domingo, 27 de julho de 2008

O elefante acorrentado

Louis (o eliotiano), a par de Bernard (o joyciano), talvez o personagem mais bem elaborado por Woolf em As Ondas – opinião pessoal, e sem sombra de misoginia. Simboliza o homem, outrora admirado, «o melhor aluno do colégio», desprezado pelas vicissitudes da vida. O australiano que vive atormentado com o seu sotaque pela Londres das elites, confrontado com a falência do negócio do pai, um banqueiro de Brisbane, trabalha atrás de uma secretária atafulhada de papelada num escritório de contabilidade (onde é que já li ou ouvi isto no caso português).

Nas suas próprias palavras:

«É muito profundo o que nos diferencia, disse Louis, e talvez impossível de definir. Mas, apesar disso, procuremos uma definição. Ao entrar, ajeitei o cabelo para me tornar parecido convosco. Mas não o consegui, porque não sou uno e completo como vocês. Já vivi mil vidas. Em cada dia cavo e desenterro alguma coisa, descubro restos de mim na areia pisada pelas mulheres há milhares de anos, na época em que escutava os cantos que se elevavam na margem do Nilo e as patadas da besta acorrentada. O Louis que estão a ver é feito das cinzas de alguém outrora sublime. Fui príncipe árabe; a nobreza dos meus gestos é disso testemunha. Na época de Elisabeth fui um grande poeta. E era duque na corte de Luís XIV. Sou vaidoso e destemido e tenho um imenso desejo de que as mulheres suspirem de ternura por mim. Hoje não almocei para que Susan me achasse pálido e Jinny estendesse sobre mim a singular fragância [sic] da sua simpatia. Mas, ao mesmo tempo que admiro Susan e Percival, odeio os outros, pois é por causa deles que me torno ridículo, à força de me pentear e procurar esconder o meu sotaque. Sou o macaquinho que brinca com uma noz e vocês são as mulheres desmazeladas, com reluzentes sacos de pastéis apodrecidos. Sou também o tigre enjaulado e vocês os guardas armados com ferros incandescentes. É exactamente isso. Sou mais forte e mais feroz do que vocês e, no entanto, esta minha breve aparição sobre a terra, após milénios de não ser, será consumida no temor de que se riam de mim, a mudar com o vento conforme sopram as tempestades de fuligem, esforçando-me por forjar o anel de aço da clara poesia que reúna as gaivotas e as mulheres de dentes apodrecidos, os campanários das igrejas e os chapéus de coco que desfilam pelas ruas quando estou a almoçar e apoio um dos meus poetas preferidos (talvez Lucrécio) no galheteiro e no cardápio sujo com molho de carne.»
Virginia Woolf, As Ondas, pp. 102-103
Lisboa: Relógio D’Água, 1988, 239 pp. [tradução de Francisco Vale; obra original: The Waves, 1931]

Enfim, quebradas as correntes apenas fica o desejo expresso de que não se estilhacem as porcelanas que habitam as lojinhas pessoais, delicadas e assépticas, dos pequenos (grandes, por auto-ilusão) caciques da lusa erudição.
Ah, a inveja, já dizia o outro “um mal oculto”.

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