quinta-feira, 29 de julho de 2010

Aquela cabeça…

Contava-se frequentemente entre o meu grupo restrito de amigos que emergiu da turba profissional, e como forma de incutir a boa disposição quase automática entre os presentes, uma história recente – que agora já tem bem mais de uma década – produzida por uma visita ministerial ao nosso local de trabalho, em que, como seria de esperar, tanto pelo cumprimento do protocolo, como pela incrustada prática académica do fazer-se notar, todo o directório dos ungidos pela cátedra se uniu ao seu séquito. A dada altura, o Ministro, em plena sala de convívio, entre hors d’œuvre e copos de plástico agradecidamente abastecidos a champanhe – once in a lifetime, diriam uns para os outros, para destoar do linguajar de soberba dos aperitivos –, interpelou um circunstante (membro do nosso círculo restrito) sobre se aquela figura de cabelos brancos, que se ria entre rissóis de camarão e guardanapos de papel, era a pessoa que ele, Ministro, pensava tratar-se. Perante a resposta afirmativa, declarou, em primeiro lugar, que estava impressionado pelo impecável estado de conservação da criatura, para, logo de seguida, pormenorizar a sua relação que evoluiu de aluno/professor para a de colegas de profissão, terminando com a frase: «Um homem inteligentíssimo e com uma cultura bem acima da média, todavia sempre preferiu a sinuosidade do caminho alternativo à recta para chegar do ponto A ao ponto B», a que acrescentou, despedindo simultaneamente o interlocutor de ocasião: «Ah, aquela cabeça…»
Como testemunha ocular, e dada a envolvente da história, posso assegurar sem necessidade de contraprova, a tal “cabeça” não era a de Christopher Nolan, até porque tem menos quarenta anos de bombardeamentos sinápticos e trabalha para o reconhecimento de outras academias.
É isso mesmo, não é necessário um enorme esforço de concentração, em poucas linhas confessei que já me foi dada a oportunidade de ver o filme de que todos falam na actualidade: A Origem (Inception, 2010) do realizador britânico (n. 1970) Christopher Nolan.
Nolan, apesar da ainda jovem idade, já nos obsequiou com sete longas-metragens, entre as quais vi, claramente vistas, quatro: Memento (2000), Insomnia (2002), O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), e este último que atrás referi; desconfio se realmente vi Batman – O Início (Batman Begins, 2005), dada a profusão de filmes, actores e realizadores que, respectivamente, versaram, encarnaram e dirigiram o morcego moralista de Gotham; não vi os restantes dois, entre eles o muito aplaudido O Terceiro Passo (The Prestige, 2006).
Em A Origem, há uma frase lapidar que nos foi sendo bombardeada nos três ou quatros trailers que há quase seis meses foram sendo criteriosamente projectados nas salas de cinema:
«Qual é o parasita mais resiliente? Uma ideia. Uma simples ideia provinda da mente humana pode construir cidades. Uma ideia pode transformar o mundo e reescrever todas as regras. E é por isso que tenho de a roubar.» [tradução: AMC]
Uma ideia. Injecção de sonhos. Arquitectura de realidades alternativas. Imaginação em socalcos. Resultado: muita parra e pouca uva.
Há uma frase que retirei de um dos livros que neste momento vou desbravando – neste caso em particular com algum deleite pelo desafio intelectual, num momento em que necessito mais do que nunca da leveza espiritual de uma sitcom para confortar a minha mente em efervescência –, que, apesar da complexidade temática, da exigência de reflexão absoluta e de tudo o que foi dito em páginas anteriores da obra que a explicita e circunstancia, caracteriza bem os nossos tempos: «Irrito, logo existo.» (cf. Peter Sloterdijk, Cólera e Tempo, ed. Relógio D’Água, 2010). E Nolan levou-me à exasperação pela tortuosidade obesa de ideias, que mais não é que uma carapaça espaventosa e arraialesca vazia de conteúdo. A Origem, é uma peça meta-fílmica composta em duas horas e meia, que de facto poderia ser traduzida por “documentário de uma ideia” (jamais por obra de arte cinematográfica), como se tratasse de uma prelecção de filosofia do cinema. Aliás, o tom eminentemente preleccionista do filme resultou, porventura, de uma consciencialização de Nolan pela impotência imagética em contar a história, por mais ou menos arabescos visuais e sonoros que introduzisse; muito embora se possa ter apercebido de que o isco de apelo às massas estivesse no ponto certo para mais um retumbante êxito comercial – estava certo, a frieza dos números não o desmente; a horda de admiradores medrou que até dá gosto.
Na minha humilíssima opinião de aficionado da coisa fílmica, Nolan poderia ter aprendido com o ainda recente fenómeno de ascensão e queda em três actos dos manos Wachowski, por um lado, em como se constrói uma história na intrincada dialéctica ficção tecnológica/metaficção, sintetizada no sucesso quase unânime de Matrix (1999), como, por outro, nos desastres subsequentes pelo vazio narrativo de The Matrix Reloaded e The Matrix Revolutions (ambos de 2003). Depois, apesar dos milhões arrecadados, mediante a lembrança de um aforismo ultra-universal de que “o dinheiro não traz a felicidade”, aconselha-se, para a sua saúde psíquica, que o jovem Christopher deixe repousar aquela mente que vai sendo estorcegada pela popularidade filistina do espalhafato, e que caminha em progressão geométrica para o paroxismo do nebuloso e hermético, e não para a, decerto pretendida, abstracção, obviamente admissível sob o ponto de vista estético.
Em suma, a auto-assunção da genialidade, tem estes efeitos colaterais. Neste momento, apenas subjaz a questão: O que se seguirá? Mais um projecto sobre o famoso rato alado. E quem, desta feita, será o cordeiro sacrificial? “Ah, aquela cabeça…”
PS – Peço as minhas mais sinceras desculpas pela forma brusca como terminei o texto, a cheirar a incompletude de argumentos que reforcem a minha opinião sobre o filme, mas vou ver se o meu pião, que ainda há pouco rodava lá fora sobre uma mesa de pinho pacense, continua a girar… É mesmo importante que o faça… agora.