quinta-feira, 31 de julho de 2008

Lesbiandades

Imagem de satélite: Ilha de Lesbos - Grécia
Como já referi, nos imensos textos que, para vosso fastio – porque se sentem impelidos a lê-los, mesmo que não vos apeteça –, venho publicando, há muito que abandonei a leitura exaustiva de um ou vários jornais nacionais generalistas, por diversas razões que não vêm agora ao caso. Vou-me mantendo actualizado como posso, sem dramas, numa criteriosa selecção dos temas que deverão multiplicar o volume normal das minhas sinapses.
Encontrava-me numa dessas leituras (neste caso atrasada, constava da pilha “a ler”), quando li que na Grécia a famosa ilha de Lesbos passou a ser um bico-de-obra – e nestas situações todo o cuidado com a língua é pouco – para as associações de gays e lésbicas.
Num processo movido por um conjunto de pessoas nascidas na dita ilha contra a OLKE, a organização representativa da comunidade gay e lésbica da Grécia, pretende-se banir do significado de lesbiano/a – no caso português é mais frequente utilizar-se o género feminino da palavra, apesar da existência do masculino com uma conotação diferente, privilegiando-se o critério da tolerância no campo da semântica – a afeição e o amor recíprocos entre mulheres, para passar a designar apenas os habitantes ou nativos da dita ilha.
A notícia é da Harper’s de Julho que traduziu a pretensão dos requerentes da acção judicial, agora traduzida por mim:

«Somos oriundos da ilha de Lesbos, onde nascemos e fomos educados, tal como os nossos progenitores directos e os nossos mais distantes antepassados, e temos orgulho da nossa herança. A nossa designação cultural [gentílico] apresenta-se como “Lesbiano/a”, tal como “Ateniense” se refere a indivíduos oriundos de Atenas. Assim, “Lesbiano/a” refere-se a cem mil habitantes da ilha e a outros duzentos e cinquenta mil cujas famílias provêm de Lesbos mas que residem noutro lugar. O termo Lesbiano/a é usado na língua grega desde tempos remotos. Encontramo-lo na Ilíada e na Odisseia; podemos, de igual modo, encontrá-lo no período bizantino e durante a ocupação otomana. Mas nas últimas décadas, o termo tem vindo a ser usado pela OLKE e por outras associações de mulheres com determinadas particularidades e excentricidades, embora os seus membros não disponham de alguma ligação com Lesbos. A sua justificação para esta designação arbitrária – que invoca a poetisa Safo, que nasceu na nossa ilha – não pode servir de álibi, já que está provado que Safo tinha meramente relações espirituais com as suas estudantes, e não as relações homossexuais que lhe foram atribuídas. Esta perversão pública cria-nos um problema de comunicação do nosso legado, forçando-nos a evitar o uso de palavras cujo significado foi mal compreendido. O uso deste termo por organizações de homossexuais constitui uma afronta à nossa dignidade, uma vez que a palavra lesbiano/a classifica um desvio da natureza. Nós exigimos que o uso da palavra lesbiano/a na denominação da OLKE seja proibido; que lesbiano seja removido de todos os títulos da organização e de qualquer tipo de contrato, jornal, periódico ou outro documento; e que os membros da organização sejam ameaçados com penas de prisão de um ano e de multa se se recusarem ao seu cumprimento.»
«Dare not speak our name», Harper’s, July 2008, p. 29 [tradução: AMC]
Sinceramente, não sei – talvez porque não leio jornais – se a ILGA internacional e a nacional já se manifestaram, na medida em que correm o sério risco de verem o seu feliz e colorido acrónimo transformado numa alternativa deveras mais penetrante, vibrante e arrepiante – portuguesmente falando, é claro – a ISGA (International Sapphic and Gay Association), já que, neste caso, os lésbicos ou lesbianos decerto não se importariam com as possíveis deturpações das práticas meramente espirituais da vetusta senhora que viveu entre os séculos VII e VI a.C. – não deixou descendência cujos laços se prolongassem por cerca de 2800 anos...

Mas se a moda pega, o que dirão então os habitantes de terras como Picha, Coina, os naturais da ambígua Lambedoiro (também dada a «desvios da natureza»), da incrivelmente masoquista Venda da Gaita e da potencialmente sádica Dafundo?

Já que por aqui enveredei, resvalando para a boçalidade, proponho já agora que se altere o nome da massa que se usa nos famosos e deliciosos pastéis de Chaves, para massa “Mil Folhas” à espanhola, porque a sua pronúncia soa aos nossos maiores compradores estrangeiros como “massa fodida” e é capaz de arruinar o negócio de qualquer um. E depois… depois, expliquem-lhes o que é uma “espanholada” e talvez estes se associem num ápice aos orgulhosos lesbianos num manifesto do género, embora mais globalizante e fálico.

P.S. – Tenham lá paciência e atentai na sua topografia… da ilha, claro. Como chamarão as lesbianas e os lesbianos (veia guterrista) àquelas duas baías? Por favor, consultar, por muito menos de 63 mil euros, os manos Beverly e Elliot Mantle, os maiores especialistas do mundo no assunto...

quarta-feira, 30 de julho de 2008

O anti-melodrama

François Ozon

Tem sido um osso fílmico duro de roer, um soco no estômago cinematográfico que ainda faz repercutir as suas ondas de choque sobre a minha alma, uma traição em forma de filme cujo sabor amargo ainda perdura na minha boca, um… Chega!
O melodrama barato – a existir o caro… –, algo que nunca esteve presente nas anteriores longas-metragens realizadas pelo, provavelmente®1, melhor realizador francês da actualidade, nascido em Paris há menos de 41 anos (na imagem com um ar sério e não melodramático antes de proferir que a campónia e untuosa Romola Garai era a sua musa).
Como é possível ter-se por musa uma Romola?

Antes de descobrir a fonte de inspiração etérea, François Ozon havia realizado esta excepcional sequência de filmes:

  • Gotas de água sobre pedras escaldantes (Gouttes d’eau sur pierres brûlantes, 2000)2;
  • Sob a areia (Sous le sable, 2000);
  • 8 Mulheres (8 femmes, 2002);
  • Swimming Pool (2003);
  • Cinco vezes dois (5x2, 2004);
  • O tempo que resta (Le temps qui reste, 2005)

No admirável Sob a areia, Ozon demonstra toda a sua arte anti-climáctica, que antes poderia haver traduzido pelo horror ao melodrama.
Ozon cria o ambiente soturno de uma rotina conjugal e estraçalha o interior de uma mulher, Marie (soberbamente interpretada por Charlotte Rampling), que alheada da dor surda e da infelicidade estampada no rosto do marido (Bruno Cremer) quando chegam à sua casa de férias na estância de Landes, o vê partir no dia seguinte na praia quando este lhe disse que ia tomar um banho de mar. Apesar das buscas exaustivas, o corpo não aparece, uma série de incógnitas são levantadas (fuga, suicídio, morte acidental) e poderiam ter sido exploradas por Ozon para encetar um dramalhão de choro ininterrupto, dentro e fora do ecrã (neste último caso com um sério aviso para a eventual necessidade de uso do escafandro).
Marie parte para Paris, alheando-se da ausência do marido, falando dele no presente, compartilhando o leito com um homem num assumido adultério. Assiste-se ao desmoronar interior de um personagem, sem uma lágrima, apenas com gestos, reflexões e actos aparentemente demenciais de quem não aceita o que vê, mas apenas o que sente. Jean não está morto. A confrontação com a sogra. A morgue... a alienação.

Escrito em conjunto com três mulheres argumentistas (Emmanuèle Bernheim, Marina de Van e Marcia Romano), o momento da definição ocorre em Paris, na sala de aula da universidade onde Marie ensina Literatura Inglesa; Marie lê Virginia Woolf em voz alta, As Ondas, num momento da narrativa que se situa pouco após a morte do espectral Percival, na hora da confrontação da verdade poética com a realidade dos vários "eus" de Bernard:

«E o tempo, disse Bernard, esgota-se. A gota forma-se no telhado da nossa alma e depois cai. É o tempo que a faz cair. Na semana passada, quando me barbeava, a gota caiu. Estava de pé com a navalha de barbear na mão e de repente tomei consciência da natureza habitual desse meu gesto (a gota formando-se) e felicitei ironicamente as minhas mãos por se submeterem a esta rotina. “Barbeiem, barbeiem”, disse. Continuem a barbear. A gota caiu. Durante o dia, enquanto trabalhava, o meu pensamento escapou constantemente dirigindo-se a um lugar vazio em busca de qualquer coisa perdida, de qualquer coisa que acabara. «Morto e enterrado», murmurei consolando-me com as palavras. As pessoas repararam no meu ar ausente e na inconsequência das minhas frases. E enquanto abotoava o sobretudo para regressar a casa disse mais tragicamente: “Perdi a minha juventude.”»
Virginia Woolf, As Ondas, pág. 148
[Lisboa: Relógio D’Água, 1988, 239 pp; tradução de Francisco Vale; obra original: The Waves, 1931]

Marie interrompe a leitura nesse ponto da história, o terrível circunlóquio do despertar de Bernard, avista alguém no anfiteatro que ela sabe lhe poderá interromper o devaneio, a fuga que empreendeu para não ter de enfrentar a dor da perda. Interpelada no corredor, responde ao interlocutor, impávida, serena, firme da sua convicção do que é a verdade.
É, seguramente, um dos momentos mais sublimes da cinematografia contemporânea... apenas fica o silêncio da estupefacção...


Notas:

  1. Agradeço à Carlsberg pela utilização do advérbio de modo, que, nestes casos, impede que se ignorem os velhos ainda em actividade (Resnais, Rohmer, Godard, Rivette, Varda, Chabrol,…), os de meia-idade (Garrel, Téchiné, Schroeder, Chéreau,…) e os mais novos (Canet, Noé, Gondry, Carax, Honoré,…).
  2. Já o vi Luís, e agradeço-te a sugestão que colmatou uma das minhas falhas ozónicas (tenho ainda por ver Sitcom e Les amants criminels, para além da esmagadora maioria das curtas).

Porquê François? (em francês dava rima; volto à minha pose melodramática.)

terça-feira, 29 de julho de 2008

Booker Prize 2008 (13 semifinalistas)

Foi anunciada a lista dos treze romances semifinalistas, candidatos ao Man Booker Prize de 2008. Destes treze romances sairão, no próximo dia 9 de Setembro, os habituais seis finalistas, entre os quais figurará o vencedor a ser anunciado no dia 14 de Outubro no habitual jantar no Guildhall em Londres.

Eis os 13 semifinalistas (lista organizada por ordem alfabética do apelido do autor):

  • Aravind Adiga, The White Tiger
  • Gaynor Arnold, Girl in a Blue Dress
  • Sebastian Barry, The Secret Scripture
  • John Berger, From A to X
  • Michelle de Kretser, The Lost Dog
  • Amitav Ghosh, Sea of Poppies
  • Linda Grant, The Clothes on Their Backs
  • Mohammed Hanif, A Case of Exploding Mangoes
  • Philip Hensher, The Northern Clemency
  • Joseph O’Neill, Netherland
  • Salman Rushdie, The Enchantress of Florence
  • Tom Rob Smith, A Criança n.º 44, Dom Quixote (Child 44)
  • Steve Toltz, A Fraction of the Whole

Dos 13 romances, apenas um foi, por enquanto, editado em Portugal, trata-se de A Criança n.º 44, o 1.º romance do jovem escritor inglês Tom Rob Smith (n. 1979) publicado pela Dom Quixote, editora que aliás já prometeu a edição para breve do último romance de Sir Salman Rushdie (o amigo literário do crítico britânico James Wood, não atingindo, porém, o paroxismo da sólida amizade que une o autor aos islamitas e vice-versa).

Destaque para a segunda presença do truculento crítico, ensaísta e romancista, assim como artista plástico, John Berger, vencedor do galardão em 1972 (para os mais curiosos, o excepcional ano do meu nascimento) com o romance G. Berger, no discurso de aceitação do prémio, disse que iria doar metade do seu prémio aos então já extintos Black Panthers, devido à política colonialista da sociedade Booker nas Índias Ocidentais (desconhecendo, porém, que as suas plantações de cana-de-açúcar já haviam sido confiscadas pelo menos 10 anos antes). Dois tiros pouco certeiros… mas o show off teve o mérito de ficar marcado na história dos prémios, com insultos, trocas de acusações à mistura e abandonos de sala.

Para o irlandês Sebastian Barry (n. 1955) trata-se da segunda nomeação, depois de ter sido finalista vencido no excepcional ano de 2005 – ano em que venceu John Banville com o dilacerante O Mar (The Sea), relegando para segundo plano, para além do romance A Long Long Way (não editado em Portugal) do próprio Barry, o meu mais que favorito Nunca Me Deixes (Never Let me Go) de Kazuo Ishiguro, A Acidental (The Accidental) de Ali Smith, Uma Questão de Beleza (On Beauty) de Zadie Smith e Arthur & George (Arthur and George) de Julian Barnes.

Também Linda Grant, romancista e jornalista inglesa nascida em 1951, vê pela segunda vez um dos seus romances na listagem dos semifinalistas. Para além deste ano, Grant ficou-se por esta fase com o romance Still Here (não editado em Portugal) em 2002. Exactamente como o seu compatriota Philip Hensher (n. 1960) com The Mulberry Empire (obra não editada em Portugal).

Salman Rushdie para além de ter vencido os Booker of Bookers comemorativos dos 25 e dos 40 anos de atribuição do prestigiado prémio com o seu romance Os Filhos da Meia-Noite (Midnight’s Children, Booker Prize em 1981), foi finalista vencido em 1983, 1988 e 1995 com Vergonha (Shame), Os Versículos Satânicos (The Satanic Verses) e O Último Suspiro do Mouro (The Moor’s Last Sigh), respectivamente. No tal ano de 2005 ficou merecidamente pelo caminho como apenas semifinalista com Shalimar, O Palhaço (Shalimar The Clown), podendo gabar-se de ter tido por companhia Ian McEwan com Sábado (Saturday) e o Nobel da Literatura de 2003 J.M. Coetzee com O Homem Lento (Slow Man), também eliminados do sexteto final.

Os restantes elementos vêem pela primeira vez o seu nome inscrito numa listagem do galardão literário mais importante da língua inglesa a premiar uma obra originalmente publicada no Reino Unido, num dos países pertencentes à Commonwealth ou na Irlanda – correm, no entanto, rumores que a Booker Prize Foundation com o grupo financeiro Man têm vindo a estudar a hipótese de alargar o leque de alternativas permitindo a inclusão de obras de romancistas norte-americanos, originalmente publicadas nos Estados Unidos; resta esperar para ver se a tal apetecível perspectiva se concretiza.

Uma pequena provocação: apesar das discrepâncias geográficas, não passa pela cabeça dos organizadores do evento alterar as regras do galardão maior em língua inglesa, para, por exemplo, na próxima edição apenas incluírem na listagem de obras sujeitas a apreciação, aquelas que foram escritas exclusivamente por autores ingleses… do you know what I mean? (tradução: vocês sabem do que é que eu estou falando?)

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Livros Grátis

O Diário Notícias irá distribuir durante 6 semanas por 5 edições semanais (excepto às terças e quintas), 1 livro de bolso grátis, apenas pelo preço de compra do jornal em papel.
(Com a devida vénia ao Luís, que alertou a blogosfera para dito empreendimento literário levado a cabo pelo periódico da Controlinveste.)
Devido ao meu total alheamento voluntário dos jornais que se vão publicando pelo país, de onde os gratuitos me provocam uma insanável urticária – não só pela qualidade jornalística e das matérias neles reproduzidas, mas principalmente pelo espectáculo das inúmeras lixeiras varridas a vento que as gentes deste país imundo criaram a cada cruzamento, e, por fim, pelos distribuidores que empatam o já de si complicado trânsito matinal das ruas das nossas cidades, com o beneplácito do portuguesinho de terço no retrovisor ou do “Vanessa a bordo” estampado no vidro traseiro que abranda ou detém o andamento da viatura para sacar mais uma borla e que literalmente se está a borrifar (ia dizer cagar, mas ficava feio) para o vizinho que vem atrás –, mas foi esse alheamento que levou ao meu total desconhecimento da campanha que se iniciou no passado sábado.
Mas, antes que anoiteça (obrigado Arenas), eis os títulos:

  • 26-Jul – Fiódor Dostoievski – Coração Débil
  • 27-Jul – Franz Kafka – A Metamorfose
  • 28-Jul – Giovanni Boccaccio – Histórias Eróticas
  • 30-Jul – Anton Tchékhov – A Minha Mulher
  • 1-Ago – Voltaire – O Ingénuo
  • 2-Ago – Lev Tolstói – A Morte de Ivan Ilitch
  • 3-Ago – Jack London – A Peste Escarlate
  • 4-Ago – Máximo Gorki – Três Contos
  • 6-Ago – Thomas Hardy – O Pregador Atormentado
  • 8-Ago – Franz Kafka – Carta ao Pai
  • 9-Ago – Fiódor Dostoievski – A Voz Subterrânea
  • 10-Ago – Joseph Conrad – Juventude
  • 11-Ago – H.P. Lovecraft – Herbert West: Reanimador
  • 13-Ago – Robert L. Stevenson – O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde
  • 15-Ago – Charles Dickens – Um Cântico de Natal
  • 16-Ago – Henry David Thoreau – Onde Vivi e para Que Vivi
  • 17-Ago – Henry James – A Fera na Selva
  • 18-Ago – Miguel de Cervantes – A Ciganita
  • 20-Ago – Rainer Maria Rilke – Histórias do Bom Deus
  • 22-Ago – Nikolai Gógol – O Retrato
  • 23-Ago – Sun Tzu – A Arte da Guerra
  • 24-Ago – Stephen Crane – O Barco Aberto
  • 25-Ago – Oscar Wilde – O Crime de Lorde Artur Savile
  • 27-Ago – Thomas Wolfe – O Rapaz Perdido
  • 29-Ago – Gustave Flaubert – Um Coração Simples
  • 30-Ago – Edgar Allan Poe – A Queda da Casa de Usher
  • 31-Ago – Fiódor Dostoiévski – Contos
  • 1-Set – Italo Svevo – Um Embuste Perfeito
  • 3-Set – Oscar Wilde – O Retrato do Sr. W.H.
  • 5-Set – Rainer Maria Rilke – Cartas a Um Jovem Poeta

No dia 17 de Agosto (dois dias após a Assunção de Maria), sai com o DN o livro grátis com o conto A Fera na Selva (The Beast in the Jungle, 1903) do Mestre Henry James. Conto que na sua versão original é composto por cerca de 16.700 palavras.
Uma vez mais remeto para aquilo que
aqui proferi em relação a outro conto do mesmo autor, recentemente editado no mercado nacional e vendido pelo preço de 12 euros, cuja versão original é composta por cerca de 11.900 palavras…

Talvez seja meu o defeito. Sou um redutor...

domingo, 27 de julho de 2008

O elefante acorrentado

Louis (o eliotiano), a par de Bernard (o joyciano), talvez o personagem mais bem elaborado por Woolf em As Ondas – opinião pessoal, e sem sombra de misoginia. Simboliza o homem, outrora admirado, «o melhor aluno do colégio», desprezado pelas vicissitudes da vida. O australiano que vive atormentado com o seu sotaque pela Londres das elites, confrontado com a falência do negócio do pai, um banqueiro de Brisbane, trabalha atrás de uma secretária atafulhada de papelada num escritório de contabilidade (onde é que já li ou ouvi isto no caso português).

Nas suas próprias palavras:

«É muito profundo o que nos diferencia, disse Louis, e talvez impossível de definir. Mas, apesar disso, procuremos uma definição. Ao entrar, ajeitei o cabelo para me tornar parecido convosco. Mas não o consegui, porque não sou uno e completo como vocês. Já vivi mil vidas. Em cada dia cavo e desenterro alguma coisa, descubro restos de mim na areia pisada pelas mulheres há milhares de anos, na época em que escutava os cantos que se elevavam na margem do Nilo e as patadas da besta acorrentada. O Louis que estão a ver é feito das cinzas de alguém outrora sublime. Fui príncipe árabe; a nobreza dos meus gestos é disso testemunha. Na época de Elisabeth fui um grande poeta. E era duque na corte de Luís XIV. Sou vaidoso e destemido e tenho um imenso desejo de que as mulheres suspirem de ternura por mim. Hoje não almocei para que Susan me achasse pálido e Jinny estendesse sobre mim a singular fragância [sic] da sua simpatia. Mas, ao mesmo tempo que admiro Susan e Percival, odeio os outros, pois é por causa deles que me torno ridículo, à força de me pentear e procurar esconder o meu sotaque. Sou o macaquinho que brinca com uma noz e vocês são as mulheres desmazeladas, com reluzentes sacos de pastéis apodrecidos. Sou também o tigre enjaulado e vocês os guardas armados com ferros incandescentes. É exactamente isso. Sou mais forte e mais feroz do que vocês e, no entanto, esta minha breve aparição sobre a terra, após milénios de não ser, será consumida no temor de que se riam de mim, a mudar com o vento conforme sopram as tempestades de fuligem, esforçando-me por forjar o anel de aço da clara poesia que reúna as gaivotas e as mulheres de dentes apodrecidos, os campanários das igrejas e os chapéus de coco que desfilam pelas ruas quando estou a almoçar e apoio um dos meus poetas preferidos (talvez Lucrécio) no galheteiro e no cardápio sujo com molho de carne.»
Virginia Woolf, As Ondas, pp. 102-103
Lisboa: Relógio D’Água, 1988, 239 pp. [tradução de Francisco Vale; obra original: The Waves, 1931]

Enfim, quebradas as correntes apenas fica o desejo expresso de que não se estilhacem as porcelanas que habitam as lojinhas pessoais, delicadas e assépticas, dos pequenos (grandes, por auto-ilusão) caciques da lusa erudição.
Ah, a inveja, já dizia o outro “um mal oculto”.

sábado, 26 de julho de 2008

Acima de Ledger

Aaron Eckhart em O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008)
Ou melhor, o próprio actor excedeu-se, ultrapassou a barreira da sua mediocridade interpretativa, estabelecida, ironicamente, em todos os filmes, sem excepção (gay sheepboys, incluído), em que participou até ao penúltimo. Em The Dark Knight, os irmãos Nolan deram-lhe seguramente a hipótese para brilhar – é um papel num milhão. Não pretendo significar com isto, no entanto, que qualquer actor inserto na pele do personagem delineado pudesse atingir tal grau de resplandecência. Não, é aí mesmo onde se aloja a questão, toda a interpretação de Ledger é superação, esforço e dedicação, que até pode ser entendida pelo perfil histórico-fílmico do próprio actor, anódino e sem chama, como fazendo uma curta análise aos seis filmes Batman da nova geração: por exemplo, estou perfeitamente convencido de que Jack Nicholson, ligeiramente mais novo e menos indolentemente canastrão, jamais lograria alcançar o nível do australiano sem recorrer ao histrionismos que lhe conhecemos para tentar ultrapassar a fase da decadência – não falo, é claro, do Nicholson de Voado sobre um ninho de cucos (One Flew Over the Cuckoo’s Nest, 1975) de Milos Forman, de Chinatown (1974) de Polanski, de Profissão: Repórter (Professione: repórter, 1975) de Antonioni, de Shining (1980) de Kubrick ou até de Uma Questão de Honra (A Few Good Men, 1992) [You can’t handle the truth!] de Rob Reiner, um pouco mais velho que Ledger quando interpretou Joker e a anos-luz de distância (isto é, bem acima) no capítulo da eminência cinematográfica.

Deixando de parte a transfiguração de Heath Ledger, o filme de Nolan é tão banal como o seu predecessor Batman – O Início (Batman Begins, 2005), também com Christian Bale na pele do herói imaginado por Bob Kane, e banaliza-se com a sucessão de falhanços (opinião pessoal) desde o seu verdadeiro começo na era contemporânea, quando Tim Burton o resolveu ressuscitar para o grande ecrã em 1989, com Michael Keaton a fazer de homem-morcego.
Aliás, considero que o principal problema dos filmes Batman (como já referi, seis até hoje) com diversos realizadores (por esta ordem, Burton, Burton, Schumacher, Schumacher, Nolan e Nolan) reside na estranhíssima falta de apelo ou, se quisermos, de uma clara falta de identificação actor/personagem-herói/público; é uma relação clara e impudicamente falhada com Michael Keaton nos filmes de Burton (Keaton tentou, de forma perceptível para olho medianamente treinado em cinema, dar uma passo maior que a sua perna e estatelou-se ao comprido), e depois com performances sofríveis de Val Kilmer e George Clooney nos seguintes dois – actores cujos tiques pessoais já se tornaram inultrapassáveis –, e finalmente com Christian Bale nos dois últimos, cuja participação só poderá ser entendida pelo cachet e pela (por ele) constatada decadência capitalista de colegas actores da sua geração rendidos ao verde dos dólares e até dos personagens, como é o caso do meu mui estimado Ed Norton (que facada no coração).
Pelo vistos a saga irá continuar com os manos Nolan, com Bale e Eckhart confirmados. Agora, só resta esperar que este último não ensandeça no esforço de interpretar o papel de Two-Face (Harvey Dent), anteriormente interpretado em Batman Para Sempre (Batman Forever, 1995) por outro dos colossos de Hollywood, Tommy Lee Jones.

Very punctual, even to his own funeral! Boys, kill the Bat!

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Vida apocalíptica de uma mulher-a-dias

«Depois disto, tive outra visão: havia uma porta aberta no céu e a voz que eu ouvira ao princípio, como se fosse de trombeta, falava comigo, dizendo: “Sobe aqui e vou mostrar-te o que deve acontecer depois disto.”»
Livro do Apocalipse 4,1


É incontornável começar qualquer referência ao último trabalho romanesco de valter hugo mãe (vhm) sem mencionar a curta epígrafe de autoria da poetisa Adília Lopes: «Deus é a nossa / mulher-a-dias.» (pág. 5)
Eis o terceiro romance do escritor vila-condense por adopção, depois do verdadeiramente brilhante O remorso de Baltazar Serapião, que para grande estranheza minha corria o risco de cair no olvido da torrente editorial de obras escritores portuguesas da nova geração.
Gonçalo M. Tavares e José Luís Peixoto, já conquistaram por direito próprio (algumas vezes por inexcedível verve encomiástica da crítica) o lugar cativo de autores de referência da geração de 70 do século XX. Enquanto o primeiro vai revelando de obra para obra uma maturidade que facilmente o colocará no registo inapagável dos autores de referência no futuro – embora, concorde que Tavares já nasceu para a literatura com um invulgar grau de consistência e de perfeição literárias, que fazem dele um fenómeno com repercussões internacionais –, o segundo, JL Peixoto, parece querer atravessar o duro deserto do aperfeiçoamento, se bem que não se furte a desmultiplicar-se em presenças em diversos eventos literários para lhe conferir a tal visibilidade que essa travessia lhe poderia retirar.
vhm parece querer seguir um percurso diferente. Poeta por gosto e eleição, surge-nos mais acessível, mais próximo ou presente – menos bartlebiano, se quisermos – a um público que gosta de literatura. Escreveu três pérolas em prosa O nosso reino (2004), O remorso… (2006), O apocalipse… (2008), equidistantes no tempo, que alguém não permitiu que se fechassem na terrível ostra da indiferença literária (repito-me), quando merecidamente lhe foi atribuído o Prémio Literário José Saramago 2007 (de atribuição bienal) pelo seu segundo romance e motivou a legítima indignação do inspirador do prémio «Este livro é um tsunami [...] Quando foi publicado? E os sismógrafos não deram por nada? Oh, que terra insensível: este livro é uma revolução.»
Em 2001 e 2005, Peixoto com Nenhum Olhar e Tavares com Jerusalém, por esta ordem, foram galardoados com o mesmo prémio, que em 2007 reparou uma injustiça latente, que de repente se tornaria numa ferida aberta difícil de sarar, cujo estudo etiológico poderia abalar as confortáveis posições de mentes tão eruditas.

O apocalipse dos trabalhadores retrata a vida quotidiana de gente simples, que reside em Bragança, cujo vazio, ou melhor, a insalubridade existencial é sentida e percebida pelos próprios, constituindo-se como a mola que liberta a perigosa esperança da existência de um paraíso, embora ininteligível, de contornos difusos, mas que sanciona a miséria terrena.
A maravilhosa frase de abertura diz tudo da protagonista, Maria da Graça, mulher-a-dias e para qualquer tipo de serviço:
«de noite, a maria da graça sonhava que às portas do céu se vendiam souvenirs da vida na terra.» (pág. 9)
Maria da Graça, miserável mulher-a-dias, casada com um pescador brigantino (uma das ironias da obra), Augusto, que a trata com toda a indiferença de um marialvismo remoto, um ornamento doméstico cuja posse foi legitimada pelo casamento. Ambos vivem num bairro social, onde a vivaça vizinha Quitéria a vai orientando nos assuntos terrenos e serve de conselheira perante os abusos do patrão, Sr. Ferreira, homem abastado de 76 anos, com uma cultura acima da média, que ao mesmo tempo que consuma os seus abusos sobre o corpo de Maria da Graça, lhe ensina a descodificar a beleza das artes através de Mozart e o seu Requiem, a poesia de Rilke e o esmiuçar interior dos personagens de Bergman. Entre eles gera-se uma obsessão amorosa digna dos melhores compêndios sadomasoquistas, que engrandece o ódio que Maria da Graça tem ao marido, visto como um estorvo, e, como uma boa mulher-a-dias, lhe vai regando a sopa com lixívia, o seu instrumento de trabalho.
Quitéria, pelo seu lado, apaixonada pela virilidade dos jovens corpos masculinos vai recebendo no seu apartamento alguns homens, sobretudo emigrantes do leste europeu, desejosos de apagar o fogo da sua paixão no seu corpo pequeno e anafado da portuguesa. Descobre Andriy, ucraniano natural de Korosten, onde deixou pai e mãe no limiar da loucura provocada pelo terror vivenciado num passado recente violento, que deixou marcas demenciais indeléveis. As dificuldades de adaptação a um país que lhe parece hostil e a uma língua intrincada bastante diferente da sua e a incerteza pela subsistência mínima e sobrevivência dos pais, acrescentando-se a exploração de que é vítima nos empregos que vai encontrando, levam a adopção deste por uma benfeitora, a tal Quitéria, que abandonando os expedientes remuneratórios que o seu corpo lhe permite, oferece-se nas agências funerárias como carpideira e veladora de cadáveres nas capelas mortuárias das igrejas antes de realizado o enterro e perante a indisponibilidade de familiares e amigos do defunto. Quando Ferreira morre num acto de erudição inusitado, Maria da Graça sem o sustento de quatro dias por semana na casa do amado/odiado patrão – “o maldito” – acompanha a amiga nas longas e tenebrosas noites por capelas mortuárias transmontanas.

Neste rico mosaico do desespero quotidiano luso, vhm dá-nos a conhecer, através de monólogos, o aflitivo e dilacerado interior dos personagens perante a sordícia enfrentada quotidianamente. É nestes solilóquios e nos divertidíssimos devaneios de Maria da Graça, em que dialoga com S. Pedro às portas do Céu, que se estabelece a base da narrativa do romance.
vhm trabalha com mestria as utopias de gente destroçada à espera de uma revelação.
Embora, para ser honesto, tenha de confessar que a primeira parte da obra conduziu-me quase a um gesto assassino de fechar o livro até próxima oportunidade, a minha perseverança leitora e a confiança nas capacidades do autor, levaram-me a resistir ao cometimento desse acto que criminosamente rotularia de ilegível, para a minha eternidade e de forma errada, um excelente livro.
O apocalipse dos trabalhadores não é um livro de leitura fácil; é, sobretudo, introspectivo e faz um apelo em surdina à reflexão e à releitura. E só assim, muitas vezes, as entrelinhas foram descortinadas.
Se nos ativermos a aspectos meramente formais, vhm insiste em deixar a sua marca não usando, de todo, as maiúsculas (aliás como no seu nome literário), nem mesmo quando grafa nomes próprios, cidades e países. É a marca de vhm. Marcas que se distinguem por todo o mundo na nova geração de autores, sendo talvez Ali Smith o caso mais paradigmático e similar com o autor português. Ora, sendo eu um tradicionalista na, se quisermos, composição gráfica do romance (parágrafos, travessões, pontos e vírgulas, etc.), tenho de afirmar que, apesar do elevado grau de excelência do conteúdo, essas novidades estilísticas atrapalham, por alguma irritação experimentada, a leitura da obra, sem contudo a ferirem de morte.
Sobre o conteúdo, vhm é directo e cruel, não se atém em eufemismos que pudessem servir de disfarce à coloquialidade que as personagens, por si escolhidas, exigem. É todavia subtil, especialmente, na preciosidade das suas ironias, e de um humor, por vezes cortante, de ir às lágrimas, de que o cão que persegue Maria da Graça e que mais tarde é por si adoptado, dando-lhe o nome de Portugal, «é um rectângulo castanho, um ridículo rectângulo castanho, deve estar cheio de pulgas e chama-se portugal. tem razão, é um bom nome. vamos dar-lhe banho.» (pág. 30) é disso um exemplo; como no caso da agente da polícia desconfiada, que investiga a morte de um dos personagens, materialista e truculenta, quase niilista, que se chama Quental.

Para terminar não resisto a postar aqui um breve trecho que, de forma alguma, prejudica o necessário segredo do desenlace, e que é bem demonstrativo de tudo o que referi nos parágrafos anteriores (fiquei à beira das lágrimas):
«o tempo haveria de continuar o seu ofício e desculpar toda e qualquer ansiedade. sim, fora só ansiedade. porque o amor não cabia quieto no espaço tão pequeno que era o corpo de uma mulher. o portugal ainda latiu por um breve segundo, depois ficou calado, apenas a ver, tão fugazmente inteligente, intensamente ternurento e absolutamente imprestável.» (pág. 182)

Classificação: **** (Bom)

Referência bibliográfica:
Valter Hugo Mãe, O apocalipse dos trabalhadores. Matosinhos: QuidNovi, 1.ª edição, Julho de 2008, 182 pp.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Unanimismos – parte II

Estreou há uma semana, já obteve 158 milhões de USD em receitas de bilheteira.
Cerca de 91.097 utilizadores registados da Internet Movie Database (IMDB) já manifestaram a sua apreciação – o filme apenas estreará até ao fim desta semana na esmagadora maioria dos países europeus. Um número impressionante de 69.929 utilizadores (76,8% dos votantes) atribuiu-lhe a classificação máxima de “10 valores” – contra os parcos 2.370 que o obsequiaram com a votação mínima de “1 valor” (2,6% dos votantes). Entre os mil votantes mais frequentes, 120 já o qualificaram, atingindo-se uma classificação média de “8 valores”, bastante alta para esta categoria (exigente) de votantes, mesmo estando a votação no seu início.
Com o tempo, a estrondosa média ponderada de “9,5 valores”, (não se trata de uma média aritmética simples, são introduzidos outros factores que permitem calibrar as distorções passionais numa votação deste género), descerá, à medida que mais utilizadores forem manifestando a sua apreciação. Tem sido essa a tendência (aliás, de fácil descodificação, tivesse eu pachorra para aqui o fazer ou a pretensão de apodar de ignorantes os poucos que me lêem), recordando-me do caso evidente dos três filmes da trilogia do Senhor dos Anéis que durante os primeiros meses ostentaram classificações invejáveis, destronando os clássicos da 7.ª arte que habitualmente ocupam as posições cimeiras, e que hoje, o mais bem classificado dos três, O Regresso do Rei, estacou no 14.º lugar.
Por enquanto, lá foram de novo destronados das suas posições tradicionais, os crónicos cinco primeiros filmes: O Padrinho (Francis Ford Coppola, The Godfather, 1972); Os Condenados de Shawshank (Frank Darabont, The Shawshank Redemption, 1994); O Padrinho – Parte II (Francis Ford Coppola, The Godfather: Part II, 1974); O Bom, o Mau e o Vilão (Sergio Leone, Il Buono, il brutto, il cattivo, 1966); e Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994); por esta ordem, dos 2.º ao 6.º classificados.

Nota: todos os dados foram retirados do sítio da IMDB no dia 23 de Julho de 2008, pelas 18 horas e 30 minutos UTC +0100.

Matai um naipe inteiro (paus, ouros, copas ou espadas) nas próximas estreias…

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Unanimismos

Heath Ledger
Há qualquer coisa de muito negro sobre o último personagem encarnado (pelo menos em vida, sabe-se lá que papéis lhe foram reservados por Dante e companhia) pelo desditoso actor australiano Heath Ledger (1979-2008), por toda esta pornografia necrófila das campanhas promocionais de exploração do “coitadinho, por este papel ele seria…” e com a manobra que se pressente nos bastidores da Academia para o galardoar com Óscar para Melhor Actor a título póstumo no próximo mês de Fevereiro a despeito do grau de potência performativa da eventual concorrência.

Por enquanto, o negro do cavaleiro das trevas, transformou-se num incomensurável aglomerado de pigmentos verdes com o patrocínio do Pai Fundador Benjamin Franklin, reabilitando um realizador, Christopher Nolan, que teve, há uns anos, entradas de leão, mas que, com o passar do tempo, vai (ou ia) descendo vertiginosamente na escala felídea de ferocidade, roçando já o nível do gato persa.

Ao contrário da prática de alguma crítica, especialmente da literária, postarei aqui as minhas observações depois de o ver na grande tela, provavelmente no próximo fim-de-semana – e já sei que, pela antecipação e sem convites para antestreias, vou levar com o melódico ruminar das pipocas, com o estardalhaço do sorver das últimas gotas de Coca-Cola nos copos de meio litro e com o odor pestilento de alguns cachorros Cecil B. DeMille, ambos propensos à eructação… e fiquemo-nos por aqui.

Até lá... ah, e já agora, a talho de foice, uma boa crítica ao Vigilância de Jennifer Lynch no Expresso, por Manuel Cintra Ferreira.

sábado, 19 de julho de 2008

Vigilância (Surveillance) - Parte II

Tal como previa, eis as "Estrelas do Público" (apenas na edição em papel ou digital a pagar):


(carregar na imagem para a ampliar)

Agora comparem-no com o "estrelar" de Angel – Encanto e Sedução de François Ozon aqui, muito longe, decerto, do apodo de «juvenil e inconsequente», mais dentro da categoria «chinelada melodramática e lamechice sabrínica», mas isso sou eu e os meus devaneios pueris pelo grindhouse*.

*Nota: por acaso, género que não suporto de todo.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Add It Up

Não, não é Cronenberg, Tarantino, nem tão-pouco o já artrítico e jubilado Arthur Penn. É LynchJennifer? Realizou Vigilância (Surveillance, 2008), filme que estreou ontem em Portugal, numa quase antestreia mundial. Os outros vê-lo-ão passar pelos cartazes do circuito comercial lá mais para o final do Verão, incluindo um dos dois países de origem da sua produção, os Estados Unidos – no outro, a Alemanha, tal como cá, a estreia deu-se ontem.
O apelido não surgiu por acaso, nem por qualquer combinação cósmica que tivesse ousado conjugar a trama, o excepcional trabalho de actores e a beleza cénica com o realizador de Um Coração Selvagem (Wild at Heart, 1990).
Jennifer (Chambers) Lynch (n. 1968), é filha do realizador norte-americano David Lynch (n. 1946), concebida na sua primeira co-produção matrimonial com a artista plástica Peggy Reavey (Lynch).
Tendo o papá por produtor executivo, Jennifer construiu com inteligência um thriller que certamente irá assombrar as almas mais sensíveis por muitos e bons anos; e não se pense que existe gratuitidade na violência, que com o correr dos metros de celulóide vai ganhando corpo e consistência, não me aventurando, na qualidade de cinéfilo atento ao fenómeno da violência pornográfica nos filmes mais recentes, a sugerir um qualquer retoque, corte ou aditamento. O puzzle compõe-se e tudo permanece encaixado nos seus respectivos lugares. Não há pontas soltas. Bill Pullman: soberbo. Julia Ormond: surpreendente.

Antes deste, Jennifer foi a responsável pelo filme de 1993, tão polémico como grotesco, Paixão Selvagem (Boxing Helena), com Julian Sands e a bimba (um dos meus ódios de estimação do género feminino na 7.ª arte, que no filme em questão ficou tão bem apenas com o torso inviolado, sem que brotasse qualquer vontade rilkiana de especulação metafísica) chamada Sherilyn Fenn.

Mas neste pedaço de obra maior, decorridos que foram quinze anos, o grotesco ganha tons de mestria plástica; a coreografia clássica do horror quase gótico transforma-se num derivado pós-moderno com um toque de génio; e o produto final funciona, por uma perfeita simbiose entre as partes (movimento, luz e linguagem), indispensáveis à fabricação de uma obra cinematográfica digna de apreço – e mesmo que se apure tratar-se de uma obra meramente acessível a um conjunto restrito de espíritos, aos verdadeiros apreciadores de um género de difícil catalogação, que muitos irão incluir no Road Movie com laivos de “série B”, produziu-se arte; e não é essa uma das suas particularidades?

Já não me divertia tanto desde os tempos do miraculoso Cães Danados (Reservoir Dogs) – filme de Quentin Tarantino de 1992; confessando, no entanto, que não me empenhei em demasia para encontrar produtos similares, o que pode fazer perigar a análise por generalização abusiva.

Calo, por agora, a minha escrita para mais não desvendar. Mas, o meu tipicamente entusiasmo púbere jamais me permitiria fechar este texto se não me referisse ao momento em que brindei a grande tela com uma ovação em pé, por vergonha e respeito pelos demais que me acompanhavam na observação do filme, apenas devaneada, embora muito sentida. Um bem engendrado clímax fílmico:

Day after day
I will walk and I will play
but the day after today
I will stop
and I will start my way

Why can't I get just one kiss?
Why can't I get just one kiss?
Believe me,
Somethings I wouldn't miss
But I look at you pants and I need a kiss.
Why can't I get just one screw?
Why can't I get just one screw?
Believe me,
I'd know what to do.
But something won't let me make love to you.
Why can't I get just one fuck?
Why can't I get just one fuck?
I guess it's got something to do with luck
But I've waited my whole life for just one
(...)

Do trio de Milwaukee (Gano, Ritchie & DeLorenzo, que ficarão na coluna do lado direito deste blogue), para o trailer:



«I know who you are.»

Nota: no último Festival de Cannes, a crítica massacrou o filme, apodando-o de um "série B" mal amanhado e de que a sua presença na Selecção Oficial - Competição Principal se deveu, única e exclusivamente, ao nome maior do pai David.

Ah, como eu adoro contrariar estes tipos. E eu que até nem morro de amores pelo pai...

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Autodestruição, o paradoxo do (pós-)modernismo

«Ser-se moderno implica encontrarmo-nos numa atmosfera que nos promete aventura, poder, prazer, crescimento, transformação de nós próprios e do mundo – e, ao mesmo tempo, que ameace destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.»

Marshall Berman, All That Is Solid Melts Into Air (1982) [tradução do inglês: AMC, 2008]

Lido algures… Onde?

(Apreciações para depois, quando a lanterna – ou porventura, o disco digital versátil – chegar a esta terra que o país vai abandonando.)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Disparidades

A propósito de um texto que estou a escrever sobre um livro que acabei de ler (e que mais tarde, ou mais cedo, irá aqui ser objecto de publicação), onde me detinha sob considerandos formais da edição e da composição gráfica do exemplar estrangeiro para a nossa língua, relembrando aquilo que aqui foi dito sobre a publicação de um conto de Henry James, não consigo entender, a decisão dos editores da Relógio D’Água (e não se trata, de forma alguma, de uma embirração, ao invés, aqueles que me lêem até já conhecem a estima que tenho pela editora de Francisco Vale, propalada sempre que reputo essa referência de excelência como de menção oportuna) para a composição gráfica e tipográfica adoptada na reedição da obra introspectiva de Virginia Woolf, Rumo ao Farol. O tamanho da letra, o espaçamento entre linhas (perfazendo 175 páginas, excluindo o índice final, e dimensões de 23 x 15 x 1,5 cm, por um preço de venda ao público de 18 euros) não diferem muito da versão de bolso que continua a ser vendida pela Europa-América (180 páginas e dimensões de 17,5 x 11,5 x 1,3 cm, por apenas 6,49 euros).
Encontrando-me neste momento numa fase de releitura do referido romance de Woolf (o primeiro confronto com a obra deu-se precisamente através do livro de bolso supramencionado) e atendendo às condições climáticas dos dias que vão correndo, cada página lida contribui para o adensar de uma lenta e ruminante dor de cabeça, que a perseverante canícula nocturna agrava. Em suma, disparidades quase incompreensíveis, tão habituais no meio editorial nacional. E, neste caso em concreto, qual é o seu motivo?
  • Será dos direitos de autor? Da tradução a cargo de Mário Cláudio que já constava da 1.ª edição de 1985 das Edições Afrontamento (Porto)? Dos direitos a pagar a esta última?
  • Justificará a discrepância entre os 345 cm2 e os 201,25 cm2 (e respectivas qualidade e gramagens do papel) a diferença de 11,51 euros, com um número sensivelmente igual de páginas impressas?

No meu entender de leitor exigente, considero que, uma vez mais, se perdeu a oportunidade de se fazer uma edição portuguesa digna da imensidão literária da obra. É, sem sombra de sarcasmo, uma pena.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Exploração Corbijn

ou como fazer render o peixe:

Documentário realizado por Grant Gee e escrito por Jon Savage.

Depois do êxito de Anton Corbijn com Control (2007), já seria de esperar que surgissem as famosas réplicas plutocinéfilas de exploração do sucesso alheio.

Inevitavelmente, seguir-se-á a fase de expansão da arqueologia mexeriqueira britânica, plena de resultados.

(Depois de ter lido na Harper's deste mês a recensão de William H. Gass sobre o 2.º volume da biografia do Mestre escrita por Sheldon M. Novick, estou convencido de que se irão descobrir uns quaisquer The Curtis Papers – guardados por uma velhinha esquizofrénica e a sua filha submissa e emocionalmente instável, curadoras da Lamb House – que desvendam, apesar da impossibilidade físico-cronológica, que Ian Curtis, prévia e devidamente apresentado pelo belo e jovem escultor americano-norueguês Hendrik Andersen, foi amante de Henry James enquanto este viveu na famosa casa em Rye, no East Sussex.)

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Um problema molecular

mel à esquerda, e à direita Romola Garai com François Ozon nos bastidores
Já nada me surpreende no mundo da 7.ª arte. Talvez me seja difícil, aqui e agora, conseguir divisar o marco para a irremediável perda de fé nalguma consistência nas artes cinematográficas, concretamente na carreira dos realizadores que acompanhamos, admiramos e nos transportam, através do sortilégio das suas obras, para longe de uma realidade, de um quotidiano que nos (me) vai asfixiando – libertar as pulsões que, de outro modo, deixam marcas de reverberação cujo recalcamento tem o implacável poder de avivar uma dor que não se extingue.
Tudo isto se resume a um problema molecular. Por exemplo, o agravamento do meu espírito saturnino levou-me a proferir as inanidades melodramáticas escritas no final do anterior parágrafo. É do ozono: três moléculas de oxigénio que instabilizam a vida na Terra. Um simples átomo de oxigénio que se acrescenta à sua molécula, um “e” que cai que não me permite continuar a tergiversar e a tentar ser engraçado com o apelido do benfazejo realizador francês, François de seu nome, nascido em Paris no ano da Graça de 1967.

Um longo período de publicidade e de trailers de filmes em exibição ou com exibição iminente. Letras do genérico rosa fúchsia estilizadas, barrocas e um som de fundo que me deixam a olhar de esguelha para o ecrã e a pensar nos penosos 135 minutos que irei passar naquele ambiente artificial. Romola Garai… curioso, este nome pindérico diz-me qualquer coisa… Sam NeillCharlotte Rampling… cadavérica... um outro que nasceu com um apelido com um possível erro ortográfico, um tal de Fassbenderbased on a novel by Elizabeth Taylor… Diamantes, lantejoulas, lamechices, Michael Jackson, gatos e laçarotes. Estava tudo lá, se exceptuarmos, é claro, o caucasiano ex Jackson Five.

Os minutos passam, as dúvidas desfazem-se. Trata-se, de facto, de um melodrama de quinta categoria, cuja música orquestrada de Philippe Rombi parece ser o canário na mina de carvão.
Romola… pois a tal de Romola, a sósia britânica de Carolina Salgado que vestiu a pele da personagem cruelmente expiatória Briony Tallis aos dezoito anos, quando se armou de Florence Nightingale na versão cinematográfica Joe Wright do romance de McEwan – parece que ainda a estou a ver a sair toda emplumada do seu BM X5 à porta do tribunal de Gondomar.

Com a excepção do
Luís Miguel, a crítica excita-se e estrela-o no máximo – de girassol ou de soja, é um enjoo. Pois, Ozon faz pulsar a priori a veia encomiástica dos cinéfilos e críticos de cinema.

Confesso que, durante as duas intermináveis horas, estive sempre na expectativa de assistir à metamorfose do desastre melodramático num thriller psicológico viscontiano, embora sem Helmut Berger, que terminasse com uma fanfarra felliniana, ou então, num intrigante e feérico jogo de espelhos hitchcockiano. Porém, foi uma espera sem proveito, a dramalhada termina subliminarmente com o cliché de que “o dinheiro (corporizado não só nos bens e na fortuna, mas também na fama) não traz felicidade”. (Ponham-mo na mão que já vos digo por onde começo a construir a minha felicidade...)

Ah, já me ia esquecendo... A tal de Elizabeth Taylor é outra. Também nascida em Inglaterra, mas em 1912, um quarto de século antes da amiga de Neverland, bi-Burton. E já não pertence ao mundo dos vivos, nem tão-pouco à estirpe dos zombies hollywoodianos. Morreu em 1975 vitimada por um cancro e escreveu 12 romances – entre eles, The Real Life of Angel Deverell em 1957 – e alguns contos; e segundo os especialistas em literatura britânica do século passado, passou tangencialmente ao lado de se tornar na Jane Austen do século XX. Talvez as simpatias e militância vermelhas sejam o catalisador para a tentativa de entronização póstuma. Para mim, basta olhar para a colecção que a Virago (a sua editora) lançou para o mercado assim que a eminente esquecida faleceu. Pede meças à colecção de Sabrinas, com toalha de praia e chinelos floridos incorporados no pacote global, à venda no hipermercado Jumbo.

Mas, isto sou eu. A condenar a pobre senhora sem haver lido uma única linha de um dos seus romances ou contos.

Quanto a Ozon, convém que nos esqueçamos rapidamente que engendrou (argumento e realização) esta xaropada.

Nota: a coloquialidade deve-se, sobretudo, ao estado de enervamento que me provoca o simples odor a desperdício artístico, seja ele na Música, na Literatura ou no Cinema – a minha tríade sagrada nas artes.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Os 20 melhores finais

Sissy Spacek - Brian De Palma's Carrie

Ontem, os críticos de cinema do jornal londrino The Times publicaram uma lista ordenada de 20 filmes cujos finais (surpreendentes, aterradores, melodramáticos, etc.) marcaram a história do cinema mundial.
Uma vez mais, poder-se-ia dissertar sobre a discutibilidade da lista, sobre alguns esquecimentos ou sobre outros que estranha e imerecidamente figuram entre as duas dezenas de títulos citados. Todavia, as listas não são um fim em si mesmo, ao invés procuram precisamente gerar a discussão e fomentar a tertúlia – assuma ela as formas que assumir, via blogosfera, jornais, em cafés, esplanadas, à bomba, fazendo despoletar uma guerra civil ou, quiçá, até um conflito mundial nuclear… o fim.
Poderia aqui discutir a não inclusão do filme Zona de perigo (The Dead Zone, 1983) de David Cronenberg, ou de A Mulher que Viveu Duas Vezes (Vertigo, 1958) do mestre Alfred Hitchcock; ou até dos recentes Entre Inimigos (The Departed, 2006) de Martin Scorsese ou de Match Point (2005) de Woody Allen; e muitos outros juntar-se-iam à lista, saindo, sem arrependimento, outros tantos. Porém, é disto que um listómano gosta, a discussão encarniçada pelo objecto estruturado de forma quase obsessivo-compulsiva, e disposto a morrer por ele… o objecto, a lista.

Bom, antes que um habitual e felizmente transitório estado de loucura se apodere de mim, eis a lista elaborada pelos críticos do Times londrino (com as respectivas explicações da escolha no texto original mencionado):

  1. Carrie, de Brian de Palma (1976)
  2. Dois Homens e um Destino, de George Roy Hill (Butch Cassidy and the Sundance Kid, 1969)
  3. Casablanca, de Michael Curtiz (1942)
  4. E.T. o Extra-Terrestre, de Steven Spielberg (E.T.: The Extra-Terrestrial, 1982);
  5. Chinatown, de Roman Polanski (1974)
  6. Boneca de Luxo, de Blake Edwards (Breakfast at Tiffany’s, 1961)
  7. Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder (Some Like It Hot, 1959)
  8. Um Golpe em Itália, de Peter Collinson (The Italian Job, 1969)
  9. Os Suspeitos do Costume, de Bryan Singer (The Usual Suspects, 1995)
  10. O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan, (The Sixth Sense, 1999)
  11. Thelma e Louise, de Ridley Scott (Thelma & Louise, 1991)
  12. O Feiticeiro de Oz, de Victor Fleming (The Wizard of Oz, 1939)
  13. As Diabólicas, de Henri-Georges Clouzot (Les Diaboliques, 1955)
  14. Dr. Estranho Amor, de Stanley Kubrick (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964)
  15. E Tudo o Vento Levou, de Victor Fleming (Gone With the Wind, 1939)
  16. Os Condenados Shawshank, de Frank Darabont (The Shawshank Redemption, 1994)
  17. O Planeta dos Macacos, de Franklin J. Schaffner (Planet of the Apes, 1968)
  18. Memento, de Christopher Nolan (2000)
  19. O Projecto Blair Witch, de Daniel Myrick e Eduardo Sanchez (The Blair Witch Project, 1999)
  20. Sete Pecados Mortais, de David Fincher (Se7en, 1995)

Nota: tenho de confessar que o 1.º lugar de Carrie assenta-lhe bem. Ainda me recordo do salto que literalmente dei da minha cadeira situada no meio da plateia do Carlos Alberto (antes da remodelação), quando, há mais de 20 anos, o Fantasporto decidiu fazer uma reposição do filme de Brian De Palma. Para meu grande alívio, não fui o único...

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Sir Booker of Bookers

Salman Rushdie Salman Rushdie (n. Bombaim, 19 de Junho de 1947) venceu o Best of the Booker award

O escritor anglo-indiano Salman Rushdie venceu a votação para a eleição do melhor dos romances vencedores do Booker Prize (com 36% dos votos), pelo seu romance Os Filhos da Meia-Noite (Midnight's Children, 1981), na comemoração dos 40 anos do prémio literário mais prestigiado da língua inglesa (exceptuando os E.U.A.), que tem vindo a ser atribuído desde 1969 e que já premiou 41 romances (por duas vezes com vencedores ex aequo, em 1974 e 1992).
Já em 1993, a propósito da comemoração dos 25 anos de atribuição do galardão, Rushdie havia vencido o Booker dos Bookers.
Quinze anos volvidos Rushdie voltou a vencer, desta feita com a votação aberta ao público em geral, após a escolha por um júri dos 6 finalistas a concurso (que incluiu Pat Barker com The Ghost Road, 1995; Peter Carey com Oscar e Lucinda, 1988; J.M. Coetzee, Desgraça, 1999; J.G. Farrell, The Siege of Krishnapur, 1973; e Nadine Gordimer, O Conservador, 1974).

Eis um excerto do Livro Primeiro, 1.º Capítulo, “O Lençol Furado”:
«Nasci na cidade de Bombaim... um certo dia. Não, não pode ser assim. A data exacta. Nasci na maternidade do Dr. Narlikar no dia 15 de Agosto de 1947. Horas? A hora também é importante. Pois seja: foi de noite. Não, procuremos ser mais... Foi exactamente ao bater da meia-noite. Os ponteiros do relógio uniram as palmas das mãos para me cumprimentarem respeitosamente e me darem as boas-vindas. Há que dizer tudo: fui dado à luz no exacto momento em que a Índia se tomava independente. Continha-se a respiração. Do lado de fora da janela misturava-se o estralejar do fogo-de-artifício com a algazarra da multidão. Poucos segundos depois, o meu pai fracturou o dedo grande do pé; acidente insignificante em comparação com aquilo que me acontecia a mim naquele momento da noite; graças à tirania oculta dos relógios delicadamente acolhedores, eu passava a estar misteriosamente ligado à história e o meu destino indissoluvelmente unido ao do meu país. Durante as três décadas seguintes, ser-me-ia impossível escapar. A minha chegada tinha sido profetizada pelos adivinhos, celebraram-na os jornais, os políticos ratificaram a minha autenticidade. Não me foi consentido qualquer voto na matéria. Eu, Saleem Sinai, mais tarde chamado também Muco-na-Penca, Cara-Manchada, Careca, Sorve-Ranho, Buda e até Pedaço-de-Lua, fiquei definitivamente comprometido com o destino... as mais das vezes perigosamente amarrado a esse compromisso. E nessas alturas não tinha quaisquer possibilidades de me assoar.
Entretanto, o tempo (uma vez que não sei o que fazer de mim) está agora a chegar ao seu termo. Completarei em breve trinta e um anos. Se calhar. Se este meu corpo velho e escangalhado o permitir. Mas não me restam grandes esperanças de me salvar, não tenho pela frente sequer mil noites e uma noite. Tenho de ser rápido, mais rápido do que Xerazade, e é se quero deixar claro o sentido... Sim, o sentido. Não há nada que eu receie mais do que o absurdo.
»
Salman Rushdie, Os Filhos da Meia-Noite, pág. 13.
Lisboa: Dom Quixote, 4.ª edição, Maio de 2003, 428 pp. (tradução de Manuel João Gomes; obra original: Midnight's Children, 1981).

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Do Empurrão

Há uns tempos disseram-me que estava na forja das letras norte-americanas um sucessor de McInerney e de Easton Ellis, nascido nos anos oitenta, logo já a amadurecer neste século inevitavelmente marcado pelo “11 de Setembro” e pelos terríveis acontecimentos que se lhe sucederam.
Aos 17 anos de idade escreveu um romance, Doze (Twelve, 2002) ao estilo dos celebrados Menos Que Zero (Less Than Zero, 1985) de Bret Easton Ellis (n.1964) e As Mil Luzes de Nova Iorque (Bright Lights, Big City; 1984) de Jay McInerney (n. 1955).
Chama-se Nick McDonell, nasceu a 18 de Fevereiro de 1984 em Nova Iorque e é filho do director da famosa revista desportiva Sports Illustrated, apadrinhado pelo truculento autor, falecido em 2005, Hunter S. Thompson, e pelos escritores Joan Didion e Richard Price, sendo o avô o presidente da Grove/Atlantic Inc., empresa que inclui a famosa revista literária The Atlantic (antes, The Atlantic Monthly) e a editora Grove Press que, por obra do destino, publicou ambos os romances do neto.
Com uma entourage destas, ao pobre Nick estava-lhe, desde logo, vedada a carreira na construção civil – caso o pretendesse.
Mas não. Nick quis ser escritor. E ao contrário da esmagadora maioria dos jovens que, como ele, se decidem pela aventura no mundo da literatura, viu o seu primeiro romance aprovado à primeira tentativa, caindo logo nas graças da temperamental e extravagante Michiko Kakutani. E depois… Depois, colheram-se os frutos do rótulo McInerney/Easton Ellis
Ora, independentemente do apadrinhamento de luxo, não considero, em primeiro lugar, que o mercado sinta a necessidade de encontrar sucessão para dois escritores já estabelecidos que, neste momento, entram na etapa de maturidade das suas vidas literárias e na fase normal de consolidação das suas carreiras, como provaram os seus últimos escritos. Em termos gerais, não se inova, imita-se, e só a arte sai a perder.
Depois, a um nível mais pessoal, considero assaz pernicioso o uso indiscriminado deste tipo de comparações de carreira e estilo literários, com ou sem as colaboração e anuência tácitas do comparado. No primeiro caso, (independente da sua vontade), exige o dobro do esforço do autor para despir a roupagem envergada à força, em segunda mão, de todo não desejada, quando aquele decidiu enveredar pelas artes literárias empreendendo um trilho eminentemente solitário e pessoal. No segundo caso, aproveita-se a boleia das eminências pardas já estabelecidas e usa-se e abusa-se da sua douta jurisprudência como um estridente e proveitoso slogan publicitário, que normalmente prenuncia, para um amante de literatura, o vazio de conteúdo do publicitado – é nestas situações que, por exemplo, conseguimos ler as mais aberrantes frases de caracterização da obra e do seu autor, parecendo resultar de metamorfoses samsianas, vítima de enxertias insólitas (Woody allen com Kafka, Lynch com Murakami, e por aí em diante).

O Terceiro Irmão (The Third Brother, 2005) é uma amálgama de lugares-comuns dividida em três partes desconexas. Se a intenção do jovem autor era a de criar uma nova trilogia da Grande Maçã com passagem pelas corrupção e sordícia de Banguecoque e pelos efeitos do 11 de Setembro, relatando o desamparo, a solidão e a descaracterização progressiva dos personagens face à perda de valores da família tradicional americana e à voracidade da sociedade contemporânea, numa sucessão de causa e efeito, afirmo, sem qualquer tipo de pruridos, que falhou em toda a linha.
O romance está dividido em três partes desiguais, pelo menos em tamanho: a parte I é constituída por 59 capítulos e ocupa 168 páginas na versão portuguesa; a parte II, por 29 capítulos e desperdiça 70 páginas; a parte III por 20 capítulos e inutiliza 46 páginas.
O protagonista, o jovem e recém-licenciado Mike, vai estagiar para uma publicação em Hong Kong dirigida por um amigo do pai (curiosa identificação, talvez subliminar, entre nepotismos ficcionais e reais) chamado Elliot Anaclet, que o incumbe de elaborar uma reportagem sobre os jovens estrangeiros que procuram a Tailândia como paraíso hedonista, dedicando-se ao consumo de ecstasy. Para além disso, foi-lhe atribuída a função extraordinária de detective particular no estranho caso do desaparecimento de um amigo de faculdade de Anaclet e do Pai, Christopher Dorr, que se perdeu pelas ruas de Banguecoque – um estranho, e mais tarde descrito, episódio marca a separação do trio fraternal no passado.
Na viagem, Mike é acompanhado por um jornalista sénior da revista, Thomas Bishop, que desaparece de circulação desde o primeiro dia de estada na capital tailandesa.
Enquanto Mike deambula pelas ruas de Banguecoque, vão surgindo vários flashbacks que retratam inúmeros episódios das suas infância e adolescência no seio da sua família milionária disfuncional, com uma mãe alcoólica e ausente, com um historial de traição, um pai protector e um irmão obsessivo, vividas entre suas casas nos Hamptons e em Manhattan junto ao Central Park.
Em Banguecoque abundam os episódios mais ou menos sórdidos que qualquer turista poderá verificar in loco, a prostituição, as drogas, a corrupção e a brutalidade policiais, os estrangeiros “farangs” que por lá vão ficando pela depravação reinante – tudo o que foi descrito do ambiente exterior foi por mim comprovado apenas com cinco dias de estadia na fabulosa capital tailandesa, permanecendo na minha memória sem uma única linha escrita.
A parte II inicia-se com Mike a regressar a Nova Iorque devido a um acontecimento trágico que envolveu Lyle, o seu irmão, e os seus pais. Transfere-se de Harvard para a Columbia University e é um dos muitos nova-iorquinos que testemunha os acontecimentos da manhã de 11 de Setembro de 2001 nas torres gémeas do World Trade Center. Banguecoque fica definitivamente para trás, assim como a estranha prostituta menor “Tweety”, com quem se envolveu, assim como Bishop, Dorr e o grupo de jornalistas que se auto-intitulava de “Circo Voador” – talvez por referência aos Monty Python – e que dominava os meandros da cidade.
Mike parte numa busca desesperada pelo irmão, emocionalmente instável, numa viagem pelos destroços deixados pelo colapso das torres. Encontra-o, finalmente, para o tornar a perder de seguida… definitivamente.
Inicia-se a parte III, mais reflexiva e voltada para o interior da natureza humana.
Eis a estranha introdução:
«Mais cedo ao mais tarde, todos nós sofremos danos. Quando se apercebeu disto, Mike decidiu que seria mais fácil falar com pessoas que nunca existiram.» (pág. 239)
Seguindo-se esta preciosíssima meditação, que aqui destaco pelas frivolidade e risibilidade literárias, pelas questões pseudometafísicas que pretende levantar:
«A dor não é herdada, de geração em geração, como os genes. Será que alguns genes contêm em si dor? Será que tem de ser assim? Será que é essa a essência das famílias? Experiência. Sorte.» (pág. 241)
Todo o livro está recheado de pensamentos similares, de clichés (na maioria das vezes assumidos pelo próprio autor, porém não houve a vontade suficiente para os retirar do corpo da narrativa) e de aforismos de pacotilha, que como dizia espirituosamente Thomas Bernhard se imiscuem no meio da filosofia como uma praga de escaravelhos nos veados.

O Terceiro Irmão é um livro sem consistência, desgarrado, cheio de pontas soltas, de onde por vezes parece emergir a estrita necessidade de gastar páginas escritas para adensar o volume final da obra.
A prosa de McDonell nem sequer chega a ser minimalista, como pretendem os habituais catalogadores. Trata-se, sobretudo, de um aglomerado de palavras que não formam um todo coerente, assemelhando-se a uma compilação de notícias de jornal, sobre os mais diversos assuntos cujo elo de ligação não é visível a olho nu, ou então, estamos no domínio do puro esoterismo, cuja trama é apenas inteligível a mentes mais abertas e esclarecidas.
Atrevo-me a dizer que qualquer editora digna desse nome, funcionando em qualquer parte do mundo, rejeitaria liminarmente um manuscrito desta índole ou, no mínimo, exigiria uma reformulação integral encontrando-se, porventura e por ventura, alguma legitimidade artístico-literária na base da história, seguido, necessariamente, de um aturado e exaustivo trabalho de revisão editorial.
Publicá-lo?!... Só mesmo com um empurrão (já dizia o outro barbudo da voz rouca: with a little help of my friends... and family, acrescento).

Classificação: * (Mau)

Referência bibliográfica:
Nick McDonell, O Terceiro Irmão. Lisboa: Teorema, Abril de 2008, 284 pp. (tradução de Rita Graña; obra original: The Third Brother, 2005).

terça-feira, 8 de julho de 2008

MitD

UK US

«Estou só na escuridão, modificando o mundo na minha cabeça à medida que vou combatendo outro ataque de insónia, outra noite em branco na imensidão americana.»
Paul Auster, Man in the Dark (data de publicação: 21/08/2008) [frase de abertura; tradução: AMC]

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Exorbitâncias

O Luís, sempre atento ao que se passa no meio editorial português, alertou-me via caixa de comentários para o preço que irá ser praticado pela editora Palimpsesto na venda da sua versão do conto de Henry James, The Diary of a Man of Fifty (1879), Diário de um homem de 50 anos: o preço final é de 12 euros (que, na prática, será 10,80 euros nos estabelecimentos comerciais que praticam o habitual desconto de “10% sobre o preço do editor”).
Sinceramente, no afã de dar a conhecer ao pequeno número de pessoas que diariamente visita o meu blogue a tradução de mais uma obra do meu mui estimado autor anglo-americano Henry James (1843-1916), não olhei sequer ao preço anunciado.
Ora, sabendo que a esmagadora maioria da obra de Henry James, senão mesmo a totalidade, pertence ao domínio público, isto é, não houve a renovação dos direitos de autor, a prática de um preço de 12 euros para uma obra que se enquadra nesse campo, mesmo sabendo que existem os custos de edição incluindo os da tradução, é, no mínimo e para ser brando, um exagero.
No Projecto Gutenberg ou no Portal Domínio Público do Governo Federal brasileiro, o texto, na sua versão original, está disponível para transferência integral sem qualquer custo para o utilizador (carregar aqui para transferir o documento em ficheiro PDF), surgindo à cabeça a seguinte informação em inglês:

«This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net»

Não sei, contudo, (e com alguma preguiça investigadora) se estas disposições se aplicam no caso da edição comercial do texto. Mas, mesmo a existir a necessidade de pagar direitos de publicação, esses serão, decerto, consideravelmente menores àqueles que são, por exemplo, aplicados a uma obra que não pertença ao denominado domínio público, que resultam dos direitos de propriedade intelectual (royalties) dos seus autores ou herdeiros.

Na sua versão original, The Diary of a Man of Fifty dispõe de um total de 11.900 palavras (sabendo que, tendencialmente, em língua portuguesa o número de palavras aumenta numa pequena percentagem). A partir daqui podemos estabelecer uma comparação com os preços praticados no mercado editorial português nas obras do mesmo autor. Assim:

The Diary of a Man of Fifty, aproximadamente 11.900 palavras (conto):
– versão portuguesa Palimpsesto, 80 pp., PVP €12.

Washington Square, aproximadamente 64.200 palavras (romance):
– versão portuguesa Livros de Bolso da Europa-América, 143 pp., PVP €6,49.

The Europeans, aproximadamente 64.200 palavras (romance):
– versão portuguesa, Clássica Editora, Os Europeus, 169 pp., PVP €4,99.

Daisy Miller, aproximadamente 23.100 palavras (novela):
– versão portuguesa Editorial Presença, 112 pp., PVP €8,23.

The Altar of the Dead” (aprox. 13.100 palavras), “De Grey – A Romance” (aprox. 13.000 palavras); “The Last of the Valerii” (aprox. 11.100 palavras); “Nona Vincent” (aprox. 11.600 palavras) “Sir Dominick Ferrand” (aprox. 20.200 palavras) [Total: 69.000 palavras]:
– versão portuguesa Editorial Estampa, O altar dos mortos e outras histórias sobrenaturais, 280pp., PVP 9,56.

The Friends of the Friends” (aprox. 9.700 palavras); “Owen Wingrave” (aprox. 12.600 palavras); “The Private Life” (aprox. 12.800 palavras) [Total: 35.100 palavras]:
– versão portuguesa Editorial Presença (com prefácio de Jorge Luis Borges, colecção A Biblioteca de Babel), Os Amigos dos Amigos, 215pp., PVP €20.

The Turn of the Screw aproximadamente 39.600 palavras (novela):
– versão portuguesa Relógio D’Água, A Volta no Parafuso, 192 pp., PVP €12.

Depois de manifestada a minha opinião (vide título deste texto) e de apresentados alguns dos valores praticados em obras do mesmo autor no mercado editorial português por diferentes editoras, deixo à reflexão dos leitores sobre a proporcionalidade e a conveniência do preço anunciado pela editora de Diário de um homem de 50 anos.