«Passaram-se já dezoito anos e, mesmo assim, consigo relembrar ainda cada um dos pormenores desse dia no prado. As montanhas, lavadas da poeira do Verão durante dias de uma chuva suave, ostentavam um verde carregado e brilhante. A brisa do Outono fazia baloiçar as frondes brancas das ervas altas. A comprida faixa de uma nuvem pairava ao longo de uma cúpula de intenso azul. Uma lufada de vento varreu o prado e agitou o cabelo dela até se esgueirar para o bosque, fazendo as ramagens movimentarem-se e trazendo os ecos de latidos ao longe: um som vago que parecia provir do limiar de outro mundo. Não ouvimos nenhum outro som. Não nos deparámos com mais ninguém. Vimos apenas dois cintilantes cardeais esvoaçarem sobressaltados do centro do prado e precipitarem-se para dentro do bosque. Enquanto deambulávamos, a Naoko falava-me de nascentes.»Haruki Murakami, Norwegian Wood, pág. 10. [Porto: Civilização, 3.ª edição, Junho de 2005, 350 pp; tradução de Alberto Gomes; obra original: Noruwei no mori, 1987.]
Rememoração do protagonista Toru Watanabe, com 37 anos, quando aterrou num dia frio e chuvoso de Novembro no aeroporto de Hamburgo. No meio da tensão e do bulício pré-anunciado de um aeroporto europeu, os altifalantes soltam uma versão instrumental da famosa música dos Beatles “Norwegian Wood” e Watanabe sentia «o cheiro da erva, sentia o vento no rosto, ouvia os gritos das aves. Outono de 1969, e em breve teria vinte anos.» E a história retrocede ao tempo em que fervilhou o idealismo de uma geração.
Dou por mim no vislumbre de luta titânica que se desenrola no meu interior: e desisto, como é difícil vencer o actual preconceito que, embora, por definição, não necessite de causas ou origens, foi o resultado de uma experiência de leitura que se foi tornando penosa.
Há uns anos quando a Civilização e logo de seguida a Casa das Letras apresentaram ao público português um ou dois exemplares da obra, na altura já extensa na sua língua original, do escritor nipónico Haruki Murakami (n. 1949), ouviu-se um coro quase unânime de panegíricos sobre uma espécie de renascimento do realismo mágico, embora com um vívido traço oriental, marcadamente mais místico e apaziguador. Murakami era novidade, uma descoberta no mundo ocidental das letras e na altura, pouca gente, mesmo quase ninguém, conhecia o ostracismo a que Murakami já havia sido votado no seu país de origem pelos seus intelectuais e prodígios culturais mais respeitados – rotulado como um escritor de massas, ligeiro, despojado de fontes literárias nipónicas, e talvez tenha sido essa a mola impulsionadora que o levou a abandonar o Japão e a fixar-se na Universidade de Princeton nos Estados Unidos, embora tenha regressado em definitivo ao Japão após o choque provocado pelo devastador terramoto de Kobe e pelos ataques com gás sarin no metro de Tóquio; corria o ano de 1995.
Murakami já publicou doze romances, três colectâneas de contos, um livro de memórias, e um conjunto razoável de ensaios, crónicas, artigos sobre literatura, música e desporto. Porém, fartei-me da sua escrita e do seu misticismo. Não sei se por um processo de acumulação de repetições com protagonistas diferentes, com toques mais ou menos crípticos de sexualidade juvenil, música pop, androginia, gatos, fenómenos espúrios de uma violência inusitada entre a imagética, transversal e quase bíblica, de verdes prados e águas refrescantes. Li os primeiros cinco livros à medida que estes iam sendo publicados em Portugal; parei, exaurido pela sensação, arquetípica de um pesadelo, de ter lido sempre o mesmo livro; mais tarde, não resisti, tentei travar essa espécie de desdém que se apoderou da minha cabeça sentenciosa, li After Dark – Os Passageiros da Noite (Afuta Daku, 2004) e, num ápice, arrependi-me com a quebra do pousio para desenjoo – tenho pena, deslumbrei-me e diverti-me bastante com os primeiros escritos do autor nipónico.
Todavia, a despeito do meu comportamento errático, há certezas que ficaram. Continuo teimosamente a eleger Norwegian Wood como a sua obra mais brilhante. E foi precisamente essa obra que o franco-vietnamita Tran Anh Hung elegeu para realizar a sua 5.ª longa-metragem e com esse acto abrir o seu leque poliglota ao idioma do país do sol nascente.
Exibido em Veneza e Toronto nos respectivos festivais de cinema há cerca de um mês, o filme teve críticas favoráveis, embora não efusivas, e entretanto desapareceu no lado ocidental do planeta.
Tran Anh Hung dirigiu o filme com base no seu argumento adaptado do romance de Murakami, despojando-o de algumas adiposidades, recentrando a narrativa no triângulo amoroso impulsionado pelo torturante suicídio de Kizuki (o melhor amigo de Watanabe). Houve quem lhe apontasse o processo de poda a que o romance foi sujeito como o ponto crucial para um filme menos conseguido – até consigo divisar este tipo de críticos, os literalistas, aqueles que não distinguem um livro de uma bobine de celulóide, e nem preciso de trazer à colação a famosa tirada pastoril de Hitchcock. Contudo, para quem tem acompanhado a carreira do vietnamita poderia esperar tudo, menos um argumento denso e rebuscado, que prejudicasse a sua distintiva imagética, como aqui referi.
Gostaria de o ver, até porque lendo a crítica de Valentina D’Amico para o Movieplayer.it identifico tudo aquilo que me leva a admirar Tran Anh Hung – a imagem, os sons, a música (neste caso não a cargo dos Radiohead, mas de um dos seus membros, o fantástico Jonny Greenwood), que alguns menosprezam colando-o ao videoclipe –, mas suponho que o minúsculo e oligárquico circuito comercial português não correrá esse risco, tal como aconteceu com os três últimos filmes de Tran.
Termino como Valentina no seu artigo, o despertar doloroso de Toru Watanabe e o seis últimos versos da canção dos meus nada estimados Beatles:
«And when I awoke / I was alone; / this bird had flown. / So I lit a fire, / isn’t it good / Norwegian wood.»
Dou por mim no vislumbre de luta titânica que se desenrola no meu interior: e desisto, como é difícil vencer o actual preconceito que, embora, por definição, não necessite de causas ou origens, foi o resultado de uma experiência de leitura que se foi tornando penosa.
Há uns anos quando a Civilização e logo de seguida a Casa das Letras apresentaram ao público português um ou dois exemplares da obra, na altura já extensa na sua língua original, do escritor nipónico Haruki Murakami (n. 1949), ouviu-se um coro quase unânime de panegíricos sobre uma espécie de renascimento do realismo mágico, embora com um vívido traço oriental, marcadamente mais místico e apaziguador. Murakami era novidade, uma descoberta no mundo ocidental das letras e na altura, pouca gente, mesmo quase ninguém, conhecia o ostracismo a que Murakami já havia sido votado no seu país de origem pelos seus intelectuais e prodígios culturais mais respeitados – rotulado como um escritor de massas, ligeiro, despojado de fontes literárias nipónicas, e talvez tenha sido essa a mola impulsionadora que o levou a abandonar o Japão e a fixar-se na Universidade de Princeton nos Estados Unidos, embora tenha regressado em definitivo ao Japão após o choque provocado pelo devastador terramoto de Kobe e pelos ataques com gás sarin no metro de Tóquio; corria o ano de 1995.
Murakami já publicou doze romances, três colectâneas de contos, um livro de memórias, e um conjunto razoável de ensaios, crónicas, artigos sobre literatura, música e desporto. Porém, fartei-me da sua escrita e do seu misticismo. Não sei se por um processo de acumulação de repetições com protagonistas diferentes, com toques mais ou menos crípticos de sexualidade juvenil, música pop, androginia, gatos, fenómenos espúrios de uma violência inusitada entre a imagética, transversal e quase bíblica, de verdes prados e águas refrescantes. Li os primeiros cinco livros à medida que estes iam sendo publicados em Portugal; parei, exaurido pela sensação, arquetípica de um pesadelo, de ter lido sempre o mesmo livro; mais tarde, não resisti, tentei travar essa espécie de desdém que se apoderou da minha cabeça sentenciosa, li After Dark – Os Passageiros da Noite (Afuta Daku, 2004) e, num ápice, arrependi-me com a quebra do pousio para desenjoo – tenho pena, deslumbrei-me e diverti-me bastante com os primeiros escritos do autor nipónico.
Todavia, a despeito do meu comportamento errático, há certezas que ficaram. Continuo teimosamente a eleger Norwegian Wood como a sua obra mais brilhante. E foi precisamente essa obra que o franco-vietnamita Tran Anh Hung elegeu para realizar a sua 5.ª longa-metragem e com esse acto abrir o seu leque poliglota ao idioma do país do sol nascente.
Exibido em Veneza e Toronto nos respectivos festivais de cinema há cerca de um mês, o filme teve críticas favoráveis, embora não efusivas, e entretanto desapareceu no lado ocidental do planeta.
Tran Anh Hung dirigiu o filme com base no seu argumento adaptado do romance de Murakami, despojando-o de algumas adiposidades, recentrando a narrativa no triângulo amoroso impulsionado pelo torturante suicídio de Kizuki (o melhor amigo de Watanabe). Houve quem lhe apontasse o processo de poda a que o romance foi sujeito como o ponto crucial para um filme menos conseguido – até consigo divisar este tipo de críticos, os literalistas, aqueles que não distinguem um livro de uma bobine de celulóide, e nem preciso de trazer à colação a famosa tirada pastoril de Hitchcock. Contudo, para quem tem acompanhado a carreira do vietnamita poderia esperar tudo, menos um argumento denso e rebuscado, que prejudicasse a sua distintiva imagética, como aqui referi.
Gostaria de o ver, até porque lendo a crítica de Valentina D’Amico para o Movieplayer.it identifico tudo aquilo que me leva a admirar Tran Anh Hung – a imagem, os sons, a música (neste caso não a cargo dos Radiohead, mas de um dos seus membros, o fantástico Jonny Greenwood), que alguns menosprezam colando-o ao videoclipe –, mas suponho que o minúsculo e oligárquico circuito comercial português não correrá esse risco, tal como aconteceu com os três últimos filmes de Tran.
Termino como Valentina no seu artigo, o despertar doloroso de Toru Watanabe e o seis últimos versos da canção dos meus nada estimados Beatles:
«And when I awoke / I was alone; / this bird had flown. / So I lit a fire, / isn’t it good / Norwegian wood.»
Lamechas? Melancólico? E depois de uma explosão visual que decerto inunda a sala de cinema com a beleza da lente de Tran Anh Hung? Posso bem com isso.