segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Ruínas – (VnS IV, epílogo)

Quatro citações, ou melhor, três possíveis epígrafes e uma citação deliberada. A segunda serviu de epígrafe ao texto de onde foi retirada a primeira. O autor da terceira influenciou decisivamente os labirintos narrativos do autor da primeira, a quem este chamou em El conto policial de o Pai da literatura do género, criando com Os Crimes da Rua Morgue o primeiro mistério do quarto fechado – um crime é cometido dentro de um quarto onde aparentemente ninguém pôde entrar, sendo, ademais, descartada a hipótese de suicídio – e ambos são, declaradamente, duas fontes de inspiração primordiais para o autor da quarta citação.

«Com alívio, com admiração, com terror, compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo.»
Jorge Luís Borges, “As Ruínas Circulares”, Ficções (Ficciones, 1944)

«E se ele deixasse de sonhar contigo, onde pensas que estarias?»
Lewis Carroll, Alice do outro lado espelho (Through the Looking Glass, 1871)

«Is all that we see or seem / But a dream within a dream?»
Edgar Allan Poe, A Dream within a Dream (1849)

«Não vai acabar nunca. Porque Mr. Blank é um de nós agora, e, por muito que se debata para compreender a sua provação, acabará sempre por se sentir perdido. […] Sem ele nós não somos nada, mas o paradoxo é que nós, as criaturas imaginadas por uma outra mente, sobreviveremos à mente que nos criou, já que, a partir do momento em que somos lançadas no mundo, continuamos a existir para sempre, e as nossas histórias continuam a ser contadas, mesmo depois da nossa morte.»
Paul Auster, Viagens no Scriptorium, pág. 114.


Depois do mais dissemelhante de todos os seus romances, As Loucuras de Brooklyn (Brooklyn Follies, 2005), Auster regressa à prosa metaficcional com Viagens no Scriptorium (Travels in the Scriptorium, 2007).
«O velho está sentado na beira da cama estreita, mão abertas fincadas nos joelhos, cabeça baixa, olhos fixos no chão.» (frase de abertura da obra, pág. 7).
O velho é Mr. Blank, um homem confuso, «encalhado no meio das criaturas que povoam a sua imaginação». Mr. Blank encontra-se fechado num quarto de uma só janela com a cortina corrida. Não sabe se a porta está trancada, não sabe se para lá da cortina poderá ver o mundo – que mundo? – enquanto ouve, lá fora, «o grito esbatido de um pássaro». Mas, de momento, aquilo que o atormenta é o não saber responder à pergunta primordial que abre todo um universo repleto de novas perguntas: «Quem é ele? Que faz aqui? Quando chegou e quanto tempo permanecerá aqui?» (pág. 7)
Blank não sabe, mas sobre si existe um mecanismo de vigilância que escrutina todos os seus movimentos. A tangibilidade resume-se a um conjunto de objectos, sobre os quais estão apostos rótulos com os seus respectivos nomes: um candeeiro, uma cama, uma secretária com um manuscrito nela pousado, uma cadeira, onde se senta e balança o corpo, e, de repente, sem o mínimo esforço, surge-lhe a primeira revelação, embora difusa, obscurecida, distante sem que consiga mensurar essa distância, fraca para responder às perguntas que o atormentam. Sobre o seu passado ocorre-lhe uma vaga memória de um cavalo de balouço, Whitey, «e que, na mente da criança que Mr. Blank foi, não era um objecto de madeira pintado de branco, mas um ser vivo, um cavalo de verdade», onde no seu dorso percorria os caminhos traçados pela sua imaginação. A imaginação como construtora da realidade.
A partir deste ponto ao quarto acorrerá um conjunto de pessoas diferentes entre si, cada um por sua vez, umas que o ajudam nas tarefas diárias, físicas e fisiológicas, essenciais à sua sobrevivência, e outras que, munidas de uma autoridade cujas origem e legitimidade não compreende, lhe recordam a árdua tarefa que tem pela frente, como uma pena que terá de cumprir pelo mal que lhes infligiu no passado.
Em Viagens no Scriptorium temos Auster numa reflexão profunda, apesar da enganosa superficialidade, talvez provinda de uma leitura negligente ou até intencionalmente desvirtuada, sobre a literatura e a arte de contar histórias, sobre o criador e a intertextualidade da sua obra, sobre a zona nebulosa entre a realidade e a ficção, o sonho e a verdade.
Nesta obra reencontramos Auster no seu campo predilecto, a navegar em territórios que só ele, de momento, sabe explorar: a efabulação metadiegética, quem manipula quem, quem conta a história, o confronto entre o criador e os sujeitos da sua criação, o epítome da narrativa circular que nesta obra é provida de personagens pertencentes a obras anteriores, aqui como lá forjadas pelo potencial onírico de um homem que quis contar histórias a um público ávido de ilusão, de um inebriamento provocado por uma sensação de plausibilidade ou de verosimilhança da sua mais arreigada utopia.
Não erro se disser que esta é uma obra do autor para os seus leitores mais fiéis. Auster completou 60 anos no ano de estreia de Viagens no Scriptorium, e os seus fãs agradecem-lhe, à laia de comemoração, o engenhoso desfile de personagens que povoaram os seus imaginários pelo acto, puro e simples, de leitura das suas obras de ficção que, para um austeriano, se conseguem identificar com alguma facilidade no decurso da narrativa: No País das Últimas Coisas, A Trilogia de Nova Iorque, A Noite do Oráculo, Palácio da Lua, Leviathan ou O Livro das Ilusões.
Auto-indulgente? Auto-referencial? Manipula sem critério os seus personagens, e com isso os seus leitores, julgando dispor de um poder especial de emanação divina?
Deixem-me sonhar, porque é com o sonho que me alento perante a realidade e com a criação artística que vou descobrindo a verdade.
Se parares de sonhar…
Escuro.

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Paul Auster, Viagens no Scriptorium. Porto: Asa, 1.ª edição, Setembro de 2007, 115 pp. (tradução de José Vieira de Lima; obra original: Travels in the Scriptorium, 2007).


Já a seguir: Men in the Dark.

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