sexta-feira, 16 de julho de 2010

A Imaginação Moral

«Ao contrário de muitos críticos contemporâneos que durante os últimos anos adquiriram uma reputação súbita nos Estados Unidos, Steiner não se dispõe a ler para ficar desapontado, e nunca encarou a actividade crítica como uma oportunidade para adoptar posturas profundamente desdenhosas.»
Robert Boyers, “Introdução”, p. 14. In George Steiner, George Steiner em The New Yorker [Lisboa: Gradiva, 1.ª edição, Junho de 2010, 417 pp; tradução de Joana Pedroso Correia e Miguel Serras Pereira; obra original: George Steiner at The New Yorker, 2008.]
Muito haveria para dizer partindo do curto período atrás citado, retirado do prefácio de autoria do coordenador (não, não se trata do eufemista Louçã) da antologia de ensaios escritos para a revista norte-americana The New Yorker por George Steiner e que, com louvor e consideração – não sem uma pequena reprimenda pela contumaz preguiça editorial de marca lusa* –, a Gradiva traduziu e publicou há cerca de um par de semanas em Portugal, sobre a ortodoxia e o reaccionarismo que se apoderou da crítica literária praticada em solo americano e que se estendeu, de forma pandémica, à crítica literária ocidental, inclusivamente nos cantinhos geográficos propensos à expansão da mediocridade dos visionários de um só olho. Discute-se e muito a técnica, ignora-se a estética e exalta-se a ética literárias – por outras palavras, fazendo uso do conhecimento quase científico da primeira, subordina-se a segunda a um conjunto de interesses de índole diversa que se subsumem nos princípios prevalecentes da terceira num dado momento. Descarta-se a imaginação em detrimento de um manual de bons costumes, de uma cartilha que implicitamente homenageia a obtusidade filistina, pois a arte – imaginação, criatividade, integridade estilística – é menorizada em favor de apriorismos políticos pseudoculturais, ou melhor, segue-se uma agenda económica, garroteada pelos subsídio-saqueadores, e, sobretudo, política, travestida de uma verdade oracular pela untuosa eminência auto-alardeada, apoiada pelo inebriante caleidoscópio contemporâneo dos novos canais promocionais – uma espécie de proliferação acelerada de Rui “brilhantina” Santos, ainda de menor calibre, com acesso privilegiado e exclusivo, porém irrestrito, a uma Delfos, que bem pode ser a Amadora ou Gondomar.
Os que confundem este movimento com a democratização da opinião, são os mesmos que, no seu afã libertário (contrário às convicções íntimas), acabam por criar mitos autocráticos, os monstros da opinião postados em torres de marfim, emprenhando um conjunto de seguidores cegos pelo falso brilho do logro bem vendido, e ainda mais medíocres que o justo progenitor, o que é bem mais atentatório para a evangelizada liberdade de expressão – causa arrebatada pela percebida autoridade moral publicitada, que mais não é que um narcisismo degenerado, porque a distorção mental é de tal ordem que não lhes permite sequer divisar a sua própria imagem numa hesitante superfície reflectora.
É assim a arte na mão dos políticos, burocratas e plutocratas (que proliferam pela actividade dos dois primeiros grupos), roubada aos artistas pelos sequazes da domação da criatividade. Passo a passo vai-se construindo o decálogo de onde emanará a feroz liturgia: e venha a nós a vossa crítica, ó sumo-sacerdote do realismo novecentista, engrandece os livros escritos pelos teus correligionários, publicados pelo grupo editorial da tua mulher e amigos, reprova a abstracção como liberdade criativa. Não denegarás o discurso indirecto livre…
*Nota: a edição lusa deste livro, para além de alguns pecadilhos de tradução detectados logo no primeiro e gigantesco ensaio (por exemplo, troca-se “MI5” por “M15”), enferma do habitual nacional-forretismo, um dos principais derivados do nacional-porreirismo. De facto, os responsáveis da Gradiva não só eliminaram o essencialíssimo “índice remissivo” – peça fundamental em obras com esta configuração –, como também suprimiram um importante “anexo” que continha, na edição original, a listagem completa de todos os artigos publicados por Steiner na icónica revista norte-americana. Assim como, em nenhuma parte do texto em português se faz referência à, jamais negligenciável, data de publicação – percorri o livro de lés a lés e… nada de datas, que permitiriam descortinar a envolvente e o enquadramento histórico no momento em que os escritos foram produzidos e publicados.
Assim sendo, deixo aqui ficar um auxiliar de minha lavra [tudo o que figurar entre parêntesis rectos], para aqueles que fazem tenções de se aventurar na 1.ª edição desta obra (esperando, porventura em vão, uma correcção para a 2.ª):
–––O Sacerdote da traição [sobre Anthony Blunt; “The Cleric of Treason”; 08/12/1980]
–––Wien, Wien, Nur du Allein [sobre Anton Webern & Viena; 25/06/1979]
–––De Profundis [sobre o Volume III do Arquipélago de Gulag de Aleksandr Solzhenitsyn; 04/09/1978]
–––Espiões de Deus [sobre O Factor Humano de Graham Greene; “God’s Spies”; 08/05/1978]
–––Da Casa dos Mortos [sobre Albert Speer; “From the House of the Dead”; 19/04/1976]
–––De Mortuis [sobre Philippe Ariès & O Homem Perante a Morte; 22/06/1981]
–––Mil Anos de Solidão [sobre Salvatore Satta; “One Thousand Years of Solitude”; 19/10/1987]
–––Matar o Tempo [sobre Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell; “Killing Time”; 12/12/1983]
–––Danúbio Negro [sobre Karl Kraus & Thomas Bernhard; “Black Danube”; ”21/07/1986]
–––B. B. [sobre Bertolt Brecht; 10/09/1990]
–––Uneasy Rider [sobre Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas de Robert M. Pirsig; 15/04/1974]
–––Uma Ave Rara [sobre Guy Davenport; “Rare Bird”; 30/11/1981]
–––Cartas Perdidas [sobre John Barth; “Dead Letters”; 31/12/1979]
–––Tigres no Espelho [sobre Jorge Luis Borges; “Tigers in the Mirror”; 20/06/1970]
–––Do Cambiante e do Escrúpulo [sobre Samuel Beckett; “Of Nuance and Scruple”; 27/04/1968]
–––Aos Olhos do Oriente [sobre Aleksandr Solzhenitsyn & outros russos; “Under Eastern Eyes”; 11/10/1976]
–––Homem-Gato [sobre Louis-Ferdinand Céline; “Cat Man”; 24/08/1992]
–––O Amigo de um Amigo [sobre Walter Benjamin & Gershom Scholem; “The Friend of a Friend”; 22/01/1990]
–––Uma Sexta-Feira Má [sobre Simone Weil; “Bad Friday”; 02/03/1992]
–––O Jardim Perdido [sobre Claude Lévi-Strauss; “The Lost Garden”; 03/06/1974]
–––Da Concisão [sobre E.M. Cioran; “Short Shrift”; 16/04/1984]
–––Velhos Olhos Cintilantes [sobre Bertrand Russell; “Ancient Glittering Eyes”; 19/08/1967]
–––Uma História de Três Cidades [sobre as Memórias de Elias Canetti; “A Tale of Three Cities”; 22/11/1982]
–––Le [sic] Morte d’Arthur [sobre Arthur Koestler; “La Morte D’Arthur”; 11/06/1984]
–––As Línguas do Homem [sobre Noam Chomsky; “The Tongues of Man”; 15/11/1969]
–––Uma Morte de Reis [sobre Xadrez; “A Death of Kings”; 07/09/1968]
–––Dar a Palavra [sobre James Murray & o Oxford English Dictionary; “Give the Word”; 21/11/77]
–––Uma Vida Examinada [sobre Robert Hutchins & a Universidade de Chicago; “An Examined Life”; 23/10/1989]

Imagem: (cf. Metamorfoses de Ovídio) reprodução de Eco e Narciso, de Nicolas Poussin (1594-1665), circa 1630, óleo sobre tela (Museu do Louvre, Paris).