quinta-feira, 3 de julho de 2008

A Queda

Manuela Ferreira LeiteProcurei. Sabia que se encontrava algures pelo início do pequeno romance ensaístico de Camus: A Queda. Lêem-se e relêem-se aquelas linhas espalhadas por cerca de 120 páginas sem cansar. Em todas elas doutrina para inquirir. Pedra deliberadamente em bruto, apenas fornecida pelo prazer de ver os outros lapidá-la.
(Em mim dá-se um fenómeno, pelo menos curioso, sempre que leio ou releio os admiráveis escritos deste argelino de nascença, tragicamente desaparecido nos primeiros dias de 1960, com apenas 46 anos completados, cada vez me afasto mais daquele presunçoso, cujo olhar vesgo – e, acreditem, não é, de forma alguma, minha característica aproveitar-me do defeitos físicos para a vituperação seja de que ordem for do diminuído – sempre me deixou a impressão indelével do falhanço intelectual da pontaria: J-P Sartre.)

Está Clamence, o parisiense que vive no bairro judeu em Amesterdão quando se tornou juiz-penitente, no início do seu aparente diálogo com um desconhecido no Mexico-City acabado de chegar de Paris, quando pergunta:

«Demora-se muito em Amsterdão [sic]? Linda cidade, não acha? Fascinante? Eis um adjectivo que não ouço há muito tempo. Precisamente desde que deixei Paris, já lá vão uns anos. Mas o coração tem a sua memória e eu nada esqueci da nossa bela capital, nem dos seus cais. Paris é uma autêntica ilusão de óptica, um imponente cenário habitado por quatro milhões de silhuetas. Perto de cinco milhões no último recenseamento? Está bem, devem ter feito meninos. Não me admiro. Sempre me pareceu que os nossos concidadãos tinham duas paixões violentas: as ideias e a fornicação. A torto e a direito, por assim dizer.»
Albert Camus, A Queda, pp. 9-10 (Lisboa: Livros do Brasil, Novembro de 2007, 113 pp.; tradução de José Terra; obra original: La chute, 1956).

A nossa lusamente fabricada “dama de ferro” – o neologismo já diz tudo – fazendo, decerto, apelo a um conservadorismo arrumado no armário dos dispendiosos e anacrónicos casacos de peles com cheiro a naftalina, afirmou que, se for poder, jamais permitirá uma lei que viabilize o casamento entre homossexuais: o casamento é para a procriação, diz ela.
Não sou historiador, sociólogo, psicólogo social, antropólogo, apenas um homem das ciências e das finanças empresariais, mas consigo afirmar que, para além do maior ou menor lirismo, pompa e circunstância, na celebração do matrimónio, o casamento nos tempos mais recentes sempre teve que ver com a defesa jurídica do património e nunca com a fornicação… perdão, procriação. Aliás, negá-lo levar-nos-ia a outros tempos onde o bafio e bolor intelectuais pairavam por sobre as cabeças dos meus concidadãos, neste país de sacristias; um odor a naftalina, bem diferente da Índia de Pasolini – OK, comecei a lê-lo há coisa de uma hora –, cuja toxicidade acabou por se revelar mortal: traçou o destino de um país que inevitavelmente saiu do limbo rumo ao inferno do atraso estrutural e, acima de tudo, mental.

A dúvida adensa-se: que fazer em 2009?

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