António Lobo Antunes, aquele homem atormentado pela sua Memória de Elefante – fabuloso romance de estreia – cuja escrita nos transmite um invulgar e inigualável Conhecimento do Inferno, advindo das suas deambulações pelos Cus de Judas que a pátria, no sua ufana querença colonial, teimou em sustentar, acabou de ser designado como vencedor do Prémio Camões de 2007, juntando-se assim a Torga (1989), Jorge Amado (1994), Agustina (2004), ao seu amigo Saramago (1995) – que deve estar radiante –, Vergílio Ferreira (1992), Maria Velho da Costa (2002), Eugénio de Andrade (2001), Rubem Fonseca (2003), Eduardo Lourenço (1996) e a Sophia (1999).
Parabéns ao meu mais estimado escritor vivo português, apesar das exasperantes derivações babilónicas da última temporada.
«Procurou às cegas a garganta de Paul Simon no porta-luvas e introduziu-a na ranhura de caixa de esmolas do leitor de cassetes no intuito de escutar, a caminho de Lisboa, o apelo hesitante e terno, delicado e ferido, de uma voz tão igual à que se lhe enrolava nas tripas que o assaltava por vezes a sensação esquisita de que cada uma das palavras do cantor fora arrancada, sílaba a sílaba, do mais secreto de si mesmo, e o envergonhava que aquele homem lhe mostrasse em público, despudoradamente, a intimidade da angústia que tentava transformar, em vão, na lucidez sem amargura que fazia nele, nos seus melhores momentos, as vezes da alegria. Um roçar de violinos, leve como um espanador, trepou-lhe das pernas para o peito como a maré veste, no rio, o lodo castanho da muralha numa poderosa inspiração de água:
[Letra: Paul Simon – Still Crazy After All These Years]
«Sou parecido com este tipo pequenino e feio (pensou) e espanta-me não encontrar sobre o umbigo, quando o coço, uma pauta de cordas de guitarra, espanta-me que a minha saliva, a minha urina e o meu esperma não saibam à espuma de cerveja morna dos bares dos negros de Harlem que escorrega para dentro da garganta num lamento de blues, espanta-me este cenário de cartão para férias inventadas, este Algarve excessivamente claro que afasta os loucos e os espectros com o néon do sol, reduzindo a penumbra a uma vaga geometria de linhas escuras acumuladas nos ângulos dos quartos. Como em Lisboa, verificou a palpar uma espinha infectada no pescoço, a única cidade do mundo onde a noite não existe: existem manhãs, tardes, crepúsculos, auroras, as nuvens translúcidas, alaranjadas, roxas, do poente, que se afilam e estiram como os troncos no orgasmo num júbilo elástico e tranquilo, existe o revelador brutal da madrugada que faz surgir nos nossos rostos nos espelhos os contornos dos velhos que seremos, mas a noite não existe: os turistas, perplexos, fotografam estátuas idênticas a generais de chocolate, perdem-se, de mapa em riste, num labirinto de travessas fumegantes como intestinos, invadem as pequenas pastelarias suburbanas onde cavalheiros calvos bebem chás de limão defronte dos problemas de damas do jornal, e acabam por regressar, extenuados, aos hotéis, para tentarem dormir na claridade ofuscante de um meio-dia perpétuo.»
António Lobo Antunes, Conhecimento do Inferno. Lisboa: Dom Quixote, 14.ª edição (1.ª edição ne varietur), Novembro de 2004, pp. 20-22.
Parabéns ao meu mais estimado escritor vivo português, apesar das exasperantes derivações babilónicas da última temporada.
«Procurou às cegas a garganta de Paul Simon no porta-luvas e introduziu-a na ranhura de caixa de esmolas do leitor de cassetes no intuito de escutar, a caminho de Lisboa, o apelo hesitante e terno, delicado e ferido, de uma voz tão igual à que se lhe enrolava nas tripas que o assaltava por vezes a sensação esquisita de que cada uma das palavras do cantor fora arrancada, sílaba a sílaba, do mais secreto de si mesmo, e o envergonhava que aquele homem lhe mostrasse em público, despudoradamente, a intimidade da angústia que tentava transformar, em vão, na lucidez sem amargura que fazia nele, nos seus melhores momentos, as vezes da alegria. Um roçar de violinos, leve como um espanador, trepou-lhe das pernas para o peito como a maré veste, no rio, o lodo castanho da muralha numa poderosa inspiração de água:
[Letra: Paul Simon – Still Crazy After All These Years]
«Sou parecido com este tipo pequenino e feio (pensou) e espanta-me não encontrar sobre o umbigo, quando o coço, uma pauta de cordas de guitarra, espanta-me que a minha saliva, a minha urina e o meu esperma não saibam à espuma de cerveja morna dos bares dos negros de Harlem que escorrega para dentro da garganta num lamento de blues, espanta-me este cenário de cartão para férias inventadas, este Algarve excessivamente claro que afasta os loucos e os espectros com o néon do sol, reduzindo a penumbra a uma vaga geometria de linhas escuras acumuladas nos ângulos dos quartos. Como em Lisboa, verificou a palpar uma espinha infectada no pescoço, a única cidade do mundo onde a noite não existe: existem manhãs, tardes, crepúsculos, auroras, as nuvens translúcidas, alaranjadas, roxas, do poente, que se afilam e estiram como os troncos no orgasmo num júbilo elástico e tranquilo, existe o revelador brutal da madrugada que faz surgir nos nossos rostos nos espelhos os contornos dos velhos que seremos, mas a noite não existe: os turistas, perplexos, fotografam estátuas idênticas a generais de chocolate, perdem-se, de mapa em riste, num labirinto de travessas fumegantes como intestinos, invadem as pequenas pastelarias suburbanas onde cavalheiros calvos bebem chás de limão defronte dos problemas de damas do jornal, e acabam por regressar, extenuados, aos hotéis, para tentarem dormir na claridade ofuscante de um meio-dia perpétuo.»
António Lobo Antunes, Conhecimento do Inferno. Lisboa: Dom Quixote, 14.ª edição (1.ª edição ne varietur), Novembro de 2004, pp. 20-22.
3 comentários:
ai, este bocado de ALA a dar-me saudades dessa escrita que um dia se me revelou (foi com a Memória de Elefante, ainda na adolescência) e me prendeu durante muitas páginas e livros a fio. saudades porque houve um dia, já não me lembro qual, em que de certo modo me indisponibilizei para essa escrita, como que uma náusea de tristeza a fechar-me por dentro. e nunca mais o li.
mas sei que um dia voltarei. e se calhar vai ser já.
talvez a leitura de lobo antunes, porventura como acontece com a escrita, se leia assim, cheia de interrupções e recomeços. um abraço.
Mónica,
Há uns dias discutia com a minha sogra (uma leitora voraz da Literatura portuguesa) o grau de inextricabilidade que atingiu a escrita de ALA. É uma pena para quem o conheceu através das primeiras obras (como é o meu caso).
António,
É de facto nessa esperança que vivo. :)
Um abraço
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