhos e que é o orgulho do pai, cozinheiro, que vive a sua vida nessa falsa certeza de um futuro promissor; duas velhas irmãs britânicas que teimam em viver sob os preceitos da tradição colonial e da fleuma da terra de Sua Majestade; um padre cristão benemérito que se refugiou na beleza espectral dos Himalaias e nas tertúlias alcoólicas com um homem ocidental que aí se refugiou das sentenças do seu mundo. É esse amontoado de retalhos que juntos fazem uma manta cujo destino parece entregue à simples inutilidade, ao tremendo vazio de que fala o título.
A escrita flui nas cerca de 420 páginas que compõem o livro. Contudo, quer-me parecer – e quem sou eu para aferir esses itens – que aqui e ali podemos encontrar um estilo de narrativa saído directamente de um curso de escrita criativa, que parece não colar e até, a dados momentos da intriga, distrair e com isso prejudicar o fio condutor do romance. Em consequência disso:

Classificação: **** (Bom)

Referência bibliográfica:
Kiran Desai, A Herança do Vazio. Porto: Porto Editora, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 414 pp. (tradução de Vera Falcão Martins; obra original: The Inheritance of Loss, 2006).

2 comentários:

Anónimo disse...

Bom post! Só queria cravar um pequeno prego na sua cruxificação :)
a arte, de facto, não dá respostas e afirma (denuncia) o estado a que as coisas chegaram, mas (e sem defender que é inútil) perde muita da sua capacidade transformadora porque se afastou demasiado das pessoas. Cada vez mais a arte é uam coisa de elites. Não confundir com o seu consumo, esse massificou-se, mas o "ler" a obra de arte é cada vez mais para especialistas. Até no caso da literatura, em que há cada vez mais iletrados: sabem ler, mas não entendem a "mensagem"...

Anónimo disse...

À laia de Leopold von Sacher-Masoch aceito o prego com muito gosto. É bem verdade o que dizes, meu caro Eduardo.